top of page
  • Foto do escritorjornalbanquete

COM A DEVIDA IMPERMISSÃO(ou indevida permissão)


(Sobre o livro Dedos Impermitidos, de Luci Collin)

Por Maria Esther Maciel


Este é um livro de contos que se furta aos limites do que se espera de um livro de contos. As narrativas que o compõem, mesmo ao manterem, cada uma à sua maneira, afinidades com aspectos dessa modalidade textual, abrem linhas de fuga em direção a vários outros tipos e formatos de escrita.


Se, no sumário, aparecem 13 títulos de “contos”, isso não quer dizer que tal número corresponda à quantidade de histórias que compõem o volume, visto que elas se multiplicam dentro dos textos, formando uma constelação. O que condiz, certamente, com o conjunto da obra de Luci Collin – escritora prolífica, que transita com desenvoltura em diferentes gêneros literários, reinventando-se a cada livro que escreve.

Nascida em Curitiba (PR), em 1964, Collin estreou na vida literária com o livro de poemas Estarrecer, de 1984, e desde então publicou mais 21 obras nos campos da poesia e da prosa, numa nítida opção, em várias delas, pelas formas híbridas, de viés experimental, mas sem prescindir dos registros cotidianos, da oralidade e das várias camadas líricas e irônicas da vida ao redor. Referências literárias, experiências prosaicas, situações insólitas, cenários existentes e fictícios, exercícios de imaginação, tudo isso se mescla nos seus escritos que, em 2004, foram designados pela própria autora de “inescritos”, neologismo que serviu de título para o livro de “contos” lançado naquele ano.


Os “inescritos” de Collin se estendem, sob novas modulações, nos livros Vozes num divertimento (2008), Acasos pensados (2008), A árvore todas (2015) e A peça intocada (2017), todos atravessados pela inquieta imaginação da autora, com boas doses de ironia e humor. Aliás, é frequente o uso paródico que ela faz, nesses e outros livros, dos clichês da vida cotidiana. Como observou o crítico literário Victor da Rosa, numa resenha de A árvore todas, “a literatura de Luci Collin explora, de modo tão arrojado quanto debochado, um conjunto de ‘vícios da linguagem’ recorrentes no mundo atual: histerias, clichês, incorreções, grosseria, pedidos insistentes, discursos entediantes etc.”[1] Explora-os, poderíamos acrescentar, para transformá-los em criações inesperadas.


Isso se dá a ver também nos “romances” Com Que se Pode Jogar (2011), Nossa Senhora D'Aqui (2015/2020) e Papéis de Maria Dias (2018).


No caso desse último, por exemplo, trata-se de um romance que se apresenta também como uma combinatória de textos avulsos sobre a sobre a vida (ou as vidas) de uma personagem, Maria Dias, que se dá a ver como cinco mulheres ao mesmo tempo. Nele, diferentes vozes narrativas contam sua estranha história, em diferentes registros, que vão do mais coloquial ao mais poético. Diálogos inusuais, relatos banais, fluxos de consciência, listas atípicas, anotações aleatórias, notas científicas, biografemas intrigantes, boatos e poemas em prosa se entrelaçam de maneira incomum e bastante divertida.


A variedade de vozes narrativas destaca-se como uma das linhas de força mais incisivas da literatura de Collin, associada às modulações rítmicas da linguagem que mudam de acordo com os timbres, vibrações e tessituras próprias das falas dos que narram. Essa atenção dada às variações sonoras, em consonância com as diferentes dicções narrativas, condiz inegavelmente com a própria bagagem musical da escritora, uma vez que ela possui formação como pianista e percussionista, tendo sido integrante da Orquestra Sinfônica do Paraná. Não à toa, numa entrevista ao jornal Rascunho, ela reconhece: “Nenhum texto meu existiu, para mim, apenas como livro impresso. O texto é uma entidade sonora”.

Sob esse prisma, cabe dizer que, se essa musicalidade é intrínseca aos seus poemas, ela se inscreve também em sua prosa multíplice por vias inusitadas, muitas vezes reforçando a oralidade da linguagem coloquial através do uso inventivo de tiques, sotaques e cacoetes os mais diversos.


Todos esses elementos perpassam os “contos” de Dedos Impermitidos, potencializados pela destreza no manejo dos recursos narrativos e pela primorosa construção das personagens.


