Por Isabel Cristina Corgosinho
No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada.
Clarice Lispector
O romance A Hora da Estrela, escrito em 1977 por Clarice Lispector, pode ser considerado um diálogo de continuidade da problemática do sertão, tematizada por escritores como Euclides da Cunha, Raquel de Queiroz, João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, com os quais podemos traçar os caminhos e descaminhos da prole rural sertaneja. A questão central da linguagem, do aprendizado pela pedra, que se transfigura na transpiração construtiva do jogo ficcional, moldam os personagens total ou parcialmente destituídos de uma posição axiológica via comunicação, quando muito conseguem estabelecer o contato fático com os outros personagens, principalmente quando são forçados a emigrar do habitat sertanejo. Fabiano se vê oprimido, vilipendiado pelas forças coercitivas do estado oligárquico, principalmente representado pelas fardas amarelas opressoras; Severino retirante, de João Cabral, vai declamando a sina marcada do sertanejo em sua árida travessia do sertão à cidade. Na obra de Clarice, o sertão X cidade problematiza o lugar de fala, ausência, estranhamentos, indagações que nos remetem ao sertanejo filósofo Riobaldo Range-Rede, Lispector capta o delicado essencial:
Se há veracidade nela _ e é claro que a história é verdadeira embora inventada _ que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro _ existe a quem falte o delicado essencial. (LISPECTOR, 1992, p. 26)
No romance de Clarice, tanto Macabéa quanto Olímpico e o próprio autor criador Rodrigo S.M[1] são nordestinos que imigraram para o sudeste do país, a fim de encontrar melhores condições de vida. Assim como existe a incomunicabilidade que marca a existência dramática da personagem Fabiano de Vidas Secas, a personagem Macabéa vai experimentar de forma radical o exílio e o não pertencimento como um abismo escarpado de palavras que a separa do universo urbano do Rio de Janeiro: (...) _ limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. (...) só tinha até o terceiro ano primário. (LISPECTOR, 1992, p. 29)
O autor Rodrigo S. M vai tentar moldar uma personagem para problematizar linguagem, pensamento e cultura numa relação dialógica e intrínseca ao ser humano. Encena o drama de uma personagem ilhada por diferentes tipos de signos que proliferam na grande cidade: “É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina.” (p.26). A perdição refere-se ao estado de incomunicabilidade: Macabéa é incapaz de expressar seus pensamentos, a pobreza que se manifesta em sua subjetividade, desejos e sentimentos expõe um tipo de pensamento inábil a dar sentido à realidade que a cerca.
A mudez da personagem e sua incompressibilidade da vida desvelam o problema do conhecimento do mundo por meio da consciência e da relação intrínseca entre pensamento e linguagem, destacando um problema filosófico em alto grau de importância para Lispector. Por outro, a reflexão sobre linguagem e pensamento ganha textura e sentidos quando Macabéa começa a indagar sobre os significados das palavras. O mesmo narrador que zomba da incompetência linguística da nordestina desconstrói o preconceito, a partir da seleção de perguntas de Macabéa dirigidas a Olímpico e principalmente ao leitor.
A ironia subjacente na fala de Rodrigo desenha Olímpico como um iniciante na carreira do medalhão machadiano, que se esforça para o grande aprendizado do discurso populista com ambições de se tornar deputado à custa dos votos dos conterrâneos nordestinos: “ É, você não tem solução. Quanto a mim, de tanto me chamarem, eu virei eu. No sertão da Paraíba não há quem não saiba quem é Olímpico. E um dia o mundo todo vai saber de mim.” (LISPECTOR, 1992, p. 65). Ao perguntar sobre os sentidos das palavras, Macabéa acaba por nos mostrar a danosa automatização da linguagem pelos clichês usados pelos demais personagens, de maneira que o problema da incomunicabilidade não ocorre apenas entre ela e o contexto urbano do Rio de Janeiro, mas entre todas as pessoas, independente da classe social. Chama atenção para a pobreza da comunicação entre as pessoas, para a invasão dos textos persuasivos com destaque para o publicitário, para a retórica do vazio proferida por Olímpico e para a repetição de expressões e frases de efeito: “Quem não se enfeita, por si mesma se enjeita.” (LISPECTOR, 1992, p. 93)
Macabéa provoca o leitor a observar a automatização da língua, o uso ordinário das palavras no cotidiano. Na sua ignorância e ingenuidade, a personagem nordestina nos coloca frente ao fascínio pelo novo, pelo tecnológico, pela fome do saber, em contato com a emoção genuína pela música, a curiosidade criativa pelas coisas mais inusitadas e aparentemente banais. Em virtude dessa ambivalência da incomunicabilidade, não é apenas Rodrigo e Olímpico que se enredam nas supostas obviedades das perguntas dela, também o leitor começa a se perguntar e questionar sobre os condicionamentos, os sentidos imediatos desgastados, nos discursos monológicos e autoritários das instituições religiosas, políticas e culturais. A ambivalente incomunicabilidade opera a desautomatização dos discursos primários recorrentes nas esferas sociais. A ambivalência é uma dupla chama projetada sobre o drama do mundo escrito e o mundo não escrito que atormenta o escritor.
