Por Trajano Vieira
Permito-me iniciar este breve comentário com uma nota pessoal. A arte no horizonte do provável (editora Perspectiva) foi, ao lado do ABC da literatura de Ezra Pound, o principal livro nos meus anos de formação. Foi a obra que mais reli ao longo do tempo. Comprei-o aos 17 anos, por indicação do saudoso Francisco Achcar. Décadas depois, ao mostrar a Haroldo de Campos o exemplar "detonado" que possuo até hoje, ele o pegou da minha mão para escrever a seguinte dedicatória: “Ao Trajano, que tem ‘curtido’ tanto este livro (para minha alegria!) com a amizade afetuosa do Haroldo”.
Excetuando um capítulo (“Poesia de vanguarda brasileira e alemã”), todos os demais foram publicados originalmente em jornais de grande circulação, o que deve surpreender os leitores mais jovens, que talvez ignorem o quanto já foram bons os cadernos culturais de nossa imprensa.
No ensaio de abertura, que dá nome ao título do livro, Haroldo de Campos examina alguns fundamentos da expressão de vanguarda, da poesia à música, como a permutação de módulos e a transitoriedade dos sentidos na cultura predominantemente técnica. Montagem e efeito aleatório, disseminação e cálculo rigoroso, programação e dispersão são alguns dos tópicos destacados por Haroldo de Campos na obra de Pierre Boulez, John Cage, Karlheinz Stockhausen, Décio Pignatari, Augusto de Campos.
No capítulo seguinte, dedicado às colagens de Kurt Schwitters (a denominada arte MERZ), Haroldo traduz admiravelmente o poema “Anna Blume” (“Anaflor”, com sua abertura lapidar: “Ó amada dos meus vinte-e-sete sentidos, eu / te amo!”), submetido a uma análise comparativa com o Finnegans wake de James Joyce.
O livro contém muitas outras preciosidades, como, na minha opinião, a mais notável tradução de um poema de Píndaro em português, antecedido por um ensaio provocativo e antiacadêmico (“Píndaro, hoje”). Creio que Bruno Gentili, fino helenista italiano, especialista em Píndaro, foi mencionado pela primeira vez no Brasil nesse ensaio de Haroldo de Campos. Tal referência se dá no âmbito da revista de vanguarda italiana Il Verri, o que evidencia um traço recorrente na produção do tradutor: o trânsito entre o campo universitário (desde que arejado, evidentemente) e o poético.
A arte no horizonte do provável revela dois aspectos centrais da poética de Haroldo, retomados em sua produção posterior. Por um lado, a influência da noção de paideuma de Ezra Pound, isto é, a preocupação em oferecer um recorte original de poemas imprescindíveis aos interessados em inovação; por outro, o emprego extremamente funcional de questões teóricas abordadas pelo formalismo russo e pelo estruturalismo. Onde a influência dessas correntes teóricas mais se evidencia é nas análises que antecedem algumas das traduções, nas quais Haroldo apresenta microunidades formais, de algum modo correspondidas em suas traduções (esse tipo de abordagem será aprofundado em outro livro fundamental: A reOperação do texto, também editado pela Perspectiva). Esses comentários elucidam correspondências nem sempre evidentes nas diferentes camadas da linguagem. Há um interesse formador no projeto do autor, na esteira poundiana: possibilitar a ampliação do repertório poético e trazer à luz aspectos vibrantes de escritores de épocas e origens distintas. Isso tem a ver com sua visão sincrônica da história literária, examinada nos capítulos “O samurai e o kakemono” e “Apostila: Diacronia e Sincronia”. A originalidade impõe-se e o passado revive quando responde à expectativa criativa do presente. Não que outras dimensões do passado literário careçam de relevância, mas se destinam sobretudo ao escrutínio da erudição documental.
Bashô, Ungaretti, Píndaro, Kitasono Katue, Hoelderlin, Leopardi (haverá melhor tradução de “L’infinito”?), Arno Holz, August Stramm, Kandinsky, Brecht são alguns dos autores vertidos e comentados, sempre de uma angulação nova, com associações inusitadas, que nos levam a relê-los de uma perspectiva inusual (a aproximação, por exemplo, entre Holz e Sousândrade, entre um poema de Stramm e outro de Mário de Andrade).
A complexidade do livro merece estudo mais detalhado, que revelará o caráter aberto da poética de Haroldo e a figura de mosaico que define sua sensibilidade literária. Ou talvez seja mais pertinente falar em natureza prismática, composta por reflexos de luz que se direcionam para regiões incomuns, numa rara aliança entre rigor e invenção. O leitor concluirá, ao final da aventura prazerosa, que o projeto moderno permanece vivo. Os caminhos sugeridos por Haroldo, sua curiosidade voltada para a inovação, não parecem configurar uma geografia do passado, mas um universo que emite sua voz do futuro, para lembrar outro poeta traduzido primorosamente por ele: Velimir Khlébnikov. Os lampejos vibrantes de fragmentos literários de altíssima qualidade continuam a comprovar a sintonia do autor com o tempo que virá.
Como se pode constatar, minha intenção ao escrever esta nota celebrativa é apenas convidar quem curte poesia a ler e reler essa obra fascinante, que está além do tom eventualmente apologético com que se possa homenageá-la nesta data em que Haroldo de Campos completaria 94 anos.
Concluo como comecei, com um registro pessoal. A arte no horizonte do provável realiza a proposta do título: amplia o horizonte para o que até então parecia improvável. No meu caso, decidi dedicar-me ao grego clássico depois de ler, há 47 anos, a tradução da “Primeira ode pítica” de Píndaro, incluída no volume. Como registrei, desconheço melhor tradução do epinício. Não sei se alguém conseguiu captar tão bem o espírito do poeta tebano como Haroldo de Campos. Leia-se, por exemplo, a seguinte passagem:
Guarda em beleza a flor do teu caráter.
Se amas sempre ouvir o que é doce de ouvir
não te canses de ser generoso:
como o bom piloto, livra a vela ao vento.
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* Trajano Vieira é doutor em literatura grega pela USP e professor no IEL da Unicamp. Publicou, entre outros, Édipo Rei de Sófocles (Perspectiva, 2001) e Édipo em colono de Sófocles (Perspectiva, 2005). Colaborou, ao longo de dez anos, com Haroldo de Campos, em sua tradução da Ilíada de Homero, encarregando-se da organização dessa obra (Arx, 2001).
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