Por André Dick
No dia 24 de agosto, Paulo Leminski, nascido em 1944, completaria 80 anos de idade. Para quem se considerava um cachorro louco, não aconteceu o que ele escrevia num de seus poemas de La vie en close: “um dia sobre nós também / vai cair o esquecimento / como a chuva no telhado / e sermos esquecidos / será quase a felicidade”. Os estudos sobre sua obra provam esse caminho de recepção, entre os quais um que se destaca é Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski, de Fabrício Marques, reeditado agora numa parceria entre a Editora UFMG e a Editora Unicamp.
Leminski foi um escritor múltiplo: além de poeta, traduzia (indo de Petrônio a James Joyce) e escrevia ensaios (concentrados nos dois volumes de Anseios crípticos), artigos e romances, além de letras de música. Tudo isso é visto por Fabrício Marques, também um poeta refinado, sob diferentes olhares. Neste estudo que resulta de sua dissertação de mestrado na UFMG, com alguns acréscimos posteriores, são percorridos vários caminhos adotados pelo poeta paranaense, investigando elementos dos livros de poesia e sua ligação com outras áreas, como artes plásticas e publicidade e propaganda, de maneira muito particular, desde o seu texto “A aventura radical de Paulo Leminski”, inserido no capítulo “O anarquiteto de desengenharias” em que ele faz um apanhado de como a obra do escritor paranaense tem chegado cada vez a um público mais amplo, com a reedição de suas obras (inclusive sua poesia completa), assim como em exposições sobre sua obra.
Nascido numa família em que o pai, de origem polaca, era militar, e a mãe, de origem negra, era filha de um militar, estudou para ser monge beneditino no Colégio São Bento, em São Paulo, onde chegou a escrever um livro sobre a ordem. No entanto, acabou seguindo o caminho da poesia – em meio aos agitos culturais e políticos dos anos 1960 e 1970. Sua obra poética reúne seis livros básicos (não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase, Polonaises – reunidos na coletânea de Caprichos & relaxos –, Distraídos venceremos e os póstumos La vie en close e O ex-estranho), além de Winterinverno. Todos esses livros ganham análises apuradas em Aço em flor, que procurar esmiuçar alguns desses poemas com olhar crítico sensível, procurando, como especifica o título de um capítulo, “As faces de Leminski” – em que cabem as convergências com Bashô e o haicai e com Torquato Neto e a Tropicália.
Por sua vez, em “Ler, desler, contraler: convergências com Augusto de Campos”, Marques elabora um olhar a partir do trânsito entre as obras de Augusto de Campos e Paulo Leminski. Entre os maiores amigos de Leminski, estavam, como se sabe, não apenas Augusto, como também Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Sobre eles, Leminski falava com interesse: “Eu tinha 17 anos quando entrei em contato com Augusto, Décio e Haroldo. O bonde já estava andando. A cisão entre concretos paulistas e neoconcretos cariocas já tinha acontecido. Olhei e disse: são esses os caras. Nunca me decepcionei. Neste país de pangarés tentando correr na primeira raia, até hoje eles dão de dez a zero em qualquer um desses times de várzea que se formam por aí”. O poeta paranaense conheceu os poetas do grupo Noigandres, em 1963, na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda.
Em seguida, publicaria, em dois exemplares da revista Invenção, alguns poemas, misturando, segundo a apresentação de Décio Pignatari, “a pesquisa concreta da linguagem com um sentido oswaldiano de humor”. Além disso, Leminski quis, à sua maneira, dialogar com os concretos, com seu ousado Catatau, um romance experimental na linha de Ulisses e Finnegans wake, de James Joyce, e de Galáxias, do inspirador Haroldo de Campos. É baseado nisso que Marques expande seu olhar para o que inspirou Leminski nesse panorama de leituras.