Nas despretensiosas perguntas, a retirante lança questionamentos que movimentam o senso comum: “A Rádio Relógio diz que dá hora certa, cultura e anúncios. Que quer dizer cultura? _ Cultura é cultura _ continuou ele emburrado. _ Você também vive me encostando na parede.” (LISPECTOR, 1992, p. 67). Ao indagar sobre o significado de cultura, Macabéa reinaugura a palavra, cuja resposta recobre todos os aspectos das experiências e conhecimentos humanos, que se transformam dinamicamente, e cuja denúncia se manifesta no caráter ostensivo da indústria cultural sobre a diversidade cultural. Macabéa ouve a Rádio Relógio e é por esse meio que mantém contato com o mundo exterior, que lhe parece absurdo e ao mesmo tempo maravilhoso, por isso a retomada intertextual com Alice no País das maravilhas:
Em pequena ela vira uma casa pintada de rosa e branco com um quintal onde havia um poço com cacimba e tudo. Era bom olhar para dentro. Então seu ideal se transformara nisso: em vir a ter um poço só para ela. Mas não sabia como fazer e então perguntou a Olímpico:
_ Você sabe se a gente pode comprar um buraco?
_ Olhe, você não reparou até agora, não desconfiou que tudo que você pergunta não tem resposta?
_ Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um homem escreveu um livro chamado “Alice no País das Maravilhas” e que era também um matemático? (LISPECTOR, 1992, p. 65-66).
Assim como Alice, Macabéa tenta desvendar os mistérios de um mundo desconhecido, que muda invariavelmente de forma, direção, numa cidade armadilha, que funciona indiferente a ela. O autor criador nos diz que é uma moça cariada no corpo inteiro, cheia de dor e alegrias que não se explicam, a dança consigo mesma é uma espécie de inventário da solidão, ensaio para sua hora de estrela. Música, maestro!
A música na partitura comunicativa da obra
A experiência humana apoia-se no mito e na ciência com modos de organização: o mito envolve particularmente a emoção enquanto a ciência baseia-se na razão. A arte inaugura um novo modo de demudar a experiência vivida em objeto de conhecimento, mobilizando, por sua vez, o sentimento. Os conhecimentos logicamente organizados, fundados em abstrações genéricas, não esgotam o entendimento do mundo. Distanciam-se do dado sensorial, do momento vivido. O entendimento também pode se dar pela intuição, pelo conhecimento imediato da forma concreta e individual, que não se comunica à razão, porém à imaginação e ao sentimento. Daí, podemos concluir que a arte é um fenômeno excepcional de compreensão do mundo, porque opera em duas vias: tanto para o criador da obra singular e concreta, o artista, quanto para o receptor que cria e recria entendimentos ao penetrar-lhe os sentidos. Para ilustrar a assertiva da arte como forma de pensamento, relatamos a história dos bastidores da criação da ária À flauta Mágica[2]: a sogra de Mozart, emocionada e muito irritada, conta ao compositor por que a filha dela o abandonou. Ele, a princípio interessado em saber as motivações de sua esposa, pausadamente deixa de prestar atenção às palavras para sintonizar com a melodia e ritmo do discurso, ou seja, ele ouve, por trás do inflamado discurso, a musicalidade e compõe a ária para A Flauta Mágica. Pelo poder seletivo e interpretativo dos seus sentidos, Mozart percebe formas que não podem ser nomeadas, que não podem ser reduzidas a um discurso verbal explicativo, pois elas precisam ser sentidas, e não explicadas. É, portanto, a partir dessa intuição que o artista não cria mais cópia da natureza, mas símbolos dessa mesma natureza e da vida humana. A ilustração da ária de Mozart fortalece as reflexões de Jan Mukarovský[3] ao afirmar que a música é a arte onde menos se manifestam as conexões diretas com a esfera extra-artística. Este fato é causado pelo peculiar caráter do material – a nota musical, que, sendo concebida necessariamente como componente do sistema tonal, contém já, por si própria, uma cambiante estética.
