Por Claudio Daniel
Haroldo de Campos criou um teatro poético alegórico na peça Graal – Legenda de um cálice, única obra dramática do poeta (além de sua recriação de Hagoromo, clássico do teatro nô de autoria de Zeami, datada do século XVI). Escrita em sua juventude, no ano de 1952, a peça é dividida em dois atos breves e tem como subtítulo Bufotragédia mefistofáustica[1] ou Mefistofarsa bufotrágica, termos neológicos que ressaltam a ruptura dos gêneros e o caráter paródico e satírico do texto dramático, que se apropria de mitos e símbolos da literatura de cavalaria do século XII, refabulados e recontextualizados sob um prisma contemporâneo. O caráter religioso e iniciático da lenda do Graal, que data dos primórdios do cristianismo, é subvertido pela mescla imaginativa com signos de outros repertórios culturais, numa operação dialógico-carnavelesco-polifônica[2], e pela crítica mordaz da ordem capitalista (“Postas de carne ensanguentada respingam as notas e os jornais”) e da normalidade do discurso, abalada com a dissolução de fronteiras entre prosa e poesia. Todos os diálogos da peça são travados por meio de versos, enigmas, metáforas: há pouquíssimas referências a elementos concretos da realidade objetiva – telefone, cinema, jornais, cédulas monetárias, casa de dança –, predominando um discurso de feição simbolista ou surrealizante. A fábula cênica de Haroldo de Campos aproxima-se do teatro épico de Brecht na recusa do divertimento frívolo e na afirmação do compromisso intelectual com a reflexão crítica do presente. Porém, de modo diverso do dramaturgo alemão, o autor de Galáxias abdica de qualquer tentativa de mímese naturalista ou retórica doutrinária, construindo a representação da narrativa com recursos da metáfora, da alegoria[3] e da paródia. Neste sentido, o paralelo mais adequado é com os autos alegóricos de Gil Vicente, como o Auto da barca do inferno e sobretudo o Auto da feira, em que o autor português também se apropria de mitos e referências religiosas, do paganismo ao cristianismo, para fazer a crítica de uma sociedade regida pela mercantilização da vida, do imaginário e do próprio sentimento religioso. No campo da dramaturgia nacional, a única comparação possível é com as peças de Oswald de Andrade, em particular O homem e o cavalo e A morta, alegorias políticas antropofágicas que superam a linearidade naturalista pela fusão de tempos, espaços e repertórios culturais, numa colagem carnavalizada de discursos, símbolos e citações. A recusa da trama ficcional linear, da mímese e do determinismo é exatamente o elemento mais visível na peça de Haroldo de Campos, em que a pluralidade de camadas de significados do texto se sobrepõe à gestualidade e à ação dramática, assim como acontece no teatro intelectual de Mallarmé, em peças como Hérodiade e L’après-midi d’un faune, onde praticamente nada acontece no palco: a ação é antes interna, encenada na imaginação do leitor / espectador, do que externa, como o próprio poeta francês afirma na advertência inicial de Igitur: “Ce conte s’adresse à l’Intelligence du lecteur qui met les choses em scène, elle-même[4]”. Crítica da realidade social, alegoria, metáfora e narração subjetiva são unificados no discurso poético da peça haroldiana, que pela riqueza de alusões e pistas simbólicas nos faz recordar do adágio de Paul Claudel, que definiu o teatro clássico japonês – uma paixão de Ezra Pound, W. B. Yeats, e do próprio Haroldo de Campos – como uma “ampla tapeçaria de imagens e de sentenças[5]”.