Seu estudo visualiza Leminski exatamente como Haroldo, para quem Leminski era o nome mais representativo “de uma certa geração”, “dono de uma experiência poética de vida extraordinária, mescla de Rimbaud e monge beneditino”. Haroldo o cita em dois poemas de seu livro Crisantempo – No espaço curvo nasce um, um deles chamado “paulo leminski”, sobre a partida dele: “samurai mestiço / te recordo / polaco polilingue / nos anos 60 / (...) / você / partiu agora / entremeado às estrelas de iessiênin / enquanto o crepúsculo roxo / de tua cidade simbolista te chora / você sonha / como o poeta japonês / o após-sonho dos samurais mortos” – aproximando-o da poesia japonesa de Bashô e da poesia russa dos poetas que cometeram suicídio tão jovens, como Iessiênin e Maiakóvski, os quais Leminski admirava.
Hoje pode-se dizer que, de certo modo, Leminski é visto como um poeta às vezes de escritos excessivamente ligeiros por alguns e um poeta mais conservador pelos poetas que se apresentam ainda como vanguarda, situando-se, paradoxalmente, entre esses dois extremos. Leminski guarda proximidade com a poesia alternativa dos anos 70, como a de Cacaso e Chacal, apenas no poema curto, mas sua linguagem era mais formalista. A poesia concreta, nos anos 1970, foi combatida pela dita poesia marginal, pois era vista como um mal à expressão mais espontânea. Em Flora Süssekind, vemos que Leminski aposta numa “interiorização”. Em meio a esse panorama de comercialização de quase diários, embora os marginais distribuíssem seus livros mimeografados contra o domínio das editoras, os irmãos Campos, por exemplo, só publicaram seus primeiros livros de poemas comerciais depois de meados dos anos 70.
Na publicidade, campo que Fabrício Marques analisa, Leminski agia, com amigos, para compor suas obras underground, sem nenhum patrocínio ou cuidados especiais – nesse ponto, ele tinha algo de poeta marginal. Quanto à mistura entre o coloquial e a escrita, Leminski adaptava o coloquial a uma forma, inclusive aproveitando-se de fragmentos que lembrassem conversas.
Nisso Leminski possuía outro elemento importante, e Aço em flor assim indica: seu diálogo se estendia para toda a tradição da poesia brasileira – sobretudo com o modernismo de 22 –, mas também para escritores estrangeiros, na prosa e na poesia, como Mallarmé, Joyce e Rimbaud, e marca presença na entrevista com Mario Cámara, estabelecendo a poesia de Leminski para além do Brasil. Por isso, é substancial como nos capítulos “Do rigor para o acaso”, “Do acaso para o rigor” e “Paixão do rigor, jogos do acaso”, o tríptico que se encaminha no fim do seu estudo, Fabrício Marques ingressa na análise de Leminski sob a influência de Mallarmé, fazendo uma extensa interpretação sobre conceitos como rigor e acaso – que dialogam com o relaxamento de Caprichos & relaxos.. O poema que define exemplarmente, a meu ver, essa ligação de Leminski com a tradição difícil, que quis enfrentar, é “féretro para uma gaveta”:
esta a gaveta do vício
rimbaud tinha uma
muitas hendrix
mallarmé nenhuma
esta a gaveta
de um armário impossível
A gaveta de Mallarmé, ao contrário das de Hendrix e Rimbaud, é a gaveta do armário impossível, a gaveta que parece acompanhar a ironia do seguinte poema: “um dia desses quero ser / um grande poeta inglês / do século passado / dizer / ó céu ó mar ó clã ó destino / lutar na índia em 1866 / e sumir num naufrágio clandestino”. Ao mesmo tempo, é a tentativa de Leminski alcançar Mallarmé: “tampouco creio / que mallarmé / visse mais / que esse olho / nesse espelho / agora / nunca / me vê”. São esses múltiplos caminhos apontando para a obra de Leminski que continuam fazendo de Aço em flor um estudo tão fundamental e proveitoso para o leitor.
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* André Dick é poeta, crítico literário e de cinema, autor de Neste momento (Kotter Editorial), entre outros. Organizou, com Fabiano Calixto, A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski (Lamparina, 2005).
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