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Haroldo de Campos: signância que cintila

Por André Dick


A obra imediata de Haroldo pós-Xadrez de estrelas, Signantia: quasi coelum/ Signância: quase céu (1979), é direcionada em parte no mesmo rumo dos poemas de Lacunae, seção que fecha seu livro anterior, mas buscando a expansão. Trata-se de uma poesia voltada para sua própria criticidade, mas avançando em espaços ainda não alcançados por Haroldo. Nesses poemas, a “abolição” e a “epifania”, que Andrés Sánchez Robayna no seu posfácio do livro recupera de Mallarmé e Joyce, são termos úteis para captar o que Haroldo filtra sobretudo de Pound e da poesia japonesa, de suas traduções apresentadas em A arte no horizonte do provável.


Seguindo o caminho de Lacunae, há a ideia do texto como “elusão de toda outra coisa que não seja sua autoimantação, isto é, do texto que somente como abolição consegue ser epifania, que somente como elusão alcança verdadeiro ser textual”. A elusão, como percebe Robayna, é o principal fator para a existência de Galáxias e para os textos de Lacunae e de Signantia: quasi coelum. A principal busca, além da “construção/desconstrução” do mundo é de pluralizar a “operação do texto”, por meio não só do ideograma via Fenollosa e Pound, do espaçamento crítico e constelatório de Mallarmé, como também pela construção de crítica e obra criativa com ligações essenciais. Em Signantia: quasi coelum, a epígrafe de Novalis revela que o estudo de Haroldo também se volta para o Romantismo de Iena e, sobretudo, para a poesia alemã, mas devidamente filtrado, recuperando uma criticidade adequada.


Com poemas da primeira seção, que dá título ao volume, voltados para o ato da escritura, há muitos fragmentos que atestam esse rumo, ecoando uma espécie de Paul Celan em alguns instantes: “Glande de cristal / desoculta / ramagem de signos”; “frases / no papel / / arestas de / grafite”; “semência / pó de luz / grafo / estelante / mas: palavras:”; “esta pedra / arboriza-se por dentro / / está / inscrita: lê-se / de si / mesma”; “escrever no vidro / sentenças de vidro”; “assim o / pincel / na página / / esta / arte / ou o / / caráter”; “o lápis tudo / colitera / / exfoliando letras / no papel / / erecção de signos / natura naturante”; “frases / no papel / / arestas de / grafite”; “crisântemos / escritura solar / na sala”; “tinta branca / sobre / carta branca / / escrever é uma forma de / ver”.


Tais poemas, da primeira parte, que visam representar o “céu” na Divina comédia haroldiana, dão acesso à segunda seção, intitulada “Status viatoris: entrefiguras”, com seu “purgatório da trivialidade cotidiana”, segundo Robayna, localizados por uma aura mais barroca, e finalmente a “descida aos infernos” de “Esboços para uma Nékuia”, em que se abre o espaço de Mallarmé, além de Sousândrade, Kilkerry, Oswald e a própria poesia concreta.


Também, numa época em que se discutia a morte do autor, Signantia lida com o concenito da escritura e isso se dá na continuidade do “percurso textual” que acompanhava Xadrez de estrelas. A “morte do autor” costuma ser associada ao fragmento de uma colocação de Arthur Rimbaud, “Je est un autre”, quase um axioma da Modernidade. Assim, Un coup de dés é identificado como o poema moderno em que se dá a origem do “não autor”, que ecoa mais tarde em boa parte da poesia contemporânea. Adão deu os nomes às coisas, depois que Deus o criou, instaurando a nomeação das coisas, inaugurando, de certa forma, a linguagem, como vemos na visão barroca de Walter Benjamin. Se Dante Alighieri – com seu “olho fosfóreo”, segundo Haroldo – “relata” a visão maravilhosa que teve ao enxergar Beatriz em Vida nova, ou sua jornada pelo Inferno, pelo Paraíso e pelo Purgatório, em busca da amada, na Divina Comédia, em Un coup de dés, o autor se ausentaria, dando lugar somente à palavra, à linguagem, que se explode e se implode, cujos estilhaços só irão se reunir novamente na ordenação de um espaço poético disseminado e sem rastro de origem: “escritura puída / onde se lê”; “pó de letras no vento”.