Todas estas referências, é evidente, não esgotam as vias interpretativas e são apenas pontos de partida para a nossa reflexão sobre a peça-palimpsesto de Haroldo de Campos, que define sua estratégia jocopoética no próprio texto dramático, articulado em consonância com as pesquisas literárias desenvolvidas pelo autor após a publicação de seu livro de estreia, Auto do possesso (1949). A primeira referência simbólica desta peça enciclopédica, presente já no título, é o mito do Graal, cálice da Santa Ceia ou vaso no qual José de Arimateia teria recolhido o sangue de Cristo após a crucificação, conforme diferentes versões. Wolfram von Eschenbach, autor do romance de cavalaria Parsifal, que inspirou a ópera de Richard Wagner, entende o Graal como uma pedra vinda do céu (lapis ex coelis) que apresentaria virtudes mágicas curativas e de prolongamento da vida. O Graal também é chamado de Lapsit exillis, expressão interpretada de diferentes maneiras, como lapis erilis, ou “Pedra do Senhor”, lapis elixir, com alusão ao elixir alquímico da regeneração, e lapis de coelis, ou “pedra celeste”. Conforme Julius Évora, o Graal é representado, em vários textos da literatura medieval, ora como “um objeto imaterial, dotado de movimento próprio, de natureza indefinida (‘não era de madeira, nem de qualquer metal, nem de pedra, de chifre ou de osso’), ora como “uma pedra – ‘pedra celeste’ e ‘pedra de luz’”, ora como “uma taça, uma bacia ou uma salva, muitas vezes de ouro e, por vezes, incrustada de pedras preciosas. Uma forma mista é a de uma taça talhada numa pedra (por vezes numa esmeralda)[6]”. Em um dos diversos relatos do Graal – há vasta literatura a respeito, como os romances de Robert de Boron (José de Arimateia, Merlim, Perlesvax), Chrétien de Troyes (Le conte du Graal), Albrecht von Scharffenberg (Titurel), sir Thomas Malory (Le Morte d'Arthur) –, a pedra celeste teria sido trazida para a terra por uma legião de anjos caídos, condenados por se manterem neutros durante a rebelião de Lúcifer. Depois, a pedra miraculosa teria sido confiada à proteção de um corpo de cavaleiros de elite. Esta versão, defendida por Wolfram von Eschenbach, encontra uma variante, citada por Julius Évora em seu estudo sobre o Graal: a pedra vinda do céu seria uma esmeralda da coroa de Lúcifer e caiu na terra quando “Aquele que traz a luz” (“Eu sou O que Tenta”, na peça) foi atingido pelo arcanjo Miguel. O Graal seria essa pedra luciferina, segundo o autor italiano. Esta longa introdução se faz necessária porque ajuda a esclarecer o sentido da peça desde o subtítulo: Bufotragédia mefistofáustica ou Mefistofarsa bufotrágica, expressões que denotam a fusão dos gêneros trágico e satírico e apontam a relação não apenas com os mitos do Graal, mas também com o Fausto de Goethe, saga da hybris demoníaca e ao mesmo tempo metáfora da compaixão divina[7]. Na peça de Haroldo de Campos, todos esses mitos e símbolos são transfigurados: Mefistófeles (de me-photo-philes, “aquele que não ama a luz”, ou ainda de me-phausto-philes, “o que não ama Fausto”), o Senhor das Moscas[8], é chamado de Luciphalus, Lampadófo, Príncipe-Bastardo ou Todaluz, conserva alguns elementos do personagem fáustico, como a vulgaridade e o senso de humor grosseiro, assim como o seu caráter metafísico de contraparte da luminosidade (“Eu te conheço. A luz é a irmã albina da treva. A treva é um caráter recessivo, como os olhos azuis. A luz domina”, diz Graal ao Tinhoso, no início do segundo ato). A oposição entre luz e trevas, que remonta aos relatos bíblicos do Bereshit (traduzidos parcialmente pelo poeta, assim como excertos da segunda parte do Fausto), está na base da própria teoria das cores de Goethe, estudada por Walter Benjamin, que assim a resume: “A Ferbenlehe considera as cores como sendo metamorfoses da luz, como fenômenos que se produzem na luta da luz com a escuridão. Junto ao pensamento da metamorfose, é importante para Goethe o da polaridade, que percorre toda a sua pesquisa. A escuridão não é mera ausência de luz – se assim o fora, não seria perceptível – mas sim uma forma efetiva de contraluz[9]”. Lúcifer, aquele que traz a luz, torna-se, após o episódio da rebelião e da queda, aquele que traz a sombra, numa dialética assim sintetizada por Benjamin, em outro contexto: “A alegoria é ambas simultaneamente, e ambas são por natureza contraditórias[10]”. É possível pensarmos na negatividade luciferina também em seu aspecto transgressor: Lorde Leviatã é aquele que ultrapassa todos os limites, cometendo o pecado de trapassar del segno, na conhecida passagem da Divina Comédia de Dante (Paraíso, XXVI, 117). Mefisto não reconhece hierarquias de poder, nem fronteiras para as suas ações, propõe-se a tomar o céu de assalto, liderando a rebelião dos anjos, e paga o preço por seu orgulho e arrogância, episódio descrito por Milton em O paraíso perdido. No diálogo entre Lúcifer e Graal na peça de Haroldo de Campos, porém, predomina o aspecto da Tentação: o Supremo Tentador, com o nome de Todaluz (que podemos entender, dialeticamente, como Todatreva), tenta seduzir o protagonista, acenando com uma retórica de prazeres: “Vamos de uma vez. Decide. Está vendo aqueles, lá embaixo. Anseiam por te receber em seu meio. (...) E depois as mulheres. As grandes alvas úbeis lábeis. Suas máquinas de mansidão. Suas moendas amorosas com vulvas e nenúfares: molham”, passagem que pode ser comparada ao primeiro diálogo entre Fausto e Mefistófeles, no Poema Total de Goethe, onde o Demo “zomba da ciência e faz o elogio da abundância sensual da vida, à qual o saber teórico se opõe com sua plúmbea coloração mortuária[11]”. O personagem Graal, por sua vez, resiste ao jogo de sedução e recusa a oferta mefistofélica, à maneira do Parsifal wagneriano: “Fico com o meu nome. Ele já está amargo: eu o levo há cem anos. Mas não importa. É uma taça. Seu cristal cola-se a meu lábio como uma pele de vidro. E eu já te disse: se fosse uma constelação, gelaria, exceto duas estrelas”. Em seu mito de origem, o Graal remete ao “tema de um centro misterioso”, segundo Julius Évora, ao “tema de uma busca, de uma prova e de uma conquista espiritual”, e ainda ao “tema de uma sucessão ou restauração real que por vezes assume mesmo o caráter de uma ação curativa ou vingadora”, tendo portanto o caráter de “‘mistério’ em sentido próprio, isto é, iniciático[12]”. A demanda do Graal é interpretada, na psicanálise junguiana, como a busca do self e “o processo de individuação (...), uma evolução progressiva através da qual o buscador (Parsifal) vai-se tornando aos poucos um ser humano integral. Suas buscas terminam quando acha o Graal, isto é, quando atinge o self, tornando-se ‘ele mesmo’”, na definição de Robert A. Johnson[13]. Na peça de Haroldo de Campos, a busca mística ou psicológica cede lugar a outra demanda, mais terrena, de amor e poesia. Despido da aura metafísica, o Graal de Haroldo de Campos é um arquivista de escritório comercial, numa época regida por “Homens de negócio. Capitães da indústria. Poderosos fabricantes de matéria plástica”. Sua amada não é Kundry, a feiticeira tentadora da ópera de Wagner, mas uma jovem datilógrafa habituada a dançar no Club Sweet e ir ao cinema, cujo nome emblemático é Aureamusarondinaalúvia. Esta palavra-montagem, ou palavra-ideograma, apareceu pela primeira vez no poema Ciropédia ou A educação do príncipe, de Haroldo de Campos, escrito em 1952, e é formada pela junção neológica dos termos áurea + musa + arondina (andorinha) + alúvia (do latim alluo, banhar-se, + plúvia, chuva, e também referência à Anna Lívia Plurabelle do Finnegans Wake de Joyce). Ela pouco aparece na peça: sua presença se desenvolve como quase-ausência, para culminar, nas últimas linhas, em um enlace amoroso, na forma da citação de um fragmento do poema no âmago do ômega, escrito entre 1955 e 1956 por Haroldo de Campos (“marsupialmor mam / milos de lam / preias presas”). A microestética de Graal é plena de citações de palavras, imagens, metáforas e trechos de poemas escritos pelo autor de Auto do possesso, numa consciente autorreferencialidade ou plagiotropia. Numa das falas da personagem Dame Mémoire, por exemplo, lemos: “Na Pia-Máter, a mais interna das membranas, eu jazia colada a meu oráculo”, onde o autor se apropria das linhas iniciais do poema Naja vertebral, de 1953, reconfiguradas, com acréscimo de outras linhas, compondo um outro texto, uma variação, tal como a palavra é entendida na música de concerto. O vocabulário erudito de Graal e a dicção quase abstrata das falas desafiam a retórica dramatúrgica, mais propensa à coloquialidade, sugerindo uma aproximação com a música: é um texto com vocação para a partitura, para a ópera de câmara. A presença de coros (dos Iguais, dos Homens sem cabeça e dos Homens sem braço) reforça a intenção musical polifônica, ao mesmo tempo que introduz, ao modo de anticlímax, um choque de realidade, nos trechos finais do segundo ato, onde a crítica ao capitalismo é mais direta:
CORO I:
Minhas notas, minhas notas
Que faço com as minhas notas?
CORO II
(contando desalentadamente):
De QUINHENTOS... DE MIL... DE QUINHENTOS... de MIL
(Dirigem-se para GRAAL)
CORO I
A mesa está posta. Que faremos com a mesa?
