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DUAS NOTAS (10) SOBRE POEMÍNIMOS ENORMES

Por Silvana Guimarães




Primeira: Hai

 

Dizem as boas línguas que o “hai” do haicai significa brincadeira, gracejo. Entanto, no poema japonês tradicional, tudo costuma ser comedido. Nesse conjunto de 235 haicais escritos ao longo de quase 30 anos, a brincadeira também insinua-se com singeleza: “intiriço que nem/ cantiga de grilo/ os ais são mais”. E com discreta aflição: “não gosto de pontas soltas/ é preciso emendá-las/ mesmo que não haja soneto”.

Poesia que representa o instante da contemplação: “sol posto/ silêncios acesos no voo dos guarás”. Mas de que valeria esse olhar se não fosse para nos arremeter ao inexplicável deslumbramento que enobrece nosso tempo no mundo?: “um dia serei/ somente lembrança/ quem se lembra?”. Que nos aponta estradas onde se desbravam nossa sabedoria, perplexidade, euforia, êxtase?: “upaon açu/ c’est mon amour/ c’est mon abajour”.

Aqui, a ironia é tratada com brandura, desprezando-se demonstrações espirituosas ou cômicas: “palavra profana/ não é Quintana/ será Silvana?”.

E o sentimentalismo, subterrâneo, é o mero esboço de uma situação inacabada, cujo eco afronta o dia a dia da vida a vida: “não adianta/ tapar o sol com peneira/ saudade é céu aberto”.

Com linguagem despojada, absolutamente livre de qualquer virtuosidade técnica, como se era de esperar, a poeta saúda a sua xará — eu mesma — com versos que surpreendem e revelam uma inteligência tão veloz quanto perspicaz: “os olhos verdes/ cruéis tentadores/ mar de amores”.

Em poucas & boas palavras: poesia que é tiro & queda. 

 

Segunda: Cai

 

 

As mesmas línguas afirmam que o “cai” do haicai quer dizer harmonia, realização. O olhar que registra com pinceladas suaves — às vezes, valentes — episódios do cotidiano e lumes da natureza: “papagaios no ar/ desenhando sonhos/ altos de pegar”. Haicais do tipo brasileiro ou ocidental ou moderno ou livre, que não seguem a metrificação do modo tradicional. À moda do poeta Paulo Leminski, destinatário dessa veemente dúvida: “se a vida/ for do outro lado/ o que faço aqui?”.

Poesia que mistura simplicidade e argumentos filosóficos & espirituais, com uma sutileza pouco comparável. Versos povoados de pequenas grandes indagações: “se tudo já está traçado/ por que abrir janelas/ vislumbrar horizontes?”.

Aqui, evidencia-se a imensidão do pormenor. São poemas minimalistas que se bastam. E o que parece rápido provoca reflexões densas, fundas, que impressionam o leitor e permanecem reverberando em sua memória, quando não acendem a própria memória ao encontro de gestos afetivos, sensações efêmeras de outros momentos, talvez: “não podendo mudar a vida/ muda-se a posição/ dos móveis da casa”.

Talento ou sorte ou ambos: Silvana Meneses desvenda a poesia que há nas coisas com seu modo de ver. Em um mundo carregado de ostentação, onde se disputam holofotes, a poesia da delicadeza é o melhor remédio para dignificar a vida: “aos meus pés o cão/ com sua lealdade/ aquece a alma”.

Por isso, o desfecho: este é um livro inesquecível. De se guardar e sondar para sempre, em busca de toda a leveza que carrega. De toda a energia mágica que atiça.

 

 

Belo Horizonte, 11 de junho de 2021.

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