O delicado essencial está impregnado nas sensações causadas pela música como revelação de um entendimento indescritível do mundo, via intuição, percepção e alteração dos sentidos. É com o corpo que se alcança esse estado de entrega à vibração musical: a visão, o tato, o olfato, a audição, o paladar. Para que haja uma dedicação plena, é preciso mobilizar todo o sistema sensorial, única via de acesso às zonas assustadoramente inesperadas, a explosão de eu em relação de alteridade com profetas criadores, portais para uma meditação, cujo vazio tem a forma do som, do ritmo, da melodia: “As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais, estalactites, renda, música transfigurada de órgão. [...]. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta. (LISPECTOR, 1992,p. 30-31).
A música entra no enredo como a única linguagem capaz de traduzir a incomunicável personagem clariciana, Una furtiva lacrima toca-lhe profundamente os sentidos a ponto de fazê-la chorar, descobre que existe o delicado essencial da percepção dos sentidos. A música participa do embate colocado pelo autor entre o mundo escrito e o mundo não escrito, da imponderabilidade da realidade frente à escrita: “Terei castigo de morte por falar de uma vida que contém como todas as nossas vidas um segredo inviolável”? (LISPECTOR, 1992, 55)
Para dar um tom de denúncia não basta apenas a literatura, por isso Clarice escolhe a música como ritmo marcante no romance, porque só a mais subjetiva de todas as artes pode revelar, em acordes misteriosos, o destino da personagem Macabéa, como a Morte e transfiguração, de Richard Strauss, por exemplo. A música também propicia o silêncio e a meditação necessários para se atingir epifanicamente o mundo dos mistérios, do indizível e do vazio. Esse é o mundo habitado pelo autor, que age conscientemente em busca do transcendente com o pé fincado na vida, no social e na linguagem. Jan Mukarovský cita o ensaio The Critic As Artist de Oscar Wilde, ali o escritor inglês descreve com grande exatidão esta relação múltipla da música e, apesar do seu caráter materialmente indeterminado, autêntica:
De cada vez que toco alguma peça de Chopin tenho a sensação de estar a chorar pecados que nunca cometi e de estar triste por causa de tragédias que nunca vivi. Parece-me que a música me provoca sempre esta sensação. Cria no homem um passado que ele desconhecia e enche-o de uma atmosfera de tristeza que suas lágrimas ainda não descobriram. Posso imaginar um homem que, depois de ter vivido uma vida completamente cinzenta, ao escutar por acaso uma certa composição descobre que a sua alma, sem ele saber, passou por experiências terríveis e conheceu prazeres assombrosos, ferozes amores românticos ou grandes abnegações. (MUKOROVSKÝ, 1979, p.75)
Experiências que a pessoa não teve, mas poderia ter tido; biografias em potência sem conteúdo concreto, eis como Wilde caracteriza a relação autêntica da música; as suas palavras exprimem poeticamente a multiplicidade e a indeterminação material da relação autêntica da obra artística com respeito ao seu signo. Semelhante experiência encontra-se na dedicatória de Clarice na abertura do romance, mas Macabéa também vivencia as mesmas sensações do refinado autor de O retrato de Dorian Gray.
Sabe o que mais eu aprendi? Eles disseram que se devia ter alegria de viver. Então eu tenho. Eu também ouvi uma música linda, eu até chorei.
_ Era samba?
_ Acho que era. E cantada por um homem chamado Caruso que se diz que já morreu. A voz era tão macia que até doía ouvir. A música chamava-se “Una Furtiva Lacrima”. Não sei por que eles não disseram lágrima.
