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DIALETO POÉTICO

Por André Dick


O poeta Claudio Daniel, nascido em São Paulo, em 1962, acaba de lançar Dialeto açafrão – Sob a lua de Gaza, pela Kotter Editorial, que dá continuidade à sua trajetória, logo depois de Sete olhos & outros poemas.


Claudio foi influenciado, sobretudo no início de sua obra, pela cultura oriental, o que revela em Sutra e Yumê, com poemas breves, alguns semelhantes a haicais, mas já anunciando um outro tipo de direcionamento. Ao mesmo tempo, Claudio já mostrava uma dicção simbolista e barroca, num poema como “Invenção para mandolina”: “iridescendo / brilhante / olhos / e dentes / como estrelas do mar / / e / essa trêmula mão / alvíssima  / alvíssima / (musselina) / alvíssaras / / mas: jorro insólito / de pérolas / / – irrupção / do branco / / (antiga canção / de mandolina)”. Essa dicção ficou mais evidente em A sombra do leopardo e em Figuras metálicas, reunião de sua obra entre 1983 e 2003, ou seja, dos livros antes citados com Pequenas aniquilações. Eram livros com poemas substancialmente mais musicais e com imagens que chegavam a atravessar para um certo surrealismo, mas sem cumprir totalmente a travessia, originando algo híbrido.


Não foi por acaso que depois desses experimentos iniciais Claudio escreveu a prosa experimental Romanceiro de Dona Virgo, em que, num exercício de metalinguagem, um dos mais originais da prosa brasileira, contempla diversos períodos da poesia, colocando escritores como Camões, Cruz e Sousa etc. como personagens, antecipando seus outros experimentos em proesia, como em Mojubá e A casa das encantadas. Traduziu, também, muitos poetas do assim chamado neobarroco, como Víctor Sosa, Coral Bracho e José Kozer, principalmente na antologia Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina.


O novo livro, Dialeto açafrão, abarca esses caminhos e alguns temas já incorporados a anteriores, mas com um encaminhamento diferente no ritmo em “Koans”, como se colecionasse cada vez mais aforismos, no entanto sem uma ordem necessariamente linear ou lógica:

 

I

 

Para que lado sopra o vento?

A pálpebra

do olho.

A curva

do rio.

A bosta

do cavalo.

O silêncio

antes do grito

do galo.

 

 

II

 

Onde canta o uirapuru?

Embaixo

da nuvem

em forma

de gato.

No círculo

de pedras

no centro

do lago.

Na lágrima

do homem morto.

Uirapuru

já voou.

 

A presença de “galo / gato” se espalha pelos versos, como se fossem associados ao canto do uirapuru ou à imagem meditativa de pedras no centro de um lago, numa fusão completa com o ambiente em torno. Isso se mescla a imagens inusitadas da natureza em “O fundo do olho” e “Paisagens”, expandindo alguns caminhos de Figuras metálicas e Fera bifronte. Em uma espécie de olhar idílico e otimista (sentir o oposto do medo, das guerras internas e externas que se anunciam ao longo de Dialeto açafrão), “Paisagens”, por exemplo, diz:

 

Tronco coberto de conchas

no branco

da areia,

rente ao mar

azul;

falésias 

mergulhões

nuvens

brancas

iguais

a cavalos-

marinhos;

escuto

o pássaro

do outro-

nunca

dizer:

sinto

o oposto

do medo;

o agora

é sempre.

 

Como também no seu trabalho mais recente, nos volumes dos Cadernos bestiais, há alguns poemas mais com tom político e social, mas Daniel nunca coloca o que emite acima da forma e do trabalho de versos, como em “Em Kiev” e “Gaza”. “Em Kiev” traz versos como:

 

Há mulheres que são árvores.

Elas não têm mais pele,

carne ou ossos;

não têm mais braços,

pernas, olhos;

têm apenas dor.

 

Há uma dor presente, que não pode ser adiada, mas é por meio dela que o poeta vai conduzindo seu olhar para um ponto de esperança. Ainda emprega um conjunto de haicais notáveis em “XIII haicais da Chapada Diamantina”, constituindo um poema de maior fôlego. É evidentemente um diálogo com a literatura oriental sempre presente na trajetória de Daniel, como apontado por seus primeiros livros, e reforçado pelo belíssimo poema “A mulher que matou os peixes”.

 

nada sabia das ilhas japonesas,

de suas cachoeiras, rios e cascatas;

nunca reparou na beleza ondulante

dos pequenos dragões vermelhos

brancos, amarelos, prateados

nem viu as “imagens do mundo flutuante”

pintadas em gravuras de madeira coloridas

nem as pipas em formato de peixe

hasteadas por meninos em dias festivos;

a mulher que matou os peixes

nada sabia sobre as antigas histórias

que as avós japonesas contavam aos  netos:

que as carpas nadavam contra a correnteza

saltavam cascatas e até mesmo montanhas

para depositarem os seus ovos

e por isso dizia-se que eram dragões.

Não, a néscia nada sabia dessas histórias

e mesmo que soubesse, não faria diferença:

ela só queria roubar as pequenas moedas

jogadas por turistas no lago do Palácio.

 

Este poema recorda outros mais antigos de Claudio, como “Osaka” (“os sinos / acordam / os peixes. / / o incenso / engasga / o buddha. / / as flores / no altar / sonham / / o nirvana”) e “Austrália” (“Viagem ao branco / da pedra. Ver / – pelo avesso / da pupila – / uma face / no sulco / da terra, / um deus também / é o vento”) – citando, aqui, em itálico, um trecho de poema de Paulo Leminski –, no entanto com um tom mais discursivo, que, por outro lado, não impede a estrutura de ser atrativa nem a torna exatamente prosaica.

Dialeto açafrão vai se construindo em meio a esse universo de referências e literaturas com uma captação pessoal até se encerrar com o poema-título, em prosa poética, e com traduções de Mallarmé e Rimbaud, que parecem lembrar também da tradição simbolista da obra, filtrada por um olhar contemporâneo – e essa associação de poemas próprios e traduções tem algo da tradição de Haroldo de Campos deixada em livros como Crisantempo e Entremilênios. São poemas tão musicais quanto os que Claudio tentava, sob o influxo às vezes de uma certa cultura religiosa ou popular, em obras como Esqueletos do nunca, Livros de orikis e Cantigas do luaréu, parecendo apontar que Dialeto açafrão é, sobretudo, uma delicada e profunda síntese da sua obra, que fala de sensações contemporâneas sem abandonar o olhar sobre o passado.


Sua poesia continua se destacando por imagens e analogias rápidas, concentrando-as num verso ao mesmo tempo prosaico e musical, como já se percebia em “Branco” (Figuras metálicas): “Para dizer as cores do branco. / / Mudez de mangusto / ou árvore, / / talhado silêncio / ao ignorado / / diga cetáceo cetáceo / / menos animal / que maquinário, / / esboço de desenho de lagarto” e neste novo livro ganha outros contornos, como em “Coleção”:

 

Mamute siberiano

não me fascina

tampouco

peixe-lagarto

fósseis vegetais,

sílex araucanos.

 

Pode-se afirmar que ela faz uma espécie de metacrítica a um cotidiano, procurando às vezes o recurso da hipérbole e revelando uma certa violência e negatividade extremas do mundo contemporâneo, mas mesmo assim nunca abandona uma sensibilidade muito particular de ver o mundo que toca o leitor de maneira inesperada, como um amor que se dissolve no fogo, mas continua seu incêndio para sempre por meio das palavras.

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* André Dick é poeta, crítico literário e de cinema, autor de Neste momento (Kotter Editorial), entre outros.

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