Por Sidnei Olivio*
Quantas palavras cabem dentro de uma imagem? Quantas imagens possíveis formam-se na lente, antes de fechar o obturador? Quantos crepúsculos são necessários a nos salvar da reclusão compulsória?
Todas estas questões, e outras aqui não postuladas, talvez encontrem respostas no movimento das páginas do novo livro de Reinaldo José Fazzio Feres.
O autor, na rotina dos dias de isolamento, fotografou das sacadas da própria casa o itinerário tardio do sol no movimento de rotação da terra. Desvencilhando-se dos obstáculos naturais à sua frente e seguindo o biorritmo das aves nas diferentes estações, apropriou-se dos diversos ângulos para compor cenários muito além das espirais de Fibonacci.
Tais ângulos são, na verdade, um terceiro olho no horizonte. Um olho oposto versando aquilo que se acaba e se renova (nada mais parecido com o crepúsculo do que a alvorada, a certeza de cruzar o tempo excessivo), e é sentido no calor das entranhas, o ver além da vista, o nunca visto. Primeiro a contemplação, depois o ponto de foco revelando a paisagem muito além do pôr-do-sol.
Escrever ou desenhar com luz e contraste, a fotografia é, essencialmente, a técnica de criação de imagens por meio de exposição luminosa, fixando-as em uma superfície sensível. Entretanto, apresenta amplo espectro de significado da experiência de se conservar um momento em uma imagem. A visão do artista rompe quaisquer limites e convenções tornando-se única. O autor avisa logo de início: não clarifiquem meus olhos, não limpem minhas lentes. Minha visão, eu mesmo produzo.
Impossível desvincular das imagens a poesia de Reinaldo Feres, o imagético se mistura a fim de manter variações e intensidades, dentro de um mesmo tema que se dispersa em cores e asas.
De formação biológica e norteado pela filosofia (o autor publicou dois livros versando o tema, "Filopensar I e II"), Crepúsculos da quarentena se completa no cenário em que se encontra com a natureza e o social. Não é apenas mais um livro de fotos, é um projeto artístico sobre um momento da história de vida, visto pelas vísceras de uma lente contemporânea.
Digo projeto, porque o grito que Crepúsculos da quarentena faz ecoar não se realiza apenas nas páginas impressas deste livro, escrito por um biólogo-poeta-fotógrafo. Qualquer imagem aqui é o testemunho dos dias mais incisos de uma época conturbada. Revela o desejo de saltar da página, pede som, pede movimento, pede sonho, pede, sobretudo, ação e as aves presentes resgatam o voo de um Ícaro nunca indeciso.
São várias as formas como este trabalho pode ser lido e sentido. Escolho o da estética concisa, como o haicai que completa a imagem contemplativa, feito um flash capturando o momento. Em jogo, estão o corpo, a natureza e seus intérpretes. No fundo, um agitado de cores que projetam formas próprias do cenário e outras variações do tempo, das tardes num eterno fluxo e refluxo. Pórtico do presente vivo que se distribui por um leque de buscas e indagações sobre a expressão visual do cenário comum. A tensão criativa está presente ao longo de todo conteúdo e nos ajuda a decifrar os mistérios do contemporâneo impreciso.
Cada foto do horizonte determina as variações das paisagens durante as estações do ano que, com outros elementos, compõem cenas tão belas quanto inusitadas. Conseguem criar a beleza do inexplicável, banhada pela consciência do isolamento e nos traz sensações como a dos dias perdidos na solidão do mundo.
Algumas imagens remetem a Turner, que se dedicou a pintura de paisagens com paixão, energia e força, interpretando seus temas de forma sublime. As pinceladas soltas e difusas dão forma a um torvelinho de nuvens e ondas, a uma desesperança interior que se transmite à natureza. Sua representação do confronto que os humanos experimentaram ao se deparar com os efeitos de suas próprias intervenções, nos deixam sem a mínima condição de olhar para o mundo e não sentir profunda solidão, profunda forma instaurada no belo, eis aqui o íntimo dos Crepúsculos da quarentena; eis aqui um paradoxo da condição humana.
Encontrei-me, finalmente, diante deste silêncio inarticulado, tentando decifrar o espírito do momento em que, o artista, munido de uma câmera obedece a direção dos sentidos, a duplicação das tiragens fotográficas internas. Não avanço a nenhuma hipótese, sequer exercito novas comparações, afundo-me pelo espaço branco do papel e componho a singela homenagem, citando Roubaud “o olhar humano tem o poder de dar valor aos seres, isso os torna mais caros.” Aos seres e à natureza antes de tudo, este livro é pleno exemplo, convém contemplá-lo.
realidade figurada
inquietude do momento
na simulação do equilíbrio
ritmo de passagem
dos jogos em cena
geografia do real
pelo flerte da visão
(a câmera na grua
labora plenos giros)
flagrar no invisível
aliteração do vento
ou do nada referencial –
estética da linguagem
na imersão da arte
que se lê e contempla
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*Biólogo e poeta
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