Por Cristina Fonseca
Haroldo de Campos foi uma personalidade múltipla, inovadora e polêmica. Seu leque de interesses era tão extenso quanto sua erudição. Poeta inovador, foi também um grande intelectual e crítico de alta qualidade. Deixou ensaios, textos sobre artes-plásticas, traduções em prosa e verso – que chamava de transcriações poéticas – de grandes nomes da literatura universal, além da poesia concreta, do grande livro de prosa-proesia que chamou de Galáxias, de clipoemas, poemas holográficos, discos, livros, peça teatral e vídeos a mão-cheia.
Lembrá-lo e pontuar todo seu legado é pensar em mil Galáxias para além de sua “Educação dos cinco sentidos”.
A educação dos cinco sentidos é uma referência ao nome de um de seus livros de poesia mais importantes, que dialoga com A educação pela pedra, do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, que, por sua vez, dialogou com a pedra do caminho de Carlos Drummond de Andrade.
Segundo o poeta Décio Pignatari, o pernambucano João Cabral de Melo Neto foi “o João Gilberto da Poesia Concreta”. Isso me fez lembrar o que me disse certa vez o próprio João Cabral sobre os concretistas: “Muitas vezes as pessoas se esquecem que, ao lado de seu irmão Augusto de Campos e de Décio Pignatari, Haroldo de Campos foi uma das figuras mais civilizatórias do Brasil” .
De fato, por efeito Haroldo de Campos e do Grupo Noigandres, do qual fez parte, nomes, artes e artistas brasileiros e internacionais reavaliados/apresentados/não mencionados passaram a fazer parte do repertório brasileiro. Por exemplo, Gregório de Mattos, Sousândrade, Oswald de Andrade, Mallarmé, James Joyce, Maiakovski, e outros... Tantos outros que não caberiam num só Xadrez de estrelas.
O barroco Haroldo de Campos reclamou o “Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira” e foi do “Paraíso de Dante” às transcriações do Fausto de Goethe, que chamou de “Transluciferação Mefistofáustica” até sua viagem circular ao redor da poesia, em que incluiu sua tradução da Ilíada de Homero e trechos do “Gênesis”, traduzido diretamente do hebraico. Ao lado de Boris Schnaiderman e de Augusto de Campos, traduziu/transcriou toda uma linha de poetas russos – dos mais conhecidos, como Vladimir Maiakovski, aos mais misteriosos, como Vielimir Klébnikov. Sua “Encantação pelo riso” definiu o que seria um canto paralelo e ensinou com sua reavaliação da paródia que se trata de um legitimo procedimento literário no Brasil.
Haroldo de Campos dialogou e foi amigo de escritores, poetas e ensaístas latino-americanos do porte de um Octavio Paz, Emir Monegal, Severo Sarduy, Cabrera Infante, Lezama Lima, Júlio Cortázar e outros... Na Europa esteve com Umberto Eco e o linguista russo Roman Jakobson, que depois o visitou no Brasil. Haroldo de Campos foi para a Grécia, Romênia e a China, de onde Escrito sobre Jade trouxe até nós reimaginada por ele a poesia clássica chinesa. No Japão, recebido como rei num hotel cinco estrelas, que ele gostava de me contar com seus olhos vivos brilhantes de quem sempre renasce/remorre/para renascer de novo: “Não é um hotel como o dos americanos e dos europeus, mas coisa séria Cristina, um luxo que eu nunca vi”. Tinha visitado a convite do consulado japonês, pelos serviços prestados na divulgação dos haikais e da poesia japonesa, a cidade e o túmulo do poeta Bashô, que foi ele quem ajudou a introduzir e traduzir para o português.
Haroldo de Campos parecia estar em todo lugar, em todo idioma, em toda gente, nas línguas vivas e mortas que ele dominava. Nas suas traduções belíssimas e precisas de poetas das línguas mortas, transformava/transcriava para as vivas. Foi ele um dos grandes a traduzir para o Brasil os únicos trechos existentes da surpreendente poeta grega Safo, do ano de 630 a.C. e 604 a.C.
No Brasil, caminhou dos Sermões de Antônio Vieira aos Sertões de Euclides da Cunha, num louco, lúcido translúcido “Circuladô de Fulô”, vindo, como ele dizia, “da mais negra miséria à mais libertadora poesia”. Acreditava, como Oswald de Andrade e como Maiakovski, que não deveria baixar o nível de sua arte até as massas, mas que elas é que deveriam erguer seu nível até ele. Aprendeu com Oswald de Andrade que um dia o “biscoito fino iria para as massas”.
