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À queima-roupa, correndo o risco

Por Claudia Roquette-Pinto


Volto da leitura do novo volume de poemas de Ademir Assunção com a sensação de ter sido levada em um estonteante travelling cinematográfico. Sem cortes. Escrevendo alternadamente sob a lente de aumento precisa e sensível de uma poética das minúcias ou através do telescópio de longo alcance do registro histórico e social, o autor de Risca Faca nos descortina uma visão vertiginosa do mundo – a de um artista fortemente marcado pela contemplação sobre o tempo e a impermanência, enquanto, pelo viés da poesia, procura dar conta do nosso cotidiano apocalíptico.


Em um movimento que se alterna entre o desejo de evasão e uma brava teimosia em continuar buscando aquele grão de sentido que nos permite sobreviver, Ademir faz um verdadeiro inventário de perdas, nomeando os dias duros, dias de agulha perdida no palheiro/ barata tonta na borda do bueiro e provoca: chamei pra briga o capeta de facão/ senti o aço perfurando a carne mole/ gritei bem alto um tremendo palavrão.


Imagens de violência e ideias de suicídio marcam presença ao longo do livro (às vezes bate um desânimo/ uma vontade filha da puta/ de esticar a corda/ apertar o gatilho). Mas não pensem vocês que não há sorrisos – e até risadas – na leitura de Risca Faca, pois ao lado de uma fina ironia, e mesmo diante do desespero de nossos dias, a poesia de Ademir Assunção tem também um bocado de humor (Triste Brasil! Ó quão estropiado/ Estás e estou como papel cagado!/ Pobre te vejo a ti, que terra mais zoada,/ Até Camões virou motivo de piada).


Estruturado em cinco partes que dialogam entre si, criando um contraponto formal sem nunca abrir mão do seu principal tema, Risca Faca se apresenta ao leitor através de um movimento oscilante de aproximação e afastamento, uma espécie de zoom lírico-existencial do poeta.


O livro abre com a série sangue verso água brasa, reflexão sobre o próprio fazer poético, na qual Ademir retoma o aforismo ars longa, vita brevis, contemplando a duração da obra para além do seu autor

(nada sobrevive/ além do além da poesia) e, na clave do desapego (penso o que não penso em outra língua/ tantos dias de glória pra só morrer a míngua), assume um ethos minimalista (só levo a vida com a pele que me cobre).


Os poemas deste livro atualizam belamente as lições de Bashô, frente a um mundo em franca derrocada. Em muitos dos versos de Risca Faca encontramos aquela mesma concisão carregada de beleza, tão característica do grande mestre japonês – não fosse Leminski, tradutor do poeta oriental, um amigo pessoal de Ademir e forte influência em sua escrita. E, certamente também devem contar para isso suas décadas de intimidade com o Budismo Zen, embora neste livro a economia formal dos versos venha tingida de uma contemporaneidade desconcertante (sem replay sem tira-teima/ a vida esfria às vezes queima).


Em zona de confronto(note-se, já de saída, o efeito provocado pela troca da expressão corriqueira, operada no quase-anagrama confronto/conforto), o poeta segue trocando letras, interpolando sílabas e resignificando referências clássicas da literatura budista. Como o "Sutra do Coração” – que pelas mãos de Ademir se metamorfoseia em "sutra do coração da mata”, reemergindo na forma de oração pelo povo desvalido de um Brasil profundo – ou na escolha da palavra diamante, imagem muito utilizada na filosofia oriental para significar a essência pura, comum a todos os seres – a qual, pela alquimia do verbo, transforma-se em dinamite dentro do poema. Nesta parte do livro o autor também realiza belos experimentos na direção da poesia visual, como, por exemplo, na sugestão das oscilações criadas na água, representadas pelos parênteses invertidos:


(((((((um leve lírio no limo dos dias)))))))


