Por Amador Ribeiro Neto
Vamos direto ao ponto: a poesia de Juca Pontes em Itacoatiara (MVC/Forma, João Pessoa, desenho|fotogravura José Rufino, 2022) apresenta sua gramática desde o poema que abre o livro: água, pedra, tempo são elementos que consolidam e dissolvem-se entre laivos de luz.
Este lugar comum feito de água, pedra, luzes e manhã reorganiza-se segundo a analógica do inesperado. Diria mesmo, analógica do espanto. O leitor é levado, em cada poema - ou, se assim se preferir, no único poema que forma o livro todo - a habitar o lugar bandeiriano do alumbramento.
Mas não é bandeiriana esta poesia que mais tange os liames cabralinos, naquele ponto em que Cabral é fundante da Poesia Concreta: desautomatização pétrea da percepção.
Pedra, lição de coisas.
Poesia, educação pela pedra.
Desta equação deriva Itacoatiara: bruta livro de pedra, água, céu.
Nesta pedra in natura, marcada por signos ininteligíveis, o tempo e a história abrigam segredos que o poeta desafia-se a decifrar. Mas, arguto, o poeta não se intromete na decifração dos caracteres cifrados da pedra. Antes: deslinda o mistério procurando entender a pedra bruta e o seu entorno. E se Cortázar disse algures que basta uma pedra sobre a palma da mão para escrever-se um conto, Juca Pontes toma uma grande pedra e escreve um grande livro.
Numa linguagem direta, concisa, despojada e límpida, a poesia de Juca fala da natureza livrando-se dos clichês habituais. Na verdade, o livro é um enorme haicai tropical, refletindo sobre a vida via natureza, com zelos orientais.
Desta forma, a pedra é pedra-pintada, pedra-esculpida: mãe-água e mãe-manhã, captadas e (re)veladas em flashes.
Insight: a fotografia de João Lobo traz aos olhos o que impressiona a alma: havia a necessidade documental e poética de uma câmera escura/clara para captar o não-dito da poesia.
Assim, eis a poesia da fotografia & a fotografia da poesia em diálogo ininterrupto. O leitor é convidado a ser co-autor do livro, em palavras e imagens. Mas é importante que se registre o nascedouro destas linguagens: a poesia se faz no risco e no desvio do (n)ovo pré-histórico em tempos pós-modernos.
A sintaxe, entrecortada pela espacialização dos objetos, sujeitos, complementos e predicados, remete o leitor aos mistérios e às magias de uma pedra e de suas circunstâncias. Pedra nomeada pela fotografia. Pedra inesperada pela palavra. Pedra inespedrada pela interação semiótica dos signos de códigos diversos.
Pedra redesenhada pela água e pelo olhar. Pedra bruta: incólume às indagações arqueológicas. No silêncio de si em si, estendida no chão do tempo, gera a “bruta flor do querer”, como canta certo compositor de nossa música popular.
Esta flor-pedra é sépia apontando para o infinito, anota o poeta.
Por isto esta poesia é convite à releitura renovada a cada lance de palavras, a cada jogo de imagens.
Na reiteração dos mesmos elementos – água, pedra, luz – o poeta coreografa os passos da palavra riscando o branco da página. A poesia diz e diz-se nas marcações verbivoco visuais de um poeta que escolheu dizer o já-dito e redizer o não-visto, o não-musicado, o apenas sugerido.
O resultado é um livro que faz o leitor pensar e sentir concomitantemente: o senti pensa-(mento) como um só bloco. Não há mais lugar para a aristotélico-cartersiana separação entre razão e emoção.
A poesia de Juca Pontes e a fotografia de João Lobo entregam-se no kama-sutra da linguagem: gozo prolongado a cada poema, a cada fotografia, em busca de um impossível fim. Os meandros do dizer acabam sendo o fim, a finalidade última da poesia. O poeta sabe disto. Por isto sua poética é sublime tal como a delicadeza do silêncio dos tempos sobre Itacoatiara. Mas é delicada também na busca de sensações e sentidos que habitam o corpo bruto e enigmático da pedra. Melhor: da poesia. Melhor ainda: da vida. Da bruta flor: água-pedra-enigma.
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