Por Claudio Daniel
Neste momento, livro de André Dick (Kotter Editorial), é uma surpreendente coleção de poemas que chamam a atenção do leitor pela imersão no imaginário animal – ou zoografia, como diz o poeta --, pelo humor sutil, inteligente, pelo uso recorrente do paradoxo e sobretudo pela construção vocabular precisa, que deriva da tradição cabralina, mas já aponta para outras direções. Em seus livros anteriores, como Grafias, Papeis de parede e Calendário, o autor gaúcho já se revelou um hábil construtor de arquiteturas minimalistas, que valorizam a materialidade da palavra, a sonoridade, os efeitos plásticos e por vezes se aproximam da fotografia ou da pintura hiperrealista de um Hopper. Nesta nova seleção poética, André Dick mantém as conquistas anteriores, mas procura uma renovação de águas, pela amplitude temática e adoção de novas técnicas, sem se render ao discurso fácil do prosaísmo cotidiano, de humor duvidoso que (ainda) faz tanto sucesso midiático em nossas letras. O poeta gaúcho prefere buscar o inusitado em imagens como o “esqueleto de pterodáctilo”, “as estrelas aos poucos se afastando de Saturno” e “um sol de falas múltiplas dentro de uma só voz”. O aspecto lúdico é mais evidente nesse volume do que em sua obra anterior publicada, como se o poeta apresentasse ao leitor uma caixa de jogos e enigmas que não se afastam da realidade imediata, mas a apresentam de maneira inusual: uma realidade composta de instantes fugidios, ruídos, silêncios, imagens apressadas, fragmentadas ou mescladas, regidas pela grande ampulheta do tempo. Em seu passeio lúdico por palavras e situações, o olhar-câmera de André Dick registra “flores carnívoras”, “dentes-de-leão”, “o louva-a-deus e os colibris chegando dos jacarandás”, “um pardal bebendo água no nascedouro”. O eu lírico, quando aparece, em geral é de modo logopaico e irônico, à maneira de Laforgue e Corbière: “Sou a favor de ser contrário”, “Sou inimigo de ser inimigo”, “Hoje estive morto / Hoje senti que fui outro / Hoje vi o oco”, em que notamos a presença da outridade de Sá de Miranda e Sá-Carneiro: o eu é (sempre) um outro, diria Rimbaud. Um eu em metamorfose, uma poesia em metamorfose. A imagem da casa aparece na poesia de André Dick com todo o viés polissêmico possível: é a casa onde morou, a casa que abandonou, a casa dentro de outra pessoa, mas sempre lugar, seja de memória do passado, de vivência no presente ou de encontro amoroso – a casa é o outro. A mutação das coisas, de sua representação e significados, é talvez uma das chaves de leitura dessa obra, “espelho de cores vivas” que nos oferece toda a possibilidade de combinações cromáticas.
O livro de André Dick, com certeza, é uma das melhores realizações da poesia brasileira dos últimos anos.
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