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“Alea I” e “Alea II”, de Haroldo de Campos: a semelhança não é aleatória

Por Paulo de Toledo


Quando nos deparamos pela primeira vez com os poemas “Alea I - variações semânticas” e “Alea II - variações semânticas”, de Haroldo de Campos, tivemos uma sensação de estranhamento. Afinal, as formas daqueles poemas eram aparentemente muitos diversas não só da fase concretista, mas também do que o poeta escrevera antes e depois da poesia concreta.


Em nota, Haroldo de Campos faz o seguinte esclarecimento a respeito dos poemas acima citados: “Também do momento de empenho participante, estes poemas paródicos foram publicados no nº 5 (dez. 66 / jan. 67) da revista Invenção”[1]. Algo que é importante ressaltar: apesar de essas “variações semânticas” terem sido publicadas naquele número de Invenção, elas foram escritas entre 1962 e 65.


Lembremos que, da “fase participante”, fizeram parte os poemas de Servidão de passagem, de 1961, poemas que, mesmo não sendo estruturados a partir da “matemática da composição”, são claramente organizados segundo certos princípios da poesia concreta. Vejamos esse trecho da obra de 1961[2]:


quem baraço

quem vassalo


quem cavalo

quem cavalga


quem explora

quem espólio


Neste excerto, há o procedimento concretista do uso de vocábulos semelhantes fisicamente (“cavalo”/“cavalga”) e da repetição de estruturas (“quem ...” / quem ...” etc.), além da disposição visual de blocos de textos também fisicamente semelhantes, tendo cada bloco duas linhas e cada linha dois vocábulos. Portanto, a influência da poesia concreta é facilmente verificada nos poemas de Servidão de passagem.


Voltando aos “Alea I” e “Alea II”, vamos reproduzi-los, abaixo, para facilitar o acompanhamento dos nossos comentários pelo leitor.


ALEA I - VARIAÇÕES SEMÂNTICAS[3]

(uma epicomédia de bolso)


O ADMIRÁVEL o louvável o notável o adorável

o grandioso o fabuloso o fenomenal o colossal

o formidável o assombroso o miraculoso o maravilhoso

o generoso o excelso o portentoso o espaventoso

o espetacular o suntuário o feerífico o feérico

o meritíssimo o venerando o sacratissimo o serenissimo

o impoluto o incorrupto o intemerato o intimorato


O ADMERDÁVEL o loucrável o nojável o adourável

o ganglioso o flatuloso o fedormenal o culossádico

o fornicaldo o ascumbroso o iragulosso o matravisgoso

o degeneroso o incestuo o pusdentoso o espasmventroso

o espertacular o supurário o feezífero o pestifério

o merdentíssimo o venalando o cacratíssimo o sifelíssimo

o empaluto o encornupto o entumurado o intumorato




ALEA II- VARIAÇÕES SEMANTICAS[4]


A murcha da camélia com psius pela lerdidade


A mocha da camela com cios pola lubri darda


A micha da cadélia com véus pula líder ladra


A mecha da cavila com zeus para libré dada


A mancha da fabela corréus nera diverdade


A macha da famélia comeus bela livrindháde


programa continuar “ad libitum”

cadência marcha


Comecemos pelo “Alea I”.


O poema é formado por dois blocos de texto. O segundo bloco, como veremos, funciona como um espelho deformante do primeiro.


O primeiro bloco é formado por sete linhas. Cada linha contém quatro expressões formadas por um artigo (“o”) e um adjetivo (ex.: “o louvável”).


O segundo bloco de texto é também formado por sete linhas. E cada linha é também composta por quatro expressões formadas por um artigo (“o”) e um adjetivo. A grande diferença é que, neste bloco de texto, os adjetivos são formados por palavras inventadas, ou, se preferirmos, “palavras-valise” à Joyce (ex.: “loucrável”).


Esse tipo de organização do poema, como havíamos dito, nos parecera incomum dentro da obra haroldiana. Porém, lendo a peça com mais atenção, percebemos que ela possuía muitos pontos de contato com a organização dos poemas concretos.


Primeiramente, os elementos das duas estrofes se relacionam não apenas semanticamente, como também espacialmente. Como se pode observar, a primeira expressão da primeira linha do primeiro bloco de texto (“o admirável”) se relaciona com a primeira expressão da primeira linha do segundo bloco de texto (“o admerdável”). Por sua vez, a segunda expressão (“o louvável”) se relaciona com a segunda (“o loucrável”), e assim sucessivamente.


Temos, portanto, uma relação espacial entre esses elementos, posto que há uma similaridade espacial entre eles. A palavra “nobre” do primeiro bloco de texto se relaciona com a palavra paródica do segundo bloco de texto por meio da similaridade espacial entre elas e não apenas por meio da sua contraposição semântica.


