Por Ricardo Silvestrin

O livro Entremilênios, de Haroldo de Campos, pode ser lido em dois eixos: entre e inter. O primeiro, a partir da opção do poeta, coloca, num primeiro momento, os poemas na temporalidade imediata da publicação e da criação da obra. O volume veio à luz em 2009, mas, como atesta Carmen de P. Arruda Campos, organizadora – já que se trata de um livro póstumo –, “Não é possível saber quantos anos Haroldo de Campos dedicou a Entremilênios.”
O poeta nos deixou em 2003. Há três poemas com datas: “enigma”, que tem ao final “berlim 14 out. 1998”; “milano revisitado: 2001”, que já traz o ano no próprio título; “lendo a ilíada – 11”, que vem também em cópia escrita à mão e datada de primeiro de abril de 2001.
Há outros rastros temporais que nos colocam nesse mesmo período dos marcos acima. No poema o contra-senso de washington, temos alguns deles. Já no primeiro verso, “os portenhos sob as patas do cavallo”, remontamos, num primeiro momento, ao período de 1997, quando o economista e político argentino Domingo Felipe Cavallo implantou, no governo do presidente Carlos Menem, a Lei da Convesibilidade, que equiparou, por lei, o peso ao dólar. Num segundo momento, devemos estar em 2001, quando, como Ministro da Economia do presidente Fernando de la Rúa, baixou o “corralito”, que previa restrição do saque de dinheiro das contas correntes. Provavelmente sejam essas as “patas do cavallo” sob as quais estavam os portenhos.
No segundo verso, “os brasileiros nas “mãos limpas” dos tucanos”, estamos no governo Fernando Henrique Cardoso, cujo mandato presidencial, pelo PSDB, o partido dos tucanos, deu-se de 1995 a 2003.
O terceiro verso traz “os “states” no jecanato do bush”. Vamos ao governo do presidente George W. Bush, de 2001 a 2009. Pelas coincidências de datas, deve se tratar do Bush filho, não do pai, já que esse presidiu a terra do Tio Sam de 1989 a 1993.
No quinto verso, temos “o jader bandalhando no senatus”. Depreende-se o ano de 2001, quando o político Jader Barbalho presidiu o Senado Federal. Nesse mesmo ano, renunciou ao cargo de senador sob a denúncia de desvio de verbas públicas, chegando a ser preso.
Assim, é bem provável que seja um poema de 2001, o primeiro ano do terceiro milênio. Desse modo, é uma produção poética que se deu entre o final dos anos mil e novecentos e o início dos anos dois mil. É uma produção entre milênios.
Toda obra é feita num determinado tempo do calendário. Contudo, a indicação desse tempo no próprio título do livro de Haroldo de Campos confere ao aspecto cronológico uma importância a mais. Como estamos nesse entre milênios?
O próprio poema de que foram citados os versos acima se encarrega de nos responder. Estamos sob os efeitos do “contra-senso de washington”. A referência crítica é ao Consenso de Washington, um conjunto de medidas formuladas por economistas de instituições financeiras situadas em Washington D.C., em novembro de 1989. Os formuladores são do FMI, do Banco Mundial e do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Tornou-se a política do FMI receitada para promover o ajuste macroeconômico dos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades. Aí, entram a América Latina, e dentro dela o Brasil, com sua política econômica toda orientada na década de mil novecentos e noventa por esses princípios neoliberais. Já no ano dois mil e um, esse receituário mostra seus limites e seus efeitos danosos para a vida das populações que experimentaram, como nos versos do poema, “a pax amerdicana”, no “consulado infeliz do merco-sul”.
Temos então um poema entre milênios que se coloca como crítico e como oposição a esse período. O texto faz parte do capítulo chamado de “musa militante”. E como essa musa milita? Com jogos de palavras que atuam como rasuras, como erros de grafia que se encarregam de despertar sentidos opostos ao termo tomado como de partida. Jogos que militam e avacalham seus opositores.
