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Carta contra carta [1953/1996]: Affonso Ávila / Haroldo de Campos

Por Myriam Ávila


O Acervo de Escritores Mineiros da UFMG recebeu os arquivos de Affonso Ávila, além de sua biblioteca de literatura em 2014, através de doação da família e pode contá-los entre as mais relevantes coleções sob sua guarda, levando em conta o extenso período que os documentos cobrem e as variadas interações com grandes nomes da vida intelectual e literária brasileira da segunda metade do século XX e início do XXI. Os arquivos dão testemunho também de contatos com escritores e críticos estrangeiros e, assim, de um debate extenso com diversas linhas de pensamento estético e literário.


Esses diálogos, embora possam ser recuperados até certo ponto por trocas de livros e publicações mútuas, são representados basicamente pelas correspondências mantidas por Ávila com escritores e outros intelectuais. O poeta, que era ainda historiador festejado por suas pesquisas sobre o Barroco, teve sempre uma clara noção da importância das correspondências como documentos da memória, o que se percebe pelo seu hábito de guardar rascunhos e cópias de suas próprias cartas, além das cartas recebidas, inclusive bilhetes e cartões. Entre os diversos intercâmbios que manteve, Affonso Ávila escolheu, um ano antes de sua morte, a troca de cartas com Haroldo de Campos como o primeiro conjunto a receber tratamento editorial e ser publicado. Organizou em pasta a correspondência intercalada, que mandou copiar em xerox pessoalmente, por temer extravios, danos e outros problemas durante o processo. Em seguida, convidou para se encarregar da preparação do material Júlio Castañon Guimarães, amigo poeta e reconhecido especialista na publicação de correspondências, o que inclui a transcrição criteriosa, a inclusão de notas explicativas, a checagem de datas, nomes e referências de todo tipo. Amigo e intelectual, portanto, capaz de permitir que esse material fosse entregue ao público segundo os mais atualizados protocolos de edição epistolar.


A importância do material, avalizada de imediato pelo dois grandes nomes que aí dialogam, reside tanto no debate de ideias, nem sempre convergentes, sobre os rumos da poesia em um momento de afirmação combativa dos movimentos de vanguarda como pelo testemunho sobre a vida literária, os processos de divulgação da produção poética e crítica, os desentendimentos entre grupos (destaca-se aqui o esforço mineiro de Ávila como mediador entre concretistas e neoconcretistas) e os entraves políticos colocados pela imposição do governo militar a partir de 1964. Destaque-se ainda o significado do famoso Congresso de Assis, organizado por Jorge de Sena em 1961, onde Haroldo, Augusto de Campos e Décio Pignatari encontraram Affonso Ávila pessoalmente pela primeira vez.


Embora seja ocioso apresentar dois poetas já tão estabelecidos no panorama da literatura brasileira, é oportuno aqui desembaraçá-los de uma recepção datada, que identificava nas vanguardas poéticas uma camisa de força imposta às novas gerações, recepção que ensejou poemas e artigos reativos e, depois de algum tempo, um relativo silêncio em torno da poesia concreta paulista e da inclassificada poesia — sempre de inovação — de Ávila que, sendo referência para muitos jovens, não chegou a constituir um grupo, após a extinção da revista Tendência. Haroldo de Campos deixou uma produção de caráter muito variado, indo desde o investimento no potencial inseminativo do vocábulo à exploração da simetria gráfica, da dispersão mallarmaica das palavras e consequente inserção do branco da página no complexo significante até, ao contrário, à construção em blocos concretados da pletora multideglutidora e aglutinante das Galáxias. Seu trabalho de tradução é reconhecido pela qualidade e relevância excepcionais. Affonso Ávila tem trajetória igualmente inquieta, que se inicia com sonetos, exercita uma dicção mais sintética a partir de Carta do Solo, adota as enumerações e variações sobre um mote, explora confluências entre o sujeito e o político e atinge uma expressão cifrada e intrincada em seus últimos poemas. Seus recursos incluem o uso de documentos como poemas trouvés, a convivência da palavra com a imagem, a citação e a blague. Além de poetas que não se dão a conhecer facilmente, Campos e Ávila foram críticos de grande acuidade e grandes ensaístas; ambos tomaram o barroco como objeto de estudo e reflexão, deixando teses polêmicas e originais sobre a questão.


A correspondência dos dois criadores-críticos profundamente identificados com sua época, como preconiza João Cabral em Poesia e composição, será, por meio desta publicação, um documento capaz de dar uma imagem viva do período pelo qual se estende. Possibilitada pelo empenho de Júlio Castañon Guimarães e pela sensibilidade do editor Samuel Leon, esta edição pretende inspirar todo um esforço de pesquisa sobre os anos 60 e 70 da nossa literatura e esperamos que a ela venham a se juntar outras capazes de criar um mosaico iluminador sobre essas décadas.

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* Myriam Ávila é professora Associada de Teoria da Literatura na Faculdade de Letras da UFMG.


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