“Uma Furtiva Lacrima” fora a única coisa belíssima na sua vida. Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira. Mas a sua voz era crua e tão desafinada com ela mesma era. Quando ouviu começara a chorar. Era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha tanta água nos olhos. Chorava, assoava o nariz sem saber mais por que chorava. Não chorava por causa da vida que levava: porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que com ela era “assim”. Mas também creio que chorava porque, através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até com certo luxo de alma. Muitas coisas sabia que não sabia entender. “Aristocracia” significaria por acaso uma graça concedida? Provavelmente. Se é assim, que assim seja. O mergulho na vastidão do mundo musical que não carecia de se entender. Seu coração disparara. E junto de Olímpico ficou de repente corajosa e arrojando-se no desconhecido de si mesma disse:
_ Eu acho que até sei cantar essa música. Lá-lá-lá-la-lá.
_ Você até parece uma muda cantando. Voz de cana rachada.
_ Deve ser porque é a primeira vez que canto na vida.
Ela achava que “lacrima” em vez de lágrima era erro do homem da rádio. Nunca lhe ocorrera a existência de outra língua e pensava que no Brasil se falava brasileiro. Além dos cargueiros do mar nos domingos, só tinha essa música. O substrato último da música era a sua única vibração. (LISPECTOR, 1992, pp. 67-68)
Pelas mesmas razões outro poeta, Paul Valéry, em Eupalinos[4], considera inesgotável a emoção que a música proporciona; a música, privada de função comunicativa, põe a descoberto com maior clareza que as artes temáticas o caráter específico do signo artístico. Qual é, então, o suporte da sua significação? Não é o conteúdo, pois que não o há, mas sim as componentes formais: o nível tonal, a formação melódica e rítmica, o timbre etc. Por isso neste caso a relação autêntica serve muito mais para conseguir uma atitude global perante a realidade que para esclarecer qualquer realidade particular. Mas esta é, precisamente, a característica geral da arte como signo.
Clarice antecipa, com a sua dedicatória, o cruzamento da arte temática, a literatura com a música, para dar relevo ao caráter específico do signo artístico em constante dialogia entre artes. Como o romance de Clarice é arquitetado em questões abertas, inconclusivas, o autor criador vale-se de outra arte. Para dar voz à linguagem concreta, perceptível da personagem, com manifestação imediata, a música é a escolhida, por ser capaz de traduzir as ambiguidades do silêncio e do som que cercam o mundo incomunicável da moça nordestina. Na dedicatória, encontram-se importantes chaves para a compreensão da movediça personagem. Quando Clarice assina a dedicatória, ela oferece um ponto de partida para o autor criador e trilhas possíveis para o leitor, rastros nas veredas que aproximam a estrela de sua experiência no mundo, sincronizando seu relógio com sincopadas explosões de notas musicais.
Pois que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são hoje ossos, ai de nós. [...]. Dedico-me à tempestade de Beethoven. À vibração das cores neutras de Bach. A Chopin que me amolece os ossos. A Stravinsky que me espantou e com quem voei em fogo. À “Morte e Transfiguração”, em que Richard Strauss me revela um destino? Sobretudo dedico-me às vésperas de hoje e a hoje, ao transparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a Schönberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos eletrônicos _ a todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em: eu. Esse eu que é vós pois não aguento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a meditação. Meditar não precisa ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever. (CLARICE, 1992, P. 22)
É marcadamente intencional a presença dos grandes compositores no prefácio da obra, aos quais Clarice dedica e dedica-se: numa simbiose entre o repertório criativo e o eu criador. Em dedicar-se, vemos sublinhado o empenho de continuidade, de elo profundo, para o qual a música ocupa um espaço fundamental. Há uma transfiguração do eu social para um eu desconhecido e inacabado, para consigo mesmo num mergulho a partir da anterioridade para a interioridade. Força-nos a descobrir e entender a relação que a música mantém com o enredo metaficcional que problematiza o drama do escritor diante do mundo escrito e não escrito, a significação da música recortando a narrativa em explosões aproxima os dois mundos.
