Por Susana Kampff Lages
“Crisantempo” é ao mesmo tempo um neologismo e o polo deslocado em torno do qual gravita o título (ele próprio um poema, por sua vez intitulado “Parafísica” e dedicado ao físico Mário Schenberg, em 1985) do novo livro de poemas de Haroldo de Campos, Crisantempo: No espaço curvo nasce um, lançado em 1998, na sede social do clube A Hebraica, com presença do poeta e da cantora Fortuna.
A palavra “crisantempo” é exemplar de uma das marcas registradas de sua escrita: a criação de novos vocábulos por justaposição, à maneira da língua inglesa ou alemã. Nessa fusão, há muito em jogo, percursos por certo apenas aludidos, apesar das notas de esclarecimento ao final do volume.
Dentre eles, talvez o maior e mais extenso, é uma dupla viagem: mergulho na própria tradição – profundo Ocidente e a aventura do desconhecido – longínquo Oriente. Entre esses extremos, uma mediação, quase uma cesura – possível virada, resfôlego: a vivência de Jerusalém e a passagem – como poeta e tradutor – por uma literatura que se faz, hoje como ontem, numa língua desde sempre inspirada, o hebraico. À viagem no espaço, muitas vezes concretização poética de viagens efetivamente empreendidas pelo poeta-andarilho, agrega-se, visceral, a viagem no tempo, um passeio estonteante por séculos de produção lírica mundial e por uma variedade enorme de ritmos e metros.
Verdadeiro tratado de versificação universal (pois inclui formas rítmicas e métricas orientais) encarnado, cujos versos, exemplares, ora proliferam em barroquismos, ora cessam abruptamente, contidos (resquício da extrema contenção pregada no programa do concretismo dos anos 50?), o livro divide-se em 21 seções de poemas de caráter e origem muito diversos. Cobrindo 12 anos de produção do autor, essa antologia inflorescente traz desde traduções de poesia latina, japonesa, e hebraica moderna até poema dedicados a amigos poetas e artistas plásticos, além de poemas que evocam cidades ou lugares visitados pelo poeta e outros que capturam em minudências do cotidiano vastas dimensões especulativas.
Uma mandálica flor dourada é evocada pelo espectro de cores do crisântemo, flor do Oriente, cujas múltiplas tonalidades, amarelo-laranja-avermelhadas (cores das míticas Roma e Jerusalém), incendeiam-se de poema em poema, travestidas em brilhos ensurdecedores e ecos ofuscantes; de âmbares, safiras, corais, topázios e rubis rebrilham, nobres, as cores que o olho do poeta capta em tom, ora menor ora maior: amarelos, laranjas, vermelhos, púrpuras e vinhos, trespassando o brilho de ouros e auras, sóis e mel, saindo do fulgor de chamas, tochas e fogo, tudo isso vertido em registro coloquial (“Olho vermelho/ de um semáforo”), irônico (sol / no urinol) ou sublime (“Petrarca canta Laura em sonetos conclusos como sóis”).
Mas o abrasamento poético também se consuma com sinal e cor inversos, traindo uma outra tonalidade, menos eufórica, melancólica, que perpassa o conjunto de poemas em imagens de frio, gelo, azuis, cinzas e branco, cor das cores, vinculando o poeta a uma outra tradição – a do romantismo da flor azul de Novalis, quintessência erótico-tanatalógica da lírica pós-romântica ocidental.
Ora, o poeta pós-romântico é aquele que tem consciência aguda da presença da morte como força atuante na vida, como horizonte que se prenuncia e dispensa a palavra, anunciando, por isso mesmo, a necessidade tanto mais urgente de uma poesia que se diz pelo vazio, pelo não dito, nos ocos da experiência, nos interstícios dos enunciados, no nada do irrepresentável, que confina com assassinato e morte e que também torna obrigatória a pergunta pelo lugar de uma possível ética na poesia, uma ética da forma que ultrapassa qualquer eventual posição socialmente engajada do poeta.
Três bons exemplos desse aspecto da poesia haroldiana são os poemas “O anjo esquerdo da História” (p. 67), escrito após o massacre dos sem-terra, “Nékuia” (p. 138-45), sobre a mundialmente decantada poluição de Cubatão, e “E Quindi Uscimmo” (p. 313), escrito depois de visita ao memorial do Holocausto em Jerusalém. Convém lembrar, contudo, que esse tom grave é constantemente contrabalançado por saudáveis doses de autoironia, como no verdadeiro elogio ao humor melancólico do poema, muito ironicamente drummondiano, “Saturnum in Aquario Ascendentem” (p. 46-9) e por uma vitalidade sensual que só Amore, mítico guia do poeta, pode florescer.
Edição primorosa e sensível ao poliforme percurso do poeta, o livro publicado pela editora Perspectiva merece destaque: do papel ao trabalho gráfico e fotográfico, tudo concorre para torná-lo não apenas o receptáculo de poesia da mais alta qualidade, mas também para fazer dele um objeto artístico por força e direito próprios.
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* Resenha publicada anteriormente no suplemento “Especial Livros Domingo” de O Estado de São Paulo, em 13 de setembro de 1998, p. D6.
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