Na seção seguinte, livro de retratos, o poeta faz um misto de homenagem e afirmação de seu cânone pessoal, em peças que recriam ou interpelam figuras públicas ou históricas. Com sua característica intimidade com a música e o universo pop, Ademir evoca o bluesman norte-americano Blind Willie Johnson, o trompetista Chet Baker e a cantora Sade Adu do mesmo modo que se refere a grandes mestres do passado, como Dante Alighieri e Caravaggio. Indo de Rimbaud a Miles Davis (diga-se de passagem, em um dos mais psicanalíticos, explícitos e desconcertantes poemas sobre o racismo estrutural nas Américas), de e.e. cummings a Penélope Cruz, de Cartola a Roberto Piva e Itamar Assumpção, incluindo até os famigerados General Cabeza de Toro e Coronel U. (este último, de repulsiva lembrança em nossa História recente), Ademir nomeia seus interlocutores (tanto os de agora quanto aqueles cujas artes lhes chegam através das eras), sempre apontando para aquilo que, a despeito de tudo, sobrevive em nós; aquilo que podemos guardar misteriosamente vivo/ na gola do paletó/ na dobra do vestido. Ou ainda, numa belíssima evocação do galo cabralino tecendo a manhã, a imagem do riso aberto, franco/ lindo, magnético que acende outro sorriso (poema para Marielle Franco).


As fábulas contemporâneassão verdadeiras "crônicas de um país assassinado”. Nelas, o autor parte de elementos cotidianos como notícias de tv, registros feitos na rua, a linguagem da propaganda, discursos de políticos e pastores pentecostais e até mesmo nomes de seriados norte-americanos para, sob novas lentes e em novos arranjos, expor o absurdo e a cacofonia das narrativas neo-liberais no nosso país e no mundo. Cada um dos tensos poemas desta seção é tanto uma crítica feroz à insânia da sociedade de consumo quanto uma experiência catártica para o leitor: (mata)/ peru mata galinha mata chester mata sírio mata con/ golês mata palestino mata iraquiano mata kalapalo/ mata paraguaio mata boliviano mata preto mata po/ bre a civilização mata porque precisa comer a civiliza/ ção mata porque precisa civilizar a civilização mata.


A última seção de Risca Faca traz o provocativo título de parapsicologia da decomposição. Nela, o poeta faz uma releitura de um texto seminal na nossa literatura, o poema Psicologia da Composição, de João Cabral de Melo Neto. E o faz desconstruindo a defesa do anti-lirismo cabralino, que teve enorme influência nos poetas de todas as gerações, desde o pós-45. Em seu parapsicologia, Ademir atualiza e subverte as imagens e as premissas do poema original, não apenas trazendo-as para o contexto da poesia contemporânea, como para o Brasil contemporâneo – e com isso, explicitando a sua própria concepção de poesia: Entro no meu poema/ como quem suja aos mãos. Ou, também, em Os cavalos da poesia/ querem explodir o tempo escuro,/ romper o hímen opaco,/ a mentira engendrada/ nas manchetes dos jornais.


Esta parte final do volume mescla e funde as duas linhas mestras do livro: num veio, a metalinguagem e pensamento crítico, meticuloso, sobre o ofício da poesia; em outro, a aposta meio kamikaze na vida, naquilo que é sujo, na rua, em uma espécie de resposta dionisíaca aos mandamentos apolíneos de um dos nossos poetas-pais.


Não tem trema, não tem métrica,/ não tem esquema,/ na paisagem trêmula/ (do poema),// tem treta com a polícia,/ tiros na surdina das noites,/ sangue, urina, esperma,/ vísceras lambidas/ por língua de cão,(…).


Do alto de sua existência e do cúmulo (e acúmulo) de suas leituras, noitadas, prêmios, noites difíceis, viagens, delírios, shows dos stones/ desenhos de escher// a pele tocada/ por mulheres chocantes, Ademir Assunção larga o dedo. Dispara referências, se atira nas rimas, chama Cabral, Drummond e Leminski na chincha, reverbera sons, arma trava-línguas, manda ritmos de canção com poema-piada, sempre ninja, atento e no encalço da fera, o poema cometa que não se derreta/ no atrito com a atmosfera, porque poeta bom é poeta vivo.


Risca Faca é a afirmação inegável de uma poesia que, a despeito de todo o terror ao redor, segue afiada, ligada e com o dedo no pulso da vida – ou no gatilho.



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