Por Rafael Fava Belúzio
Me nego a ministrar o coro dos contentes para a inteligência sobre Caprichos & relaxos que, há tantos anos, agora, vem passando bem sem mapas. Virem-se.
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contranarciso
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
(LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 32.
Caprichos e relaxos, primeira seção: “Caprichos & relaxos”)
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Em 1983, quando a Brasiliense lança Caprichos & relaxos, não é possível dizer, em exato, que se trata de uma estreia, tampouco que o poeta é velho conhecido dos leitores brasileiros. O grande romance do paranaense, Catatau, faz certo sucesso nacionalmente, quando sai, em 1975; mas é prosa, mesmo que uma prosa poética talvez mais palatável a amantes do gênero lírico do que ao público acostumado com a narrativa realista brasileira. Considerando o trajeto editorial, Caprichos & relaxos, enquanto gesto, dimensiona as experiências limites buscadas: é um primeiro livro, não sendo. O título, ademais, expressa o tensionamento que há nos materiais anteriores: a marginalidade, relaxada, está no exemplar que aglomera muito de uma feitura que vai sendo realizada, esparsamente, desde 1963, vinte anos antes da publicação pela Brasiliense; a seleção e a ordenação, caprichosas, dos vastos materiais construídos ao longo de duas décadas repletas de cartas e cartões, revistas e plaquetes. Há seções nomeadas de “polonaises”, “não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”, “invenções”, além do que saiu nos Quarenta clics em Curitiba. Em estrito, Caprichos & relaxos corresponde a uma antologia, e, pelo caráter sintético de uma coletânea, consegue revelar a poética de Paulo Leminski.
(Quatro clics em Paulo Leminski)
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quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta minha adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre-docência
vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência
(LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 55.
Caprichos e relaxos, segunda seção: “polonaises”).
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Por vezes, catar feijão se limita com escrever uma resenha: jogue a obra analisada na água do alguidar e depois faça a notícia apenas do que não boiar. Desse modo, quando saboreada a recensão, não vai muito além do arroz com feijão. Até parece um lirismo comedido, lirismo relaxado, lirismo de funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor. Assim, nada altera esse fato: a folha da resenha é a última no periódico.
Há também os caprichos em resenhas. Vou confessar, já degustei um vinho: uma apreciação feita de versos, com vários decassílabos taninos colocados na prosa, sutilmente, em diálogo harmônico com a obra, passando ao paladar um retrogosto me fazendo evocar os sons internos. Eu gosto de sentir na minha língua a língua do autor analisado, mas colocado sob um outro prisma feito um haicai virasse um soneto. Em mim eu quero ver o outro assim: eu estou em você e ele em nós.
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CURVA PSICODÉLICA
a mente salta dos trilhos
LÓGICA ARISTOTÉLICA
não legarei a meus filhos
(LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 55.
Caprichos e relaxos, terceira seção: “não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”)
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por um fio
o fio foi-se
o fio da foice
(LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 116.
Caprichos e relaxos, quarta seção: “ideolágrimas”)
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Três, quatro e cinco sílabas. A progressão expressa o que é semanticamente discutido. Primeiro, “por um fio” indica o que é tênue, frágil, a linha mínima; e corresponde a somente um anapesto, pé métrico contendo duas sílabas fracas e a terceira tônica. No verso intermediário, é dito “o fio foi-se”, o que era ínfimo agora já não é mais; o poema passou de três para quatro sílabas e de uma para duas tônicas. Por fim, o foco do sujeito lírico se volta para “o fio da foice”, a lâmina que possivelmente cortou o que estava por um fio e fez o próprio fio ir embora, além de ser também a foice um objeto muito maior e mais pesado do que a linha ínfima outrora enfatizada; em consonância, a redondilha, com duas sílabas fortes, praticamente dobra o número de frações sonoras do primeiro verso. Portanto, seguindo a progressão rítmica do haicai acima, é perceptível que, conquanto ele seja polimétrico, há uma lógica reunindo a diversidade versífica. O verso é livre ma non tropo.
(Quatro clics em Paulo Leminski)
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(LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 153.
Caprichos e relaxos, quinta seção: “sol-te”)
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E assim a crítica literária minguou, ao menos na mídia impressa, embora sobreviva nas universidades públicas, nas pesquisas de mestrado e doutorado, que apresentam trabalhos de alta qualidade, mas, no entanto, ficam restritas aos muros acadêmicos.
(“Manifesto: Para desafinar o silêncio dos contentes”)
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Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida, regular como um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas, conectivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
(LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 158.
Caprichos e relaxos, sexta seção: “contos semióticos”)
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Em nosso festim antropofágico
(“Manifesto: Para desafinar o silêncio dos contentes”)
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materesmofo
temasermofo
termosfameo
tremesfooma
metrofasemo
mortemesafo
amorfotemes
emarometesf
eramosfetem
fetomormesa
mesamorfeto
efatormesom
maefotorsem
saotemorfem
termosefoma
faseortomem
motormefase
matermofeso
metaformose
(LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 163.
Caprichos e relaxos, sétima seção: “invenções”)
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Bêbado, como ítalo-polaco que sou. Bêbado, quem me compreenderá?
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* Rafael Fava Belúzio é graduado em Letras (UFV) e em Filosofia (UFMG), possui mestrado sobre Álvares de Azevedo e doutorado sobre Paulo Leminski, ambos em Estudos Literários (UFMG). Realiza pós-doutorado em Letras (UFES), com pesquisa voltada para o polaco e para mais autores dos Anos de Chumbo. Em 2024, está lançando pela Editora UFPR a obra Quatro clics em Paulo Leminski. Possui livros de ensaios e de crônicas, além de plaquetes de poemas.
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