top of page

ESTÚDIO REALIDADE:
Rodrigo Garcia Lopes, o especialista
do instante

Jairo Batista Pereira

15 de jan. de 2023

(Estúdio realidade, poesia, Editora 7Letras, Rio de Janeiro 2013 - 136 p.)

Rodrigo Garcia Lopes executa em sua poética o complexo de revelação do instante ou do que o instante pode revelar. E isso não é exclusividade de uma práxis levada a efeito neste Estúdio Realidade. Já se via nitidamente o resultado dessa exploração do fugaz, do passageiro, do tempo em ágeis performances de nascimento, vida, morte das coisas, em seus livros anteriores: Solarium (1994), Visibilia (1996), Polivox (2001) e Nômada (2004).

        Para se entender melhor uma poética assim veloz e como um vertedouro imagético, impende conhecer o poeta em suas andanças pelo país e estadias nos EUA.  Conhecedor como poucos de sua arte, é o poeta culto, com domínio dos meios, investido na estação/estúdio do difícil de apreender, do que passa em lentes velozes e logo se esvai para algum campo do conhecer, ignoto engenho do sempre passar, saltar aos olhos do observador atento ou desatento.

       Rodrigo Garcia Lopes é o ser da passagem que tudo capta, sintetiza e, na condição de artífice com amplos recursos do métier, transforma em poemas. Por trás de toda a composição sobressai o ato do agente criador. O ato filosófico de apreensão do instante fugaz. O ato de trabalhar a matéria poética, que é o do fabbro investido na construção do poema. A matéria bruta, por assim dizer, um quase-nada a primeira vista. Mas depois de enlevada em poema, ganha o status do universal, único, especial na objetalidade que se não fosse o olho, mira e elaboração do poeta (e nisso ele é mestre) se escoaria até outra observação de alguém. Mas em que tempo? Em que estágio do ver e prodígio dos meios? É de se perguntar.

       O que não é visto, sentido, em seu momento plus de passagem pode perder-se no tempo e não tornar-se conhecimento. O conhecimento é sim, reflexo da nathureza no homem, como bem disse Hegel. Materializado tal conhecimento pelas linguagens.

 

“Um relâmpago é flagrado por seus ecos. Santo súbito”.  (“No Estúdio Realidade”)

 

“anjos apodrecem no céu seco sereno

aplausos de treva e pedras e sendas

que desembocam onde o olho

draga este espaço que se move

sempre além de mim”. (“Pós-imagem”)

 

      Poeta do instante fugaz, do delírio criador emanado do objeto mínimo, abstrato, que é de um ver/sentir investido no sinestésico, na voragem do tempo sobre as coisas, Rodrigo Garcia Lopes aventura solito nessa seara feérica, móvel, cambiante.

       Sujeito criador e objeto da criação, em rara simbiose existencial. Que seria do poema sem a vida do poeta Rodrigo Garcia Lopes? Ou do poeta se traísse a lente do seu ver ou os sentidos do seu cognocer?

        Poucos poetas na contemporaneidade detém os meios e o conhecimento do ofício de modo a trazer do nada o instante primevo, o instante fecundo da imagem inaugural, que era um quase-nada, um cisco na correnteza do rio, um trepe de taquara na mata, um desvio de água na cascata, um eco de voz na noite dos tempos. Rodrigo é ícone dessa especialidade poética no Brasil: o ser andante, sem morada fixa, paragem, a tudo captando em perceptos acelerados como os próprios objetos da sua busca, revelação de um mundo subconhecido. Aí é que ganha a poesia de Rodrigo Garcia Lopes, e muito: no milagre de inaugurar a ocorrência da “coisa”, seu existir ao sentido de todos, enlevada em ser material pelo poema.

        Esse mundo subconhecido a que me refiro é o mundo ainda não captado pelos sentidos humanos, o mundo do que está em ser no imenso campo do conhecimento, da grande nathureza que se revela em reflexos ao sujeito cognocedor.

 

“Um objeto

que não se pode olhar

não existe”. (“Invisibilia”)

 

“É muito cedo para ser manhã.

Quieto demais para ser dia,

É uma sílaba aflita quase dita,

Invisível acorde em lá,

Presságio de sombra ali”. (“Alba”)

 

      Mais um exemplo da sanha do poeta, em captar o que passa bem perto/longe de nós no exercício dos sentidos, desatentos que estamos a essa prática de valoração, apreensão e exposição do instante veloz, do irrevelado, que só consegue existência ontológica/poética, pela ação do fabbro.

      A especialidade é sobre matéria densa, mas abstrata, dinâmica, voraz, desservil a qualquer outro tratamento que não seja o poético. A meu ver, Rodrigo Garcia Lopes é o especialista inafastável dessa missão de revelar o instante ou o sentido do que o instante pode (em sua passagem de gnomo mágico) revelar.

      O poeta se atém aos detalhes mínimos de um lance qualquer. O olho que vê além do normal, fixa o objeto perseguido e o transforma em poema pela artesania da palavra.

      Não se pense que isso é tarefa fácil. Tirar poesia de um antitema aleatório, da aparição relâmpago aos sentidos, sempre é mais complexo, arriscado até, mas o resultado pode ser surpreendente.

      É claro que em Estúdio Realidade, nem só o instante poético (objeto trabalhado ao rigor pelo poeta) compõe o livro. Há uma série de tantos outros poemas brilhantes e os aforismos do Apêndice, esclarecedores em suas verdades sobre o poético, extratos do pensar e do empírico na visão do autor e de um ou outro poeta ali citado.

 

“Stranger, seu nome é solitude: a língua

Que fala não é dessas plagas. Xinga,

Mas não a entendo, nem essas águas

Negras que a lua, um D, agora míngua”. (“América”)

 

     Talvez minha resenha um tanto apressada sirva apenas pra uma iniciação a poética do instante aparentemente fugaz explorado na poética de Rodrigo Garcia Lopes. Ou do que o instante é capaz de revelar, significar, matriciar em termos de conhecimento. Minha visão não é a do semiólogo Barthesiano (esse merece todo nosso respeito) ou do acadêmico ilustrado em tantas teses, citações. Vejo, com os olhos do franco atirador de palavras, que na sua visio matuta, ( mezzobugre semiota) jamais pode se afastar do que é cipó, folha, carvão, pedra, bicho, caule, pés, barro, embira.

      Cada um tem a sua preciosa argila como matéria prima, e em um poeta como Rodrigo Garcia Lopes, aparece muito bem o barro do seu fazer, encrestado de coisas que se movimentam bruscamente, circulam e apressam, acontecem e desaparecem, rápidas como flashs de máquina fotográfica e caso o instante inaugural da ocorrência da coisa/imagem não for registrado, ela se perderá no campo do impreciso ou indistinto.

A poesia de Rodrigo Garcia Lopes, pode sim complicar as coisas para o exegeta distraído, principalmente quando se parte de uma crítica que venha separar o poeta de sua criação. Tipo, ver a obra no plano espacial, abstraída do construtor. Nisso certamente o crítico se daria mal, em evitar de Garcia Lopes, seu comprometimento e dependência da própria palavra poética. Seu agir, fazer, integrado sempre aos objetos de sua vivência de profundo observados das coisas. Sua visão particularíssima. Ação do conhecer que se habilita a revelar o instante e seus prodígios de ser da passagem, apoteótico nas mensagens vida/morte/linguagens. O detrator megacósmico eclode imagens novas, vertigens, e tudo descontroladamente. Ao poeta cabe a missão de revelar o imagético precioso captado pelos sentidos, revelando os brilhantes pela palavra e mais que isso: inaugurando-os.

 

“O olho

atrás

do que o consome:

Essas horas sem nome

E a rapidez das coisas

Muito além da linguagem

E da escuridão”. (“Em aberto mistério”)

 

        O terreno em que o poeta labora é movediço, oscilante, pavimentado com materiais diáfanos e onde se pisa, nem sempre parece um chão, um material firme de se pisar, aí é que trafega o ilustre passageiro Rodrigo Garcia Lopes, sentidos atentos a tudo que não se mostra explícito, não se exibe escancaradamente. O poeta faz questão de penetrar o mistério do indizível, do subconhecido, do não acontecido, vertido em significação. Uma arte que exige desforço filosófico. Pensar faturando significados. Estruturar poeticamente a composição. Labor linguístico. E tudo com uma sutileza, fina gramática, rica estampa de criador, com a nathuralidade e segurança dos grandes. Poesia enganatória. Há os que verão algo quase espontâneo do ver que se habilitou aquilo. Mas não é assim, para um pouco mais entendedor, crescem as fagulhas do investido em trabalho, suor, inspiração e razão filosófica, na base de todo o composto poético. Sim, o intelecto é o gran dominador do espetáculo estilístico, do espetáculo das palavras e das imagens que as mesmas deflagram no livro.

 

“Pra você ver como é que são as coisas

precisa aprender seu dialeto,

ver de novo, dentro, o verde fora,

espelho onde sentido algum repousa,

saber o que nos falam os objetos”. (“Doppelggänger”).

 

Estúdio realidade é assim: estação do instante em polvorosa, instância de revelações do subconhecido, do inaudível, do indizível, em linguagens executadas com maestria pelo poeta. Seu chão, seus cipós, suas teias de enlear realidades, transrealidades e delírios de ver, sentir, compor, essa poética do instante que é revelado e do que o instante em si próprio é capaz de revelar, inaugurar na língua, quando o caldo das palavras do artífice emanam das fontes de consciente (construtor) e inconsciente (arrebanhador de imagens).

        Desnecessária maior exposição (transcrição) dos poemas do autor, nesta resenha livre, prazerosa até, de pleno mergulho no inefável e que no caso de Rodrigo Garcia Lopes, em sua poética é sempre de somatória de conhecimento, visão e destreza com os meios aptos aos fins de revelação do novo sobre a face da Terra:

 

“Não há nada de novo sob o sol

só para o sol, que é sempre o mesmo.

esta verdade toda, não se dissol-

ve numa rima ou pensamento a esmo.

 

Aqui em baixo, tudo muda, todo dia:

a moda, o medo, e mesmo a luz do sol

passa dias assim, arredia, e me arrepia

pensar que é diferente. (...)”. (“Eclesiastes”)

 

jAiRopEreIrA

(Autor de “O abduzido”,

“Espirith Opeia” e outros).

 

bottom of page