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HAROLDO E GILDA:A QUESTÃO DA MORFOLOGIA PROPPIANA

Por Paulo de Toledo


O objetivo deste breve artigo é apresentar uma visão alternativa daquela de Haroldo de Campos e de Gilda de Mello e Souza quanto ao uso da teoria proppiana para a leitura de Macunaíma, obra-prima de Mário de Andrade.


Haroldo de Campos, no Morfologia do Macunaíma, analisa as triplicações[1] na fábula andradiana e encontra vários exemplos desse fenômeno ao longo de toda a obra. Um dos trechos analisados por Haroldo é o seguinte:


No outro dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e ficaram no mato até a boca-da-noite. Nem bem o menino tocou no folhiço e virou num príncipe fogoso. Brincaram. Depois de brincarem três feitas, correram mato fora fazendo festinhas um pro outro (ANDRADE, 1984, p. 12).


Antes dessa cena da “brincadeira” entre Macunaíma e Sofará, mulher de Jiguê, ambos já haviam “brincado” em outras duas ocasiões. Ou seja, há aqui uma terceira ocorrência (triplicação) do mesmo tipo de ação entre os personagens. Comenta Haroldo de Campos “que o roubo da mulher de um dos irmãos por outro é uma das formas de ‘dano’ do exemplário de Propp [...]” (CAMPOS, 2008, p. 117). “Dano” (função VIII) é a função que, segundo Propp, “dá movimento ao conto” (PROPP, 1984, p. 35). Um dos exemplos de “dano” citado pelo estudioso russo que se assemelha à narrativa andradiana é o seguinte: “Os irmãos mais velhos roubam a noiva do mais novo” (1984, p. 35).


O autor de Galáxias também analisa a triplicação da luta entre Macunaíma e Pietro Pietra (CAMPOS, 2008, p. 176-177). Com a vitória de Macunaíma (função XVIII: o antagