Por Gabriel Morais Medeiros
Em sua apresentação a este livro, a autora nos diz que os eus poéticos encontráveis em Quando chegam os tártaros? estão imersos numa “atmosfera comum”, num cenário de “neblinas e silêncio”. Mais à frente, laconicamente menciona os “tártaros”. São vultos na noite fria, relances, lampejos, entidades desprovidas de rosto, fantasmas. Estes dizeres da poeta revelam uma das vértebras deste trabalho poético: a constante menção à aparição de seres desconhecidos, que atravessam reentrâncias e interstícios da cidade e do âmbito doméstico, e, antes imperceptíveis, de repente vêm à luz. No poema “quintais”, temos: há tigres enfunados no varal / brancos como enfermarias / semelham camisas / garras entretanto / fera nenhuma sai / do algodão selvagem / ouve o rugido? [...]. Já no poema “gaveta”, os olhos resguardavam a fogueira cartaginesa, ateada pela brasa de um dos tantos cigarros. Ainda nesse escopo, trará o texto “teu caso”: isto é coisa do lince / e do olhar da criança / quando na persiana desliza / uma nave viking. O elegíaco verso és o único a vê-lo desfecha-o. Como diria Cesare Pavese: mania de solidão. Em “delivery”, o entregador de comida se confunde com o espectro de um lobo, que vaga pela noite, o que se entrega é o uivo. Em “céus”, anjos devem ter sido vistos em bares, equilibrando bandejas, fugazes. Acho interessante o tom que as vozes de Rosana Piccolo conferem a essas silhuetas, que ensombram – mais do que assombram – toda a povoação deste livro tão bem urdido. É o tom de alguém que jura ter visto algo: o de uma voz sibilina que, em meio à cidade de lixo, insiste em testemunhar sobre possíveis reencantamentos. Noutra direção, é um tom, ainda, anunciador de catástrofes, de esgarçamentos, pilhagens. Pestes à espreita, incêndios, carros de guerra, toques de recolher, assassinatos, bestas depredadoras a irromper das esquinas, das fiações dos lustres silenciosos, das notas de rodapé. O olhar do animal, o da criança e o da bruxa captam e formulam essa tonalização, por um lado pressaga (o cataclisma anunciado, ainda que vago), e por outro encantadora (as faíscas de um mundo cheio de espíritos, logo não esgotado no binômio lixomercadoria). Fera, criança e a bruxa são as gárgulas desagasalhadas que contemplam a tudo, e nos vêm recitar, neste livro, os achados e perdidos de outro mundo e de outras temporalidades. Coerentemente, neste outro mundo, os significantes se adulteram: panos em oferta passam a ser espadas de mel, e assim sucessivamente. O procedimento do olhar que orienta as feras, as bruxas e as crianças é análogo à pareidolia: este é o termo técnico para a conhecida tendência de vermos formas cognoscíveis nas nuvens, em borras de café, em veias da madeira, por exemplo, e nelas projetarmos outros contornos, outros referentes. Essa tonalização do olhar, na cidade arruinada de Quando chegam os tártaros? põe em cena uma máquina de significantes diversos, esparsos, em constante expansão. Vale notar que essa expansão não se dá necessariamente pela via da alegoria (a criação de outros significados, ocultos num velho significante); antes, dá-se sobretudo pela duplicação, insisto, e pela mutação absurda, dos próprios significantes: algodões-doces passam a ser cabeças estouradas, sacos de lixo passam a ser veludo, coágulos de sangue passam a ser amêndoas, a xícara passa a ser poça, o céu passa a ser uma fita adesiva. Proliferam dessa maneira, na poética de Rosana, significantes bifrontes; o significado a que conduzem é indetectável, como a cidade deserta por onde perambula, noturno, o eu poético. Olhar em pareidolia: olhar encantador, reencantável, multiplicador, invocador de duendes, secreto, centrífugo, e portanto subversivo. Por outro lado, há o mencionado olhar pressago. Nas literaturas antigas, de Agamêmnon a Fausto, sobretudo na declamação teatral, eram comuns as sequências em que um personagem recitasse, desde o alto de uma muralha, o panorama que se divisava, ao longe, e o detalhasse em minúcias para os ouvintes, didaticamente. Explicasse o que eram as luzes que cruzavam a negra planície à frente, as notícias e mensageiros que se aproximavam, os barulhos, as flâmulas, as detecções. Esta é a técnica da teichoscopia: narrar algo, de sobre uma muralha. É o olhar da sentinela, do que vigia, de quem primeiro transmitirá o que há de vir. É um olhar noturno, que penetra a noite. Mas nem sempre épico. Pois pode ser um olhar buzzatiano, ou melhor, um olhar de Drogo, personagem que sonha com as tropas de trasgos, de monstros, de possíveis bárbaros, a irromperem da desolação contemplada, algum dia: e trarão templos sobre a cabeça / pois são os deuses da neve eterna / e prometeram, diz a autora, no poema que dá título a este livro. O que virá é pressago e angustiante, por um lado: é um tempo apocalíptico, sempre evocável pela cidade devoluta, onde as miragens se multiplicam, e os sentidos se desfazem: o que surge / não sei se ruas / ou se fitas embaraçadas, diz-se, no poema “ponteiros”. Por outro, a não consumação dessa angústia, a não concretização (ainda que terrorífica) dessa espera é, em