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A transfiguração poética de Rodrigo Garcia Lopes*

Por Jardel Dias Cavalcanti**


Poemas Coligidos (1983-2020), de Rodrigo Garcia Lopes, editado este ano pela Kotter Editorial, reúne sete volumes, publicados ao longo de quase 40 anos, dos seguintes livros: Solarium (1994), Visibilia (1997), Polivox (2001), Nômada (2004, finalista do prêmio Jabuti de 2005), Estúdio Realidade (2013, finalista do prêmio Portugal Telecom de 2014), Experiências Extraordinárias (2015, finalista dos prêmios Oceanos e Jabuti de 2016), e O Enigma das Ondas (2020, semifinalista do Oceanos 2021). 


O livro é um catatau de 616 páginas que reúne seu material principal, a poesia, além de fortuna crítica, prefácios que documentam a produção total de Rodrigo Garcia Lopes (traduções, entrevistas realizadas, publicações de traduções em plaquetes, discos, romance e como editor de revista literária Coyote).


Antes de tudo, é bom que se esclareça que estamos diante de um poeta profundamente sério, que tem dedicado sua vida totalmente à criação artística, seja ela poesia, tradução, romance, música ou crítica. O amadorismo passa longe de tudo o que Rodrigo Garcia Lopes faz.


Não é fácil dar conta numa resenha desta longa produção de quatro décadas em que o poeta se dedicada a uma gestação poética que engloba pesquisa com a linguagem, enfrentamento com os dilemas do seu tempo e questões existenciais.


O poema de abertura, “Phanums”, é uma porta que se abre ao leitor, chamando a sua atenção para o interesse que o poeta tem pelas coisas vívidas: “O pensamento/ não se detém em nada/ mas vagueia/ entre/ cada/ coisa vívida”. Seja a observação de um lugar, uma cor, uma flor, uma nuvem ou qualquer outra coisa, o que os objetos do mundo representam é uma possibilidade de existirem, agora, como elemento poético dentro do verso. Essa “transfiguração do lugar comum”, para usar um termo do filósofo-crítico de arte Arthur Danto, é uma operação que faz reviver a forma ou o sentido de determinado objeto que interessa ao poeta retirar do espaço da prosa do mundo (ou seja, de seu lugar e função utilitária) para que seja percebido em outros termos através da poesia.


A transfiguração pode englobar tanto a presença de objetos, seres, situações como de sua ausência. Veja-se o caso do poema “Londoneliness”, que trata da ausência do som, que entristece o poeta, pois não pode ter nem a presença sonora da chuva, que seria um alívio para sua existência. O poema é criado através de uma espacialidade onde palavras e versos são afastados, numa espécie de zigue-zague que demarca a temporalidade lenta da leitura que é, possivelmente, a da passagem do próprio tempo que se arrasta.


Outro elemento importante na poética de Rodrigo Garcia Lopes é sua relação com a poesia japonesa. Nessa coleção se destaca “Satori Uso”, experiência que graficamente altera o desenho da poesia ocidental (que aqui, agora, se faz presente como se fosse haikus) e insere a observação oriental dos elementos da natureza que se constitui como momento para a reflexão filosófica. Por exemplo: “mínimo tempo/ dado a se viver/ chuva num crisântemo/ um pensamento”.


O poeta também, como exigia Baudelaire, deve às vezes descer aos infernos. É o que faz Rodrigo Garcia Lopes ao observar o mundo à sua volta. Para isso se presta a série de poemas de “Pandemonium”. Um poema que retém a imagem dolorosa do mundo é “Odisseia Paulistana”, retrato duro da alienação contemporânea. Ao retratar a odisseia do homem contemporânea dentro de uma estação de metrô, com direito a ironia da estação de partida chamar-se “Paraíso”, o que temos é o périplo de uma população mergulhada numa “jornada fugaz” rumo a Hades (o submundo, o reino dos mortos). Os “anjos andrajos/ tentando voltar para casa”, “no teatro do absurdo deste instante”, representa aqueles que são sugados pelos objetos alienantes do mercado-capital, como o uso de smartphones e suas narciso-selfs projetadas para um universo paralelo vazio.

Há poemas pesados, que são reflexões atuais sobre a guerra e a violência, como os dois se pode ler abaixo: “Words, Swords” e “Zeitgeist”. Prenúncio de tempos terríveis, onde a vida vale pouco e os senhores do mundo continuam moendo seres humanos como se bestas fossem.


A persistência da qualidade da criação de Rodrigo Garcia Lopes é visível ao se navegar por seus poemas, seguindo qualquer ordem temporal que seja da leitura dos livros aqui organizados. O poeta, de fato, nunca deixa a peteca cair. Há em cada livro um cruzamento equilibrado entre exigência de rigor e sensibilidade, concentração e intuição, razão e imaginação. O fato de poder ter e ler toda a obra de um poeta num único volume amplia nossa relação de prazer com os seus poemas, quando podemos perceber as tensões que animam uma criação singular, com a variação de seus temas, suas preocupações existenciais e sociais e suas possibilidades linguístico-poéticas.

 

***

Dois poemas de Rodrigo Garcia Lopes

 

 

Words, swords 

 

War vem de werre,

A forma do dialeto do norte

Do francês antigo guerre.

Do latim medieval guerra.

Do germânico werra, luta,

‘discórdia, revolta, peleja’;

 usado também na base wers

(origens da palavra inglesa worse, pior,

e da alemã wirren, confuso).

Warrior. Guerreiro.

Um homem confuso.

Logo, guerrear era confundir.

Pior, causar confusão.

E assim erra, entre guerrilhas,

A etimologia.

 

 

 

Zeitgeist 

 

Nocauteando celebridades disfarçadas de pinguins

Monitorando a muvuca das transações e trapaças alpinistas

Serpenteando entre escadarias cravejadas de citações

Chutando o balde do crepúsculo com o bebê da aurora dentro

Chegando firme na dividida com a mentira, pisando o calo da calúnia

Colecionando estoques de paciência e delatores pederastas

Beliscando morenas de fiberglass e pixels de altíssima definição

Pegando marqueteiros pela orelha, levando o bispo milionário pelo pescoço

Mostrando seu catálogo de golpes de jiu-jitsu para web designers

Apavorando editores de moda com crucifixos de merda

Partindo pra ignorância pra cima das floriculturas

Esfaqueando a manhã e as boas intenções com sua adaga afiada

Pulverizando jogadores de genoma e modelos chipadas

Dando geral nos arquivos adulterados dos tribunais de justiça

Assaltando pipoqueiros metafísicos e banqueiros artistas de fim de semana

Distribuindo pirulitos de ácido para críticos literários

Arrebentando a boca da razão com denúncias inconsequentes

Estrangulando docemente a tarde carregada de câmeras de vídeo & trance music Pregando a irresponsabilidade fiscal, e antraz para todos,

Rifando o shopping lotado de ideias fixas com um grito de jihad

O homem-bomba entra no poema.

 

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Rodrigo Garcia Lopes. Poemas Coligidos (1983-2020). Kotter Editorial. 616 páginas. R$ 169,70 (Amazon), R$ 118,79 na loja Kotter: https://kotter.com.br/loja/poemas-coligidos1983-2020-rodrigo-garcia-lopes/


*Resenha publicada originalmente no caderno “Pensar”, de O Estado de Minas, em 2/12/2023.

** Prof. de Crítica de Arte e História da Artes (UEL-PR). Colunista do site: www.digestivocultural.com

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