O primeiro e o último “contos”, intitulados, respectivamente, “Intro-“ e “Absoluta depuração”, não deixam de se referir, de forma sorrateira, ao próprio conjunto em que se inserem. O primeiro, espécie de prólogo ficcional da autora, apresenta uma personagem/narradora que vai ao shopping comprar um sofá e acaba por comprar um livro de contos, cujo título ela não sabe o que significa. A partir daí, ela começa a elucubrar sobre o que chama de “título idiota” e se lembra de um provérbio “que diz que os dedos da mão são irmãos mas não são iguais”, acrescentando: “Acho essa frase linda e utilíssima”. Dessa maneira, ela dá dicas bem-humoradas sobre os “dedos impermitidos” e ainda brinca: “Levantei com os dois pés esquerdos. São vinte dedos. Isso é que devia ser impermitido”. Já no último conto, um dos mais poéticos, a autora se vale de listas de palavras numa mesma frase, mistura o prosaico e o lírico, sem deixar de, também por vias imprevistas, fazer algumas considerações sobre sua própria escrita:


Agora escrevo o que me acontece como posso como dá, sem cerimônia, sem serventia, explícita prosa mundana tosca chula como um chá sem gosto feito das folhas que colhi, escrevo o que me acomete, como me absolvo num sem-número de amanheceres sem considerar os acidentes da clave, a unidade de compasso, o índigo do oceano, o desnorteio da rosa dos ventos, o susto com que se inaugura estar no mundo.



Nesse dizer, concentra-se muito do que constitui o livro como um todo, sem qualquer inflexão didática e/ou teórica. Trata-se de uma metalinguagem incorporada criativamente ao próprio tecido ficcional do texto, o que torna o recurso bastante instigante.


O uso de listas aparece, com outra intensidade, no sétimo conto, “Ressonância Órfica”, que trata de um convite, feito por um “eu” a um “você”, para uma viagem ao “pantanal ao matagal ao bananal ao quintal”. Para isso, são apresentadas listas de coisas a serem pensadas, imaginadas, consideradas e evitadas. Cada série compõe um parágrafo grafado em itálico, sem vírgulas, até que, mais adiante, uma outra lista – “dos motivos porque te quero” – vem subverter a lógica das demais.

O princípio serial também incide no conto “Dias Contados”, embora numa configuração completamente distinta, já que se trata de um ajuntamento de histórias de pessoas em situação limite, seja na esfera familiar, seja nas relações pessoais em geral ou em momentos de solidão. Já no texto “Florilégio”, a ideia de coleção é convertida em tema, visto que a protagonista é uma colecionadora de monstros, que, nas palavras da narradora, “construiu um repertório de experiências exclusivas e que lhe abriam o sentido para a saliva, para cavernas, para os coloridos dos miasmas, para ocupações impensáveis”. Inclassificáveis, os monstros são e não são vivos, são sólidos e evanescentes, disformes e informes, felizes e sinistros. Emergem, dessa estranha e heteróclita coleção, algumas reflexões poéticas sobre a vida, que “terá sempre esse quê de turvo”, “terá sempre esse quê de ornamento”, “terá sempre esse quê”.


Os demais “contos” trazem novas surpresas. O mais longo e complexo, “O Deão Rasteja”, traz cenas/experiências da vida do escritor e teólogo irlandês Jonathan Swift (1667-1745), numa mistura bastante original de biografia e ficção, na qual citações do protagonista também fazem parte da narração e se entrelaçam a falas coloquiais e outros registros textuais. Outros, como “Divinatório” – um dos mais engenhosos do livro –, “Quod Fidelitas Est Fidelis” – que parodia os discursos acadêmicos –, “Princípios de Expressão” – que reúne falas diferentes em torno de Charles Darwin – e “Prontidão” – construído à luz de um verso de “Filosofia”, de Noel Rosa/André Filho – formam uma pluralidade descentrada, com diferentes pontos de vista e estratégias de enunciação. Ainda há “Da Capo” e “Cisma”, os mais líricos dentre todos, e “Sol Pertencente” – o estruturado em horas do dia.


Esse último, como o “Intro-“, remete transversalmente ao título do livro, trazendo uma epígrafe de Roland Barthes, que inclui a frase “É como seu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras”, a qual, por sua vez, não deixa de se referir ao próprio trabalho de escrita de Luci Collin nesta obra inclassificável, toda feita de dedos/palavras impermitidos e, por vezes, impermissíveis.


Sempre hábil nos arranjos e desarranjos da linguagem e das técnicas de composição, a escritora vem evidenciar mais uma vez, com este novo livro, que é possível extrair da realidade, das palavras e de nossa própria existência o que elas têm de mais ordinário e extraordinário ao mesmo tempo.



Belo Horizonte, abril de 2021

______________________________________________________________________________________

[1] “Contos de Luci Collin fazem desfile debochado de caricaturas”. Jornal “O Globo”, 12/03/2016.

45 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comentários


bottom of page