Assim, cada poema sob o ponto de vista moderno se apresenta como um espaço para a linguagem, como espírito crítico (do autor em relação à própria obra e do leitor em relação a ela), ou, como avalia Octavio Paz, sendo a real constituição do acaso. No limiar dessa existência, Mallarmé se apresenta como ponto único na literatura, visto sincronica ou diacronicamente, e Un coup de dés como o principal ponto, eixo principal, de uma poesia sustentada na criticidade. Pode-se ver, portanto, uma formação do eu-lírico, na poesia e em que ponto ela começa a se dissipar, lentamente, mas não exatamente o ponto final.


É aqui que entra Signantia: quasi coelum, com seus poemas procurando os espaços das páginas, com suas palavras aparentemente dispersas e suas construções enigmáticas e como que diretamente dos experimentos da poesia experimental barroca. Mas também é um livro no qual Haroldo de Campos já anuncia pequenos lances de biografia por meio do desenvolvimento de poemas e analogias entre palavras e espaços em branco, apontando para essa saída de uma visão mais estruturalista. Para o poeta, em “Ficção como confissão” (Metalinguagem & outras metas), Signantia “é um livro carregado de biografemas, ‘biografado’, por assim dizer, no vértice ou no vórtice dessa tensão entre ficção e real, imaginação e história”, pensado “em forma musical, como uma composição tripartite, invertendo o esquema topológico dantesco”. Isso anteciparia sua poesia bem-humorada de A educação dos cinco sentidos e a carga de Oriente de Crisantempo – muitos poemas de Signantia parecem haikais com estilo barroco agrupados nas páginas. As flores marcam presença: “crisântemos / / escritura solar / na sala”; “profundoazul / listas de ágata / azul mais claro / raia de rubi radiante” / “o girassol pensa: / leopázios”, “da crisálida a borboleta-dragão”, “cristal de violetas / farfala”; “céu: pistilos”; “um poema / pende / aceso friso de / gerânios”; “do CAOS o COSMO / da crisálida a”, assim como as cores se espalham: “CORPO / / canibal um foco de vermelhos”; “aqui se / tinge um / verde de / pupila”; “SOL roxo índigo”; “o índigo é um caso do azul?”, junto a figuras da natureza: leões, pássaros, libélulas, formigas, tigres. Tudo que interessa a Haroldo se mostra como a constelação de Mallarmé. Em Signantia, escreve: “um texto: cão / / não / constelação” e “o penacho de estrelas / e a / mariposa comburente”. É o mesmo autor que na sua tese Morfologia de Macunaíma, de 1972, analisou que o personagem principal do livro de Mário de Andrade, ao final da história, se transformou na Ursa-Maior porque havia ali um diálogo com o autor de Un coup de dés.


De certo modo, ele entende, como Octavio Paz em Os filhos do barro, que a verdadeira religião da poesia moderna é justamente a analogia, valorizada inicialmente pelo Romantismo de Schlegel e Novalis. Trata-se de um universo construído pelas relações que sustentam a imagem poética como configuração de uma “realidade rival da visão do revolucionário e da visão do religioso”, como outra coerência, “não constituídas de razões, mas de ritmos”. Há um momento, segundo Paz, em que é rompida tal correspondência: “há uma dissonância que se chama, no poema, ironia, e na vida, mortalidade”. A poesia moderna seria “a consciência dessa dissonância dentro da analogia”. Poucas obras exemplificam tão bem isso quanto Signantia: quasi coelum e seus “signos tempestuosos” espalhados pelas páginas, uma das obras poéticas mais surpreendentes de Haroldo.

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Referências


CAMPOS, Haroldo de. Signantia: quasi coelum/Signância: quase céu. São Paulo: Perspectiva, 1979.


PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.


ROBAYNA, Andrés Sánchez. A micrologia da elusão. In: CAMPOS, Haroldo de. Signantia: quasi coelum/Signância: quase céu. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 127-141.


* André Dick nasceu em Porto Alegre (RS), em 1976. É poeta, crítico literário e doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Publicou os livros de poesia Grafias (Instituto Estadual do Livro, 2002), Papéis de parede (7Letras/Funalfa Edições, 2004), Calendário (Oficina Raquel, 2010) e Neste momento (Kotter Editorial, 2022), assim como a coletânea de traduções Poesias de Mallarmé (Lumme Editor, 2010). Também organizou Signâncias: reflexões sobre Haroldo de Campos (Risco Editorial, 2010) e A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski (Lamparina, 2004), este com Fabiano Calixto. Editor do site Cinematographe.





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