Foi este um dos sonhos que moveram Haroldo de Campos, pois ele, leonino e solar, com sua grande generosidade assim queria: poesia para as massas e para exportação; o Brasil literário ao lado da América Latina e da Europa e dos Estados Unidos, no mesmo nível. Nada de miséria e de subdesenvolvimento, e por isso Haroldo também sofria. Nos cinco cantos do planeta, ao lado de sua mulher e companheira de toda vida, Carmen, mas sempre atento aos seus cinco sentidos, o interesse do poeta estava longe de ser apenas com literatura e poesia.
Lembro das diversas vezes em que, ao lado dele e do poeta Carlos Rennó, com quem fui casada, assistimos a espetáculos internacionais de dança e de teatro. Depois de um desses espetáculos, Haroldo de Campos chegou a escrever um poema para o casal, que, na verdade, nunca foi publicado, mas que Rennó guarda como ouro. Era sua fase dos poemas/homenagens aos amigos poetas, cineastas, pintores, artistas plásticos.
A verdade é que, a partir dos anos de 1950 do século passado, Haroldo de Campos circulou, participou, interessou-se e foi fundamental em praticamente todos os grandes movimentos brasileiros de arte do século XX: da poesia concreta – um dos fundadores – ao Tropicalismo e aos grupos de vanguarda paulista encabeçados por Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé. Travou diálogos com Glauber Rocha e o Cinema Novo e com singular cinema de Walter Hugo Khouri, de quem era amigo, e com o cinema de vanguarda alternativo e experimental de seu grande amigo Júlio Bressane e de Ivan Cardoso, passando, inclusive, por José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Seu encontro com o Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Correa foi fundamental: Haroldo de Campos apresentou as peças de Oswald de Andrade para Zé Celso, que não as conhecia e, principalmente, O rei da vela, que, montada pelo Oficina, se tornaria um clássico do Teatro moderno brasileiro. Além disso, dialogou com Gerald Thomas – outro que se tornaria seu amigo pessoal – e seu teatro, como também com a teatróloga e iluminadora Bia Lessa, que acabaria montando “Cenas da Origem” em cima de tradução do “Gênesis”. Interessou-se pela não pintura de Hélio Oiticica, com quem teve muitas conversas, e pela pintura de Tomie Othake, que se tornaria sua parceira ao ilustrar a transcriação da peça de Teatro Nô clássica japonesa Hagoromo – O manto de plumas, transformada num livro de arte.
Haroldo de Campos foi o único ensaísta brasileiro que escreveu sobre o poeta, artista plástico, escultor e pintor Kurt Schwitters, num momento em que ninguém falava dele. A rigor, se não estiver enganada, quase ninguém continua falando em Kurt Schwitters a não ser os poetas e os pesquisadores Lucio Agra e Mônica Costa. O artista alemão foi uma das fontes básicas da obra de Hélio Oiticica.
Haroldo de Campos tinha a capacidade singular de tecer as relações mais inusitadas entre o alto e o baixo, cultura popular e erudita, cultura nacional e internacional. Como dizia: “Do Monte Fuji ao Morro da Mangueira”.
Lá fora, para os que puderam constatar, como eu, na Espanha, jovens poetas de Madrid dedicam livros de poemas a ele, e o próprio João Cabral de Melo Neto, que pôde vê-lo brilhar em mais de um acontecimento, confirmou entusiasmado: que Haroldo de Campos surpreendia.
Nos encontros, palestras e mostras dentro e fora do Brasil sua figura carismática e sua absurda erudição – como dizia o bibliófilo José Mindlin, para ele, brincando –, “feita de línguas/idiomas que jamais poderei constatar se estão certas, já que inclui até o xavante e as línguas indígenas”, sua Galáxia brilhava.
Foi com amizade e alegria – já que alegria é a prova dos nove – que organizei em 15 de outubro de 2003, por ocasião de sua morte, uma mostra com os principais documentários meus, dos quais o poeta havia participado, como parte de um grande evento em sua homenagem chamado GALÁXIAS na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Com meus filmes documentários e minhas palestras antes de cada um deles, eu queria mostra um pouco desse universo galáctico dos cinco sentidos de Haroldo de Campos. Um universo rigoroso e radical que, apesar de toda a extensão, não se enganem, nunca se dispersou. A pátria de Haroldo de Campos era sua língua, os livros e a literatura.
Quando fui acordada às 7h de um sábado chuvoso de 2003 com a notícia de que Haroldo de Campos tinha morrido, eu tive um sobressalto/pesadelo. Pensei comigo mesma, realmente triste: “Os gigantes estão indo embora”. Mas, depois vi que isso seria impossível, pois os poetas nascem morrem, renascem, remorrem, para renascer de novo em suas obras.
Minha amizade e admiração pelos poetas concretos sempre foi grande. Mas devo muito particularmente a Haroldo de Campos: ainda adolescente, adoecendo entre a morte e o poder, como costumo dizer, e, graças ao livro que havia escrito aos 21 anos de idade sobre grafites no Brasil – A poesia do acaso – Na transversal da cidade (1984) –, fui levada para a semiótica pelas mãos do poeta. Ele havia observado que “minha obra era intersemiótica por excelência”, quando eu mesma nem sabia ainda o que era isso. Para o meu trabalho como artista do audiovisual, compreender a semiótica virou um importante instrumental e representou uma revolução. Escrevi meu livro Juó Bananére: O abuso em blague (1993) por efeito de Haroldo de Campos. Fiz meu primeiro documentário autoral para televisão como diretora e roteirista, Miramar de Andrade (1990), no centenário de Oswald de Andrade, com a ajuda intelectual e apoio incondicional dele, que teve, inclusive, participação como depoente do filme. Depois disso, o poeta participaria de vários outros documentários meus e do clássico Poetas de Campos e Espaços (1992), sobre a própria poesia concreta. Nesse documentário, que considero lapidar, tive a sorte de poder reunir pela primeira e única vez, ainda vivos e muito lúcidos, os três grandes poetas do grupo Noigandres: Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari.
Em se tratando de arte e suas diferentes linguagens, Haroldo de Campos estava sempre pronto. Ele queria que no universo das artes e da cultura as coisas acontecessem. Era incansável no apoio a novos e belos projetos. Por tudo isso, eu devo muito à generosidade e disposição deste meu grande amigo. Mas sei que não sou apenas eu que devo a esse valioso artista.
Ele foi de fato, nos seus longos anos de atuação poética, por si próprio e sem nunca ter recebido um cargo que seria justo para alguém como ele, nosso verdadeiro adido cultural fora do Brasil. Com sua elegância e cultura, ele poderia ter sido nosso homem para questões culturais em Roma, por exemplo. Não recebeu esse cargo e também não pediu – graças a Deus, os poetas concretos conquistam –, mas sei que teria gostado, pois tudo o que realizou como artista e por conta própria foi pelo país.
Com isso, Haroldo de Campos deu aulas no exterior, nas principais faculdades do mundo, ensinando o que era a poesia e a arte brasileira. Ganhou prêmios e menções honrosas pelo mundo, lidando com arte, antiarte e poesia de exportação. A personagem civilizatória Haroldo de Campos foi um norte dentro e fora do Brasil.
Parodiando o poeta Carlos Drummond de Andrade sobre o escritor João Guimarães Rosa, falo deste outro poeta Haroldo de Campos da mesma maneira: Ele era fabulista? Fabuloso? Fábula? Com seus erros e seus grandes acertos, o poeta de fato existiu. Foi “São Paulo mítica disparando no exílio da linguagem comum”, a “dura poesia concreta” da cidade mais antropofágica do país.
Seus sentidos voltados para os cinco sentidos dos cantos paralelos do planeta foram de vanguarda, experimentalismo, utopia e transcriação. Lutou, até o fim de seus dias, para que não vencesse de vez entre nós “o garçom de costeletas e o sistema de Babilônia”, como alertara outro poeta, Oswald de Andrade, antes de morrer. O fato é que o Brasil precisa merecer Haroldo de Campos.
23 de agosto de 2023.
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* A escritora e ensaísta Cristina Fonseca nasceu em São Paulo. Doutora em semiótica e Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 2005, publicou nove livros de ensaios sobre arte e literatura, entre eles A poesia do acaso – Na transversal da cidade (T.A. Queiroz, 1984), sobre grafites na França, EUA e Brasil, e Juó Bananére: O abuso em blague (Ed. 34, 2002). Trabalhou 19 anos em televisão, especializando-se em documentários. Com diversos prêmios internacionais, seus principais documentários são Miramar de Andrade (1990), A embaixatriz do samba (1992), Poetas de Campos e Espaços (1992), Pioneiros da saúde I/ II (1994), Os Sertões: Euclides da Cunha (1996), Duas águas: João Cabral de Melo Neto (1997), Biblioteca Mindlin: Um mundo em páginas (2005) e Vozes da guerra (2010), entre outros.
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