CORO II
Nossos corpos estão inteiros. Que faremos com nossos corpos?
GRAAL:
Eu sou GRAAL. Eu não faço. Procuram-me. Eu me...
CORO I:
Cornucópias! CIFRÕES! MILHÕES! CIFRÕES!
CORO II
Estas vigílias...
CORO I:
De corno e cópias... que faremos com MILHÕES? Que faremos com CIFRÕES? CIFRÕES... CIFRÕES... CI...
GRAAL:
(para Áureamusa)
Eu me eu te eu se eu si...
Eu meemmim eu me em ti eu me em si.
COROS I e II
(uníssono)
No princípio era o CI...
GRAAL:
Eu meemmimtimesmo... SI...
GRAAL e ÁUREAMUSA
(a duas vozes):
Sim!
A metamorfose semântica operada pelo poeta no trecho final da peça, em desafio e recusa à tentação capitalmefistofélica, fragmenta a palavra CIFRÕES, isolando a sílaba CI, que se transforma no pronome si, e por fim no advérbio sim e no substantivo cio: desconstrução e metamorfose das trevas, reconvertidas em LUZ.
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*Claudio Daniel é poeta, romancista, crítico literário, professor de literatura, editor da revista Zunái e do Banquete doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Notas
[1] O termo mefistofáustico será empregado novamente por Haroldo de Campos no livro Deus e o Diabo no Fausto de Goethe, publicado em 1981. [2] “Os fenômenos do dialogismo polifônico e da carnavalização são parentes nas reflexões bakhtinianas”, escreve Haroldo de Campos. “Pode-se mesmo dizer, parece-me, que envolvem os dois sentidos mais relevantes do termo paródia (embora o próprio Bhaktin, nas suas discriminações tipológicas, não o tenha usado como termo categorial assim abrangente): o etimológico, lato, de ‘canto paralelo’, e o estilístico-literário, estrito, de inversão cômica.” (CAMPOS, 1981: 115) [3] Sobre a alegoria, escreve Haroldo de Campos: “Observou, entre nós, Flávio Kothe que Benjamin retoma a alegoria no seu sentido etimológico de ‘dizer o outro’ e a opõe ao símbolo, como o centrífugo ao centrípeto; o conceito benjaminiano de ‘obra alegórica’, para o mesmo autor, corresponderia ao de ‘opera aperta’ de Umberto Eco. (...) Nesse ‘discurso outro’ ou ‘do outro’, tudo pode significar tudo, alargando-se ao máximo o âmbito de remessa da cadeia semiótica de interpretantes” (idem, 130). [4] MALLARMÉ, 1984: 10 [5] In CAMPOS, 1993: 15. [6] ÉVORA, 1978: 95. [7] No livro Deus e o diabo no Fausto de Goethe, o próprio Haroldo define o Fausto como um “poema enciclopédico, antes do que tragédia é uma tragicomédia, com enclaves líricos (...) e longos excursos filosófico-dialogais (Hegel chamou-o ‘tragédia filosófica absoluta’, apesar de o próprio poeta, ironicamente, se haver insurgido contra a mania dos alemães, ‘gente bizarra’, de querer encontrar por força, no fundo de uma obra, ‘alguma ideia ou pensamento abstrato’, que lhe servisse de fio condutor )”. In CAMPOS, 1981: 73. [8] No Fausto de Goethe, escreve Haroldo de Campos, o Maligno é chamado de “Derr Herr der Ratten und Mause, / Der Fliegen, Frosche, Wanze, Lause, ou seja, ‘o Soberano dos ratos e camundongos, das moscas, dos sapos, percevejos e piolhos” (CAMPOS, 1981: 91). [9] in CAMPOS, 1981: 151 [10] Idem, 131. [11] CAMPOS, 1981: 84. [12] ÉVORA, 1978: 31. [13] In ESCHENBACH, 1989: 15.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2014.
CAMPOS, Haroldo de. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981.
CAMPOS, Haroldo de. Hagoromo de Zeami. São Paulo: Estação Liberdade, 1993.
ESCHENBACH, Wolfram Von. Parsifal. Tradução: Alberto Ricardo S. Patier. Brasília: Thot Livraria e Editora, 1989.
ÉVORA, Julius. O mistério do Graal. Lisboa: Vega, 1978.
MALLARMÉ, Stéphane. Igitur ou A loucura de Elbehnon. Tradução: José Lino Grunewald. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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