Por Josinei de Souza Arevalo
Paulo Leminski já era um talento reconhecido quando resolveu se aventurar em um novo gênero. Publicada em 1987, Guerra dentro da gente é uma fábula moderna sobre um personagem (Baita) que é vendido como escravo pelo seu suposto mestre (Kutala) e que precisa transformar fragilidade em força para sobreviver em um mundo mutante. Após uma breve apresentação, o livro dá um salto temporal com o personagem já adolescente, mas que desenvolveu um olhar aguçado para as coisas da natureza e um certo desprezo pelo mentor.
No circo para onde foi levado como escravo, Baita aprende a cuidar dos animais. Do convívio diário com elefantes e tigres, o jovem extrai profundas lições. Um dia, um palhaço o convida a fugir. Ele então reconhece naquela figura o mestre que havia prometido lhe ensinar a arte da guerra. Sem sabe o que o aguardava, Baita aceita o convite.
O livro de Paulo Leminski apresenta, além de um enredo cheio de personagens complexos, uma estética zen-budista e uma vasta alusão à pós-modernidade que vai do novo imperialismo, passando pelos regimes totalitários do século XX até chegar às aventuras hollywoodianas ao gosto de Star Wars e Karatê Kid.
Em sua jornada, Baita conhece uma aldeia sob o domínio de corsários. E se solidariza com aquelas pessoas que são obrigadas a entregar suas matérias-primas, suas pérolas, para os gatunos.
O jovem parte do vilarejo, mas a atmosfera opressora não fica para trás. Pouco tempo depois, ele desembarca na Cidade Assassinada. E ali testemunha o horror completo: casas destruídas, histórias reduzidas a cinzas. A guerra adiciona uma camada dramática à população que foi ultrajada e levada como escrava.
Melancólico, Baita segue para a Grande Cidade. Ao chegar, ele ouve, à maneira dos zen-budistas, a voz daquela nova terra. O que a voz pressagiava? Baita não vai demorar para descobrir.
Um ponto emblemático na entrada da Grande Cidade desperta a atenção do rapaz. Ele interpela o velho mestre. Kutala explica que se trata da Estátua da Liberdade. Baita quis saber mais sobre o monumento ao que o velho responde: “Liberdade para o Grande Rei fazer o que quiser com qualquer pessoa’’.
A narrativa avança. Baita, movido pelo despeito, simula um furto, enfiando um rubi na bolsa de Kutala enquanto caminhavam pelo Grande Mercado. À falta de sua pedra preciosa, o vendedor faz alarde. A dupla é detida. Os guardas anunciam a revista. O jovem se exime de qualquer envolvimento no delito. A pedra cai da bolsa. Kutala é levado à prisão ao passo que Baita é convidado a se juntar ao exército do Grande Rei.
No quartel, ele recebe instruções de como manejar as armas. Seu instrutor adverte: “Vocês vão aprender a usar o chicote. O papel de um guarda é bater nas pessoas que desagradam ao Grande Rei. Matar vem depois. É preciso extrair o máximo de dor de cada chicotada. Saber se devem bater no rosto ou nas costas, nos ombros ou no peito”.
Em um ano de treinamento, Baita aprende a montar, a manusear espadas, arcos e a respeitar hierarquias.
A partir desse ponto a história ganha novos contornos. E Baita mergulha numa espiral que só terminará treze páginas depois.
Guerra dentro da gente é o exemplo mais bem acabado de fábula moderna. Como Décio Pignatari, Paulo Leminski busca a universalidade. Há provérbios tipicamente brasileiros na obra, não para dar uma cor local ao livro, mas para capturar a essência de alguns discursos contraditórios – verdade que ultrapassa fronteiras geográficas.
Os parágrafos fluem, nada sobra. Laconismo e esmero saltam aos olhos. Os conflitos internos do personagem e o ambiente quase distópico da narrativa não encontram correspondência na forma. O estilo do livro é cristalino, bem diferente do experimentalismo linguístico que absorve o mundo caótico. A exemplo de Agora que são elas.
Não são apenas os aspectos estilísticos que garantem a permanência dessa obra. Guerra dentro da gente também vale pelo seu conteúdo humano. Leminski nos ensina a ver de novo. Mas sem proselitismo.
A princesa Sidarta, que surge em determinado momento, transcende os jardins reais, aqui signo de puerismo e soberba. A princesa que jamais precisaria caminhar ou abrir uma porta em toda sua existência recebe um chamado e se permite. O outro é real e suas dores não somem com beijos mágicos.
Duas micro-revoluções acontecem. No plano formal, a fábula dá um passo à frente. No conteudístico, vemos o nascimento de uma personagem caleidoscópica, complexa, profunda. Princesa Sidarta reescreve, de quebra, dois mitos: um ocidental e outro oriental. Princesa Sidarta é a vitória da esperança. É poesia viva.
Guerra dentro da gente, em linhas gerais, é o renascimento dos humanos.
Mais uma vez, Paulo Leminski se coloca na vanguarda. Não por mero cabotinismo, mas por força de seu caráter iconoclasta, subversivo.
A grande pergunta é: o que aconteceu em 1987 para Leminski se sentar e escrever a fábula? O país ainda vivia sob a sombra do regime militar. Havia um receio de retrocesso. O poeta queria abordar isto, mas a partir de uma metáfora. Esta é a explicação mais plausível. Outra possibilidade é que ele se desafiou: escrever um livro que fosse, em certa medida, o extremo oposto de Catatau. Fiquemos com a primeira hipótese.
Baita, Kutala, a dona do circo, os elefantes, os tigres, a jovem com uma perna só, o homem com a máscara de tubarão, o navio nomeado Tubarão, o poeta performer no topo do mastro, o Grande Rei, a princesa. O que são esses personagens senão emblemas de mundo plural que abarca o contraditório, o diferente, o buslesco?
É patente a base esquerdista na obra de Paulo Leminski. A inclusão de seu alter ego, um poeta controverso, na fábula é sintomático. E funciona duplamente: como um aceno a todos os escritores símbolos de resistência em face de regimes totalitários e uma crítica à sociedade consumista que subjuga o papel da arte.
“eu vim pelo caminho mais difícil/a linha que nunca termina”
Marxista, popular ou pop? Leminski é a terceira margem do lago concretista/roseano. Entre celtas e líderes equivocados, ele continua sendo design de linguagem como meu amigo de reflexão Décio Pignatari.
Seu viés nunca foi do maniqueísmo como ficou claro nos versos acima.
Leminski não trocava o debate de grandes ideias pelo discurso do medo: o bem contra o mal. O poeta nos salva. Mas do experimentalismo vazio.
Em Ensaios e anseios crípticos ele escreveu: ’’Quem nunca leu Petrônio não conhece as delícias do latim, o sumo, o suco, o tutano, o perfume desse latim ágil, vivo, vulgar, malandro, espertíssimo, único‘’.
É sempre um prazer abrir um livro de Paulo Leminski. Se em Guerra dentro da gente ele vai além dos limites da fábula, ainda está no seu direito de grande escritor pop.
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* Josinei de Souza Arevalo é poeta. Nasceu em Tonantins (AM). Inédito em livro, tem poemas publicados nas revistas Zunái e Tlön, de Portugal.
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