Por Tomás Lima Coelho
Quando o Jorge Arrimar me pediu que fizesse esta apresentação, desafiando assim a minha patológica timidez, não tive como negar e por dois motivos: primeiro, em nome da amizade que lhe tenho, e segundo pelo privilégio de ficar ligado a uma obra tão importante para os anais da Literatura. Quando o lerem verão que tenho razão, porque o Jorge Arrimar é já um dos grandes nomes da Literatura Angolana, facto comprovado pelo seu riquíssimo percurso literário de poeta, romancista e ensaísta, autor de várias geografias. Sobre isto devo acrescentar que já tarda o reconhecimento que lhe é devido. Por favor, procurem-no e leiam-no!
Prometendo que serei breve para não vos cansar, falemos então sobre a obra que aqui nos trouxe, uma obra onde se integram três livros.
Começo por dizer que sendo o Jorge um poeta, essa faceta aparece-nos constantemente na sua prosa, o que enriquece e aumenta o prazer da leitura. Sobre estes momentos de prosa poética permitam-me que chame a atenção para o capítulo que abre o segundo livro: “Pelos Olhos de Minha Mãe”.
Continuemos. Se numa bússola o íman aponta a seta para o Norte, em muitos de nós há um íman emocional que aponta para o Sul, ou porque lá nascemos ou porque há um primitivo e instintivo apelo por ali ter nascido o primeiro ser humano.
É esse Sul que o Jorge Arrimar nos vem contar, onde S. Pedro da Chibia é um lugar de chegadas e de partidas, um manancial de alegrias e tristezas, de nascimentos e mortes, de amores e desamores, de memórias e encantamentos. É uma saga que acompanha várias gerações de kuvales, muílas, cuanhamas, madeirenses, boéres e luso-brasileiros, gerações que habitaram as margens e territórios em volta daquele grande rio do Sul, o rio Cunene, gerações que conviveram, se misturaram e se guerrearam.
Fala-nos das guerras do Nano, das guerras de ocupação colonial, da guerra dos mucubais, que não passou de puro saque do gado daquele povo, saque autorizado e reforçado pelas autoridades coloniais com o seu poderio militar, sendo esta guerra um momento histórico muito importante no desenrolar da história que Arrimar teceu. Importante também a introdução da guerra civil angolana que se seguiu à independência, e a luta contra os invasores sul-africanos.
Conta-nos de povos que procuraram resistir em manter os seus usos e costumes, cujas fronteiras terrestres eram delimitadas por onde o seu gado os levava em busca de pasto. Conta-nos da dureza da vida que os colonos tiveram de enfrentar e como tiveram que aprender a respeitar os povos que lá encontraram para poder sobreviver e para serem igualmente respeitados.
A obra questiona-nos a cada instante, nunca sabemos onde começa e onde termina a ficção porque, se a História dos compêndios é totalmente respeitada e é pano de fundo permanente no desenrolar das situações, a ficção tanto pode estar em nomes fictícios de personagens reais, como em nomes reais de pessoas envolvidas em situações fictícias. Cabe ao leitor tentar desvendar essa teia, e este é um dos prazeres acrescidos nesta obra.
Os factos e os episódios históricos e ficcionados envolvem-se tão harmoniosamente que me ocorre uma frase do escritor norte-americano Mark Twain: a diferença que existe entre a realidade e a ficção é que a ficção tem de ser credível.
E é esta mistura que Arrimar construiu que nos leva presos numa leitura altamente cativante, sempre acompanhada pelo canto do cuéle, uma ave endémica daqueles matos, como se fosse uma música de fundo, canto que que soa trocista aos ouvidos humanos, pontuando metaforicamente a nossa pequenez perante a Mãe Natureza. É de notar que o cuéle estará à beira da extinção, por obra das consequências da presença humana naquelas regiões. O ser humano respeita muitas coisas, mas esquece-se vezes demais de respeitar o planeta. Sobre isto é minha convicção que a ecologia deveria ser tão importante nas escolas como a matemática ou a gramática.
Agradavelmente surpreso fiquei quando deparei com o meu avô paterno como personagem nesta história, imortalizando assim o seu nome e parte do seu percurso de vida. Pois é, Arrimar teve a paciência de ler um livrinho que escrevi e por ele soube que o meu avô andara por aqueles locais, que tinha uma fazenda em Quilengues lá pelos anos 1910/1920 onde criava gado bovino, possuindo naquele tempo umas largas centenas de cabeças. O seu principal cliente era o exército que lhe comprava os bois para alimentação e para completar as espanas que puxavam os pesados carroções boéres o que, para além da agricultura, seria o principal negócio dos colonos daquela região.
Nesta obra do Jorge Arrimar, a vila de São Pedro da Chibia é o centro do mundo, povoação fundada por colonos madeirenses e luso-brasileiros nas terras altas da Huíla, vizinhas do Cunene e do Namibe, terras banhadas pelo Cunene, o Rio-Mãe daquelas regiões, onde também correm as águas do Caculovar, do Bero, do Curoca e do Tchimpupunhime.
São as histórias desta região, onde nasceu e cresceu, que o escritor nos quer contar, que procura trazer à tona nomes quase esquecidos ou mesmo totalmente desconhecidos dos anais da História como, entre tantos outros, a figura de António José de Almeida, um homem notável na História daquela região.
É uma obra que se transfigura num longo e terno abraço de amor à terra-mãe e às gentes com quem se cruzou e conviveu.
Assim enleados, o escritor leva-nos pelos meandros de uma saga que envolve várias famílias, das mais variadas e diferentes origens étnicas e sociais, por um Sul de horizontes sem limite, misterioso e cativante, terra fértil e desértica simultaneamente, lar de gente orgulhosa e ciosa dos seus rituais, do seu gado, da sua independência e do seu território, onde não existem fronteiras que não sejam aquelas por onde os bois os levam.
Obrigado Jorge Arrimar, por esta fantástica viagem pelo chão da nossa terra.
Termino com uma palavra para a Editora Guerra & Paz pela belíssima e cuidada edição que nos apresenta.
Bem hajam.
(Apresentação do livro, 28 de Novembro de 2022 na sede da UCCLA – União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa, em Lisboa)
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