si mesma, uma temporalidade de crise coletiva, que a poeta descreve, habilmente, ao longo deste trabalho. A não tragédia não é um alívio, por isso, mas um prolongamento das horas apreensivas. Sobre a teichoscopia, cabe uma nota: o panorama urbano de Rosana Piccolo é mais amplo do que aquele que paira às alturas, e toma forma no dispositivo literário que retrata essa escópica. Esta é distante, não esmiúça os detalhes, plana acima de tudo. Já o olhar de Rosana é de dentro, em zoom: é um olhar intracidade, eviscerador, cirúrgico. uma lata cai: horas altas evisceradas / pelo catador de lixo, temos em “latas”. O olhar de Piccolo apreende as íris das postas de peixe paralisadas, congeladas, nos balcões do mercadão; pertencem a este olhar as cerejas esmagadas, as bocas de lolita. Estas coisas. Uma teichoscopia em zoom. De novo bifronte, com óculos de bisonte, este olhar prevê a tempestade a vir. Olha para trás e ao redor, e então e vê sua cidade, uma cidade póstempestade, devastada e evadida. Na trama das ruas de madrugada, a poeta cria eus irmanados aos garis, aos catadores de lixo, seres diurnos, solares. Coleta versos e fragmentos significantes, como os trapeiros coletam objetos de lixo em dispersão. Benjamin já nos lembrava que a figura do trapeiro surgiu justamente num período em que o lixo, devido à civilização do capitalismo industrial, passara a ter certo valor de mercado. Baudelaire foi o primeiro a perceber a alegoria poética desse tipo urbano, e aproximar seu sentido do trabalho e do fazer poético. Piccolo, de certa maneira, caminha nessa direção. As vozes que constrói são vozes-garis, mas são garis que surgem trajados não de tangerinas maduras, mas sim de roupagens camufladas de escuridão, anoitecidas, aracnídeas. Trapeira, baudelairiana, Piccolo dá forma, neste livro, à poeta-aranha, a poeta-tecelã. À artesã que coleta os pedaços urbanos de uma urbanidade sem sentido, porque sem télos, e a qual sofre tanto por aguardar seu fim quanto por saber que este fim não chegará. E nesse fazer-tecelão, a poeta busca redimir os vestígios de um cenário determinado pela palavra morte, como lemos no segundo poema. E para tanto, observa, e espera. Teichoscopia e agouro, pareidolia e duplicação de figuras, portanto multiplicação do imaginário. Esses são os dispositivos de olhar desolado, no primeiro caso, e de um outro olhar, em força de expansão, no segundo caso, que compõem outra das vértebras deste livro. Muitas outras haverá. Em suma, me afasto dos órgãos (da organização) desta máquina poética e me dirijo, para fechar, à sua pele, à sua superfície. Teço um breve comentário, a partir do poema “diagnóstico”. Mallarmaico, o poema novamente atesta que, conforme atesta qualquer cigarro, uma faísca se separa de um claro beijo de fogo, e isto é tudo. A carne é triste, sim! Mas vamos, sem digressões, vamos à pele, e não às entranhas. Reproduzo os versos finais deste texto: um cigarro fios de fumaça veias violetas doentes eram vermelhas veias apagadas no cinzeiro Através dessas linhas, comprovamos o cuidado poético de Rosana Piccolo em toda sua organização pulsante, bem trabalhada, carregada de sentidos. Dou dois exemplos: os buracos, os espaços em branco entre as palavras, intraverso, reproduzem graficamente o tubo do cigarro, que aos poucos se apaga, se desarticula, se quebra em dois, sucessivas vezes. E para além do aparato gráfico, o ritmo, claro, muito significa, igualmente. Veja-se o fragmento veias violetas doentes / eram vermelhas / veias apagadas / no cinzeiro. As sílabas em negrito são tônicas, carregadas. Similarmente, as sílabas acima sublinhadas, ainda que átonas, soam de maneira marcante, na maioria das variantes do português brasileiro, se entoadas à voz forte. Logo, há um compasso rítmico bastante regular, vívido, nos dois versos iniciais. Demarcado, aglutinado, justamente enquanto se descreve o cigarro aceso, em fogo: a uma sílaba fraca segue uma forte, até a palavra apagadas, em coesos intervalos de som. No entanto, de apagadas a no cinzeiro, a última linha, vê-se que o ritmo se altera. Aparecem de súbito três sílabas fracas, antes de zei. Ou seja: a voz perde impulso, o cigarro vai perdendo sua luz, e o fogo toca o pires do cinzeiro, e o silêncio fere o papel. Fumaça e silêncio, novamente. Porque sempre de “neblinas e silêncio” serão os mapeamentos da cidade que Rosana Piccolo constrói em Quando chegam os tártaros?, para retomarmos, outra vez, o que disse a poeta inicialmente. E o resto é silêncio, após um relâmpago. Volto às entranhas. Em “blitz”, são as palavras finais: fumaça e apenas. Neste verso, trunca-se o apenas; o verbete perdeu seu complemento, como a cidade, espalhadamente, terá se perdido para todas as pessoas. Creio que este é mais um dos pequenos versos que, ludicamente, urdem miniaturas e maquetes do fim dos tempos, maquetes estas de que este livro é pródigo. De um fim dos tempos que nos aguarda, talvez seja certo, mas ao qual principalmente aguardamos. Com a ilusão esperançosa de que o ato de esperá-lo possa aproximá-lo, efetivamente.
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