Por Claudio Daniel
Alejandro Lloret, poeta e artista plástico cubano nascido em Yaguajay, na Província de Sancti Spiritus, em 1957, e residente no Brasil desde 1993, é um poeta que, a princípio, poderia ser incluído na vertente do neobarroco, ou neobarroso (como preferia Nestor Perlongher), ao lado de outros poetas de sua geração, como o argentino Reynaldo Jiménez, o uruguaio Victor Sosa, o dominicano León Félix Batista e a brasileira Josely Vianna Baptista. E o que vem a ser o neobarroco? Conforme escreve Severo Sarduy em seu livro Escrito sobre um corpo, a “pérola irregular” barroca (e neobarroca) é a arte da proliferação, do excessivo, do simultâneo. É uma poética centrada nos jogos verbais, no artifício, na invenção sintática, na luxúria metafórica e imagética, na miscigenação de diferentes elementos culturais, no hibridismo e na ruptura dos gêneros, como acontece no Mar Paraguayo de Wilson Bueno e no Catatau de Paulo Leminski. Todos esses elementos estão presentes, com diferenças de temática, tonalidade e timbre, na poesia de autores excêntricos da poesia contemporânea latino-americana, como os cubanos Lezama Lima e José Kozer (e também Severo Sarduy, sobretudo em seus romances), o uruguaio Roberto Echavarren, a mexicana Coral Bracho, o chileno Raul Zurita, o brasileiro Haroldo de Campos, para citarmos poucos nomes, e se desenvolve desde a segunda metade do século XX até hoje, na lírica de autores mais jovens, que sentem o mesmo fascínio por essa floração poética que não é um “movimento” ou “escola”, mas, antes, uma visão de mundo, atitude ética e estética.
Porém, são as singularidades da escrita de Alejandro Lloret, e não a presumível proximidade com essa ou aquela tendência estética que apontam para o frescor e originalidade formal e temática de seus poemas, que merecem ser lidos como performances que transcendem qualquer etiqueta ou rótulo provisório. Círculo recto, primeiro livro de poesia publicado pelo autor – que revela, já no título, um curiosíssimo paradoxo geométrico e conceitual, que remonta a autores gregos como Anaxágoras e Plutarco – é uma reunião de poemas sem título, escritos no Brasil em espanhol, que revelam, ao lado de estilemas já consagrados do alto modernismo e das vanguardas construtivistas, como a valorização do espaço em branco da página, a disposição geométrica das linhas, a fragmentação da palavra, e as imagens poéticas híbridas, a la Lautréamont e Gertrude Stein, uma sensibilidade própria, contemporânea, que traduz bem o dilaceramento e a desconexão do mundo em que vivemos. O sentimento de mundo de Alejandro Lloret se traduz, porém, de modo enigmático, numa tessitura poética altamente sensorial, por vezes sinestésica, que opõe à fealdade do mundo moderno, onde imperam o grande capital financeiro, as corporações transnacionais, a manipulação midiática e a guerra imperialista, um outro mundo, plástico e musical, sensual e lúcido, onde a palavra é soberana, em toda sua rutilância e capacidade de gerar outras realidades simbólicas, à maneira do Criacionismo do chileno Vicente Huidobro, autor de Altazor, poeta fundamental tanto para as vanguardas hispânicas da décadas de 1920 quanto para o neobarroco, ao lado de César Vallejo e Oliverio Girondo.
Na poesia de Alejandro Lloret, membro mais novo dessa excêntrica família literária, encontramos um abstracionismo concreto, ou concretismo abstrato, para usarmos mais um paradoxo, recurso habitual em sua poesia. Em Círculo recto, encontramos construções semânticas de rigorosa arquitetura que expressam a pura subjetividade, o onirismo e essa elevada maneira de resistência à barbárie que é a imaginação, numa quebra das fronteiras habituais entre o concreto e o abstrato, o objetivo e o subjetivo. Podemos falar, aqui, na lógica da metamorfose, conceito utilizado por Claudio Willer em seu ensaio sobre os Cantos de Maldoror: as imagens poéticas se emancipam da obrigação de retratar o visível imediato para evocarem (ou invocarem) as dimensões do invisível, aquilo que o poeta torna real pela palavra poética. Assim, em uma das inusitadas composições do volume – todas escritas em letras minúsculas, sem sinais de pontuação, numa sintaxe menos gramatical do que rítmica – lemos: “/naranjas narayanas dispersan páginas de cuarzo que han / vestidola superfície yogui del cuerpo/ /no hay como huir de la ausência” (laranjas narayanas espalham páginas de quartzo que cobriram / vestiram a superfície do corpo do iogue / / não há como fugir da ausência, em tradução minha). Nesta peça que dialoga com a tradição védica, o poeta aproxima a laranja (naranja) do divino Vishnu (ou Narayana), numa aproximação e subversão do sentido dos termos originais, em favor de um novo sentido, de uma cena quase cinematográfica, em que as “páginas de quartzo” cobrem o corpo do iogue. Em outra composição, mais concisa, o poeta escreve: “los narcisos / duelen / son esquirlas / supérfluas: / cerrados / poemas. / son perras -/ perlas / devoradoras / de corceles” (os narcisos / doem / são estilhaços / supérfluos: / fechados / poemas. / são cadelas - / pérolas / devoradoras / de corcéis). Nestes dois conjuntos de versos, temos uma “alquimia do verbo” rimbaudiana, ou transfiguração dos vocábulos, que reafirmam o potencial do discurso poético como elemento perturbador de qualquer ordem normativa: a poesia tudo pode, porque não se prende a nenhuma camisa-de-força paradigmática: ela alça voo e vai para onde quer, pelo simples delito de dizer a beleza. E a beleza, como escreveu Keats em sua Ode sobre uma urna grega, é a verdade, e a verdade, a beleza.
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