Apesar de uma manifestação musical não comunicar, ela pode estabelecer aquela relação autêntica, de um modo muito intenso, com extensas esferas da experiência vivida do receptor, e , portanto, com os valores para ele válidos _ a mesma relação que observamos como características das manifestações de função estética dominante nas artes temáticas: O LAMENTO DE UM BLUE; ASSOVIO NO VENTO ESCURO; HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL são algumas das propostas de Clarice para impregnar a tessitura do texto com a música, marcando com ela os alvos dos grandes acontecimentos, pontuando seus acordes com os timbres de limites e explosões. A música, de acordo com a sua essência, não comunica por meio de recursos como as citações, as citações autorizadas etc. No entanto, pode tender para a comunicação, mas essa comunicação é a negação do seu próprio caráter, tal como na poesia ou na pintura o foi um fenômeno contrário, a tendência para o atemático: “As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais, estalactites, renda, música transfigurada de órgão.” (LISPECTOR, 1992, p. 31). Nesse romance, o autor criador toma para si não apenas o confronto com a linguagem, mas explicita a sua própria crise existencial:
Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente _ é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade. (LISPECTOR, 1992, p. 25).
É o momento no qual o escritor decide narrar qualquer coisa que possa agir sobre o mundo, por meio da multiplicidade de sentidos que saltam da orquestração de instrumentos musicais que coadunam com o silêncio e o som. A dedicatória aos clássicos desdobra-se num significativo evento compositivo da narrativa. Os instrumentos musicais ajudam a construir novos sentidos aos conteúdos subjetivos da vida da personagem e do autor criador. O canto alto de uma melodia sincopada e estridente do autor angustiado exigirá outros acordes musicais. O rufar de tambores (p.37) marca a dificuldade do autor no conflito em expressar o mundo não escrito, bem como o estranhamento sofrido pela incauta nordestina no confronto com a máquina do mundo. Os sons dos tambores alardeiam quando Macabéa mira-se no espelho, e o próprio Rodrigo se vê refletido, expressando a dificuldade do autor em separar sua história e avançar na narrativa sobre a personagem. O violino (p.39-101) é o instrumento escolhido pelo autor como melodia de fundo, notas permanentes que alertam para as dores físicas e a inconsciência dos dramas existenciais, sempre marcadas pelas chuvas que acompanham o ritmo de um violino plangente. São, ainda, as notas melancólicas do violino que acompanham a entorpecida agonia de Macabéa em seu silêncio final. O autor criador Rodrigo relata que “apareceu, portanto, um homem magro de paletó puído tocando violino na esquina”. (LISPECTOR, 1992, p. 101). Revolvendo a memória de experiências, anuncia o sentido recém-descoberto: “Só agora entendo e só agora brotou-se-me o sentido secreto: o violino é um aviso. Sei que quando eu morrer vou ouvir o violino do homem e pedirei música, música, música”. (LISPECTOR, 1992, p. 101). A constante referência ao violino é a chave interpretativa que esclarece a relação entre o plangente instrumento e a morte de Macabéa, morte gradativamente anunciada pelo autor e fechando com um título irônico e paradoxal A Hora da Estrela.
O canto (p. 48-68-104) não poderia estar ausente como instrumento musical, acompanha as reminiscências da infância da personagem em alegre idílio de meninas brincando de roda de mãos dadas. Escoltando o violino, o canto também aparece associado à morte:
Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois na hora da morte da pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes. (LISPECTOR, 1992, p.44)
Além do tambor, que marca os acordes mais intensos em assinaladas explosões nos momentos cruciais da narrativa, o soar da trombeta aguça os sentidos do leitor para as diversas referências que a cartomante faz de Jesus, numa fina ironia que recorta todo discurso fantasioso e paradoxal da cartomante charlatã: “agora ouvia a madama como se ouvisse uma trombeta vinda dos céus.” (LISPECTOR, 1992, 95). A mensagem da trombeta confronta as carências, as lacunas, a falta, o corpo cariado de Macabéa, que a partir da consulta com a cartomante vislumbra uma genuína esperança.
Os instrumentos estão voltados para o mundo perceptivo dos personagens e dos leitores, mas também para o processo criativo, para a explícita metaficcionalidade da narrativa, como na passagem que invoca a flauta doce: “A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto. Sim, e talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó.” (LISPECTOR, 1992, p. 35).
O piano, instrumento tão distante do mundo adverso de Macabéa, aparece raramente na idiossincrásica partitura clariciana. Ele é mencionado em inusitados movimentos e escassas oportunidades de vinculação da moça nordestina com o mundo exterior. Ao descrever o lugar onde ela divide um quarto com outras moças, Rodrigo convoca nossa audição: “O cais imundo dava-lhe saudade do futuro. [...] Pois estou como que ouvindo acordes de piano alegre, será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro esplendoroso? (LISPECTOR,1992, p.45). Os acordes anunciadores de um futuro evolam-se em definitivo silêncio, são apenas acordes soltos, inaudíveis sussurros de adeus na hora última da estrela.
