Por Claudio Daniel
Dioniso, “aquele-que-faz-trovejar”, ele-o-irreverente, “aquele-que-grita-alto”, ele-o- inquieto, nós te invocamos, Dioniso, filho-de-Sêmele, ele-o-alucinado, ele-o-excessivo, nós te invocamos, Dioniso, aquele-que-ama-as-bacantes, o-protetor-das-vinhas, nós te invocamos, Dioniso, aquele-que-veste-máscaras, o amigo-dos-estranhos, o amigo-dos-insensatos, nós te invocamos, ó Atípico!
Dioniso é a deidade que rege os poemas reunidos no presente livro de Alexandre Bonafim, que concilia o furor sensualista com a geometria, a arquitetura do poema. A carnalidade está presente em versos concisos e vigorosos como os de Jovem desnudo: “No mais secreto íntimo / de teu corpo respira / um touro decepado / Com ímpeto selvagem / esse animal apunhala / meu corpo / meus sonhos / os nomes todos / de minha agonia”, onde podemos ouvir ecos do paganismo poético de Eugênio de Andrade e Sophia de Mello Breyner Andresen, poetas que também escreveram sob o influxo do fascínio pela Grécia Clássica, não a dos filósofos e dos políticos, mas a Grécia do encantamento dos sentidos, do êxtase selvagem, que também interessou a Nietzsche.
Na poesia de Alexandre Bonafim, reconhecemos a veia helênica na concisão das linhas – como em Safo e Alceu – carregada de eroticidade, na escolha do vocabulário, nos ritmos, nas imagens precisas, substantivas, e ainda em fortes metáforas, como é o caso do poema Rosto: “Não há como fugir / dessa verdade frontal / estúpida: / fitar teus olhos / e desenhar em tuas pupilas / o ardor de um tigre cego”. O corpo do outro é percebido como campo de múltiplas possibilidades sensoriais, mas também como morada, espaço de recolhimento, intimidade e repouso, à maneira de João Cabral, como lemos no poema Casa: “Habitar-te / em tudo o que és / até onde jamais fostes / e nascer de teu ventre / como a sílaba primeira / de teu riso / Morar em ti / como quem escalpela / a face contra espinhos”. Em outras composições, a posse da pele do outro tem certo viés furioso, que realça a intensidade da experiência, como na breve peça intitulada Amálgama: “Talhar teu corpo no meu sangue / até arder no âmago do fogo / a delicada luz do vinho”, em alguns versos de Afago: “Desnudar-te / até os ossos / onde um abismo / soletra a angústia / a alegria / em cada brilho / dos meus olhos” e ainda em Martírio (em que está implícita a imagem de São Sebastião, sincretizado em algumas regiões do Brasil com Oxóssi): “Ardoroso desejo / flecha a cravar-me / no martírio do meu sangue”.
Claro: Alexandre Bonafim sabe, como Nestor Perlongher, da íntima relação entre o papel e a pele, a tinta e o esperma, a materialidade da carne e dos ossos e a do corpo poético, formado por imagens e ritmos, metáforas, metonímias e todos os jogos da linguagem. A relação erótica, aqui, é sempre dupla, textual e não-textual, subjetiva e objetiva, ficcional e verídica, numa unidade contraditória em constante ebulição, que podemos exemplificar com outros versos do livro: “Contemplar teus pés descalços / Ter os olhos perfurados / pela aparição das rosas brancas”.
É a consciência da materialidade da linguagem que evita a fácil adesão ao confessionalismo, onde a função emotiva se sobrepõe à função poética – para usarmos os conhecidos conceitos de Jakobson. Não é o caso de Alexandre Bonfim, artista que sabe usar o pincel com inteligência e sensibilidade, surpreendendo o leitor com os jogos de imagens e de ideias que realiza em sua escritura, como no quase barroquismo de poemas como Solidão: “Olhos de um cego / dentro da noite / dentro dos olhos / de outro cego” e Esta a hora violenta: “Dá-me tua boca / para eu escrever a palavra / onde um pássaro / voa dentro de si mesmo”. O resto, leitor, é descoberta: mergulhe nas páginas desse livro e deixe-se seduzir pelo Dioniso da poesia!
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