O Consenso vira o “contra-senso” de Washington. O prefixo contra, no caso, serve de oposição e de admoestação. Tem o sentido de absurdo, de contrário à razão. E denuncia também que esse consenso é parcial, é uma imposição que gerou só maus bocados para os argentinos, para os brasileiros, comandados pela baqueta dos Estados Unidos, que tenta impor sua pax americana. A expressão ganha no poema um d, amerdicana, revelando a merda a que levaria os países que a seguiram.
Em outro poema do mesmo capítulo, senatus populusque brasilensis, a merda chove sobre a capital do país: “(…) escorre molemente a/pasta marrom-jerimum-amarelo-/fezes amarânteo-diarréica em fluxo fétido // sobre a cidade sobre a urbe/sobre o senatus brasiliensis / sobre os edifícios transgaláticos de / niemeyer e o risco de lúcio”.
No poema circum-lóquio (pur troppo non allegro) sobre o neoliberalismo terceiro-mundista, o mundo entre milênios se define com toda a clareza: “o neoliberal/sonha um mundo higiênico/um ecúmeno de ecônomos/de economistas e atuários/de jogadores da bolsa/de gerentes/de supermercado/de capitães de indústria/e latifundiários/de banqueiros (…) (a/contramão o / mundo-não / - mundo cão - / dos deserdados: / o anti-higiênico / gueto dos/sem-saída”.
Em apocalypse now, “vênias dadas ao trêfego blair e aos dois/porta-vozes da eurodireita: o asinino aznar/ostentando as medalhas do generalíssimo e o/mafioso berlusconi com bufos esgares de mussolini”. Como se vê, e como Haroldo de Campos via, o mundo violento, materialista, excludente e à beira da reinvenção do fascismo já adentrou o novo milênio lançando as bases do que atravessamos sobretudo nessa última década.
Como disse no início, o livro também contém uma possibilidade de ser lido por outro eixo, que se orienta por uma espécie de inter milênios. Inter aqui tem o sentido que se lê em intertextual. Diferentemente de um dos sentidos, o mais imediato, de entre, o sentido de estar apartado, com algo de um lado e algo de outro, inter, pelo contrário, se relaciona, invade as margens. Também não é estático, localizado num tempo específico. Viaja no tempo e coloca lado a lado períodos, quebrando a sequência cronológica. Por exemplo, o poema lendo a ilíada já traz no título a relação entre o agora e o passado. Um poeta-leitor no século vinte e um recria um poema da Grécia Antiga, com versos livres, espaçamentos, hífens, parênteses, recursos de discurso poético diferentes dos que havia no texto original.
As traduções de trechos da Odisseia, de Goethe, entre outros, no capítulo terceiras iluminuras, são recriações inter séculos. Os belíssimos poemas da seção circum-stâncias trazem o cotejo entre o agora e o passado que permanece e se altera pelo olhar do poeta, seja na arquitetura, na paisagem, na arte.
O uso de expressões e termos em latim e grego, o trânsito entre versos metrificados, livres, com espacializações, são procedimentos inter milênios. Entre o tempo demarcado em que a pessoa Haroldo de Campos viveu e sentiu na pele as suas alegrias e dissabores, e o tempo aberto, intertextual, por onde pode andar livre o poeta, move-se esse Entremilênios.
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* Ricardo Silvestrin nasceu em Porto Alegre, em 1963. Formou-se em Letras pela UFRGS em 1985. Em 2020, recebeu o título de Mestre em Literatura, também pela UFRGS, com a dissertação Manuel Bandeira, um poeta na fenda. Publicou até o momento treze volumes de poesia. A esse conjunto, agregam-se um romance, um volume de contos, dois livros de tradução, uma peça de teatro, uma produção de canções como compositor, com dois CDS, um dvd e dois álbuns virtuais, e mais oito livros de poesia para crianças.
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