A tragédia anunciada recebe outro símbolo sonoro, os sinos, que oprimem a mente do narrador, enquanto escreve e lida com os fatos como se fossem irremediáveis: “embora queira que para me animar sinos badalem enquanto adivinho a realidade”. (LISPECTOR, 1992, p. 32). Por quem os sinos dobram? “Pronto, passou. Morta, os sinos badalavam, mas sem que seus bronzes lhes dessem som. Agora entende essa história. Ela é a iminência que há nos sinos que quase-quase badalam. A grandeza de cada um” (LISPECTOR, 1992, P. 105).
Conclusão
Se compararmos com os romances anteriores de Clarice, a base metaficcional nunca foi tão explícita como procedimento intencional como nesta obra. As inserções do narrador sobre o processo de criação, personagens duais, máscaras cambiantes e complexas moldam os caracteres dos seres de papel. As intencionais imbricações com a linguagem musical: os instrumentos e suas melodias constroem com as palavras o ritmo da narrativa, os planos superpostos de irônicas intrusões de um narrador camaleão, engendram criativamente uma práxis de criação romanesca e crítica literária. A ilusão ficcional é posta terra abaixo, e o processo criativo passa a ser o leitmotiv da obra.
Em a Hora da Estrela, a autora de Laços de Família coloca questões sociais que problematizam a identidade nacional, faz emergir a exploração da classe trabalhadora, a solidão feminina, o machismo, a cultura da esperteza, a ignorância, a hostilidade da cidade com seus nervos de ferro e faces encardidas do concreto. É o tema incontornável do êxodo rural. O romance está repleto de signos de corporações, multinacionais ( Coca-cola, hot-dog, slogans, Lojas Americanas etc), que figurativizam a ausência de uma alteridade cultural do Brasil, que se contraponha ao perverso neocolonialismo no país. É pelas vozes literária e musical, ao projetarem a personagem nordestina, que o Brasil revela sua face cariada. As Macabéas invisíveis e incomunicáveis continuam povoando um Brasil cada vez mais desigual. Para além das fronteiras nacionais, milhares de Macabéas são arrastadas, acossadas com seus filhos nas fronteiras de um mundo em guerra, repelidas pela xenofobia, intolerância religiosa, ganância e ações fascistas que as laçam aos mares bravios. O mal-estar da personagem é uma extensão do mal-estar do povo brasileiro, seguido pelo mal-estar da civilização.
Referências bibliográficas
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______. Questões de literatura e de estética – a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et alii. São Paulo: Editora UNESP, 1993.
CORGOSINHO, Isabel Cristina. Se um viajante no tempo grande do romance: entre a angústia da escritura e o prazer da leitura, em Italo Calvino no período 2010-14. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) – Pós-Lit. Universidade de Brasília - UnB. Brasília, pp. 278. 2014.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.
______. O carnavalesco e a narrativa contemporânea: cultura popular e erotismo. In: RIBEIRO, G. Ana Paula; SACRAMENTO, Igor. (Orgs). Mikhail Bakhtin: Linguagem, Cultura e Mídia. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
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MUKAROVSKÝ, Jan. Escritos sobre estética e semiótica da arte. Trad. Manuel Ruas. Lisboa: Estampa, 1979.
WAUGH, Patricia.Metafiction: the theory and practice of self-conscious fiction.London & New York:Methuen(New accentes), 1984. Vii , 176 .
[1] Mikhail Bakhtin denomina o autor criador como uma posição estético-formal cuja característica básica está em materializar certa relação axiológica com o herói e seu mundo. (FARACO, 2009, p.89). [2] ARRUDA, Maria. Filosofando: Introdução à filosofia. Relato colhido no Capítulo 30 - Arte como forma de pensamento, p. 373 [3]MUKAROVSKÝ, Jan. Escritos sobre estética e semiótica da arte. Trad. Manuel Ruas. Lisboa: Estampa, 1979. P. 29 [4] Também citado por Mukarosvský ao lado do artigo de Oscar Wilde, 75-76.
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