E esse procedimento nos remete à sintaxe espacial-visual concretista.


Além da similaridade espacial, há igualmente uma similaridade física entre as palavras: “admirável” x “admerdável”, “louvável” x loucrável”, “grandioso” x “ganglioso”, “espetacular” x “espertacular” etc.


Essa semelhança física entre os vocábulos nos remete igualmente aos procedimentos concretistas, basta citarmos um poema como “Tensão”, de Augusto de Campos, ou mesmo o “nascemorre”, do próprio Haroldo. E a criação de “palavras-valise” lembra também, como dissemos, James Joyce, um dos representantes do “paideuma” concreto.


Portanto, o “Alea I”, a despeito das aparentes dessemelhanças com os poemas da “fase ortodoxa”, é construído a partir de dois dos principais procedimentos da poesia concreta: a sintaxe espacial-visual e a similaridade física entre os vocábulos.


Quanto ao “Alea II”, como se pode observar, ele também faz uso de palavras inventadas, como “lerdidade”, “lubri”, “corréus” e “livrindháde”.


O poema é formado por seis linhas, cada uma delas compondo uma frase nonsense, aparentemente sem nenhum sentido, mas que, lidas com atenção, remetem à expressão “A marcha da família com Deus pela liberdade”. Esta expressão nomeia as manifestações conservadoras ocorridas em março de 1964 contra o governo de João Goulart, que objetivavam derrubar o então presidente brasileiro.


Como se pode observar, as frases criadas por Haroldo de Campos tinham a clara intenção de ironizar e satirizar (o humor é reforçado pela indicação de leitura: “cadência marcha”, sugerindo a marcha militar) aquelas manifestações que contribuíram para a implementação da ditadura militar em nosso país.


No poema, também se verifica o mesmo procedimento do “Alea I”, ou seja, a semelhança espacial entre os elementos que compõem o poema. A expressão “oculta” (“A marcha da família com Deus pela liberdade”) se relaciona com as expressões inventadas não apenas por uma questão semântica, mas também estrutural: para cada palavra da expressão “oculta”, corresponde uma palavra, ou um conjunto de duas palavras, da expressão paródica. Por exemplo: “com Deus” é substituída por “corréus” e “comeus”; “liberdade” é substituída por “lubri darda”, “líder ladra” e “libré dada”.


Assim como ocorre no “Alea I”, temos, no “Alea II”, igualmente os dois procedimentos típicos da poesia concreta: a sintaxe espacial-visual e a similaridade física entre os vocábulos.


Com respeito ao aspecto semântico dessas “variações semânticas”, acreditamos serem desnecessários grandes comentários sobre os “sentidos” das palavras inventadas no “Alea I”, posto que a intenção paródica e satírica é evidente. Porém, algumas breves observações sobre o “Alea II” podem ser proveitosas.


No poema, a palavra “família” é substituída, entre outros, pelos vocábulos “cadélia”, “cavila” e “famélia”. Ou seja, ao termo “família” se contrapõem palavras com valor crítico ou negativo: 1) “cadélia”: sugere o animal, cadela, termo este associado à ideia pejorativa de “prostituição”; 2) “cavila”: cavilar significa escarnecer, zombar, caçoar; 3) “famélia”: sugere a palavra “famélica”, ou seja, aquela que está faminta (referência à fome no Brasil?). Os três vocábulos citados propõem uma visão claramente negativa daquela “família” católica que saiu às ruas em 1964.


Para finalizar a análise do aspecto semântico do poema, a expressão “com Deus” é substituída por, entre outras, “com psius” (seria “psiu” o silêncio forçado pela opressão da censura?), “com cios” (lembrando a “cadela”), “com zeus” (sugerindo a comparação com um deus pagão) e “comeus” (de novo, a fome: “famélia comeus”).


Esta nossa breve reflexão sobre os dois poemas haroldianos nos mostra um poeta que sempre primou pela consciência de linguagem e que, quando foi necessário, usou sua poesia para se opor à opressão política e para se manifestar criativamente sem nunca se esquecer que “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”.

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[1] CAMPOS, Haroldo de. Os melhores poemas de Haroldo de Campos. Seleção de Inês Oseki-Dépré. São Paulo: Global, 1992, p. 148.

[2] Ibidem, p. 57.

[3] Ibidem, p. 63.

[4] Ibidem, p. 64.



* Paulo de Toledo é mestre e doutor em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP. Publicou os livros de poemas Torrão e outros poemas, A rubrica do inventor e 51 Mendicantos, assim como Eu.E.Cummings, com traduções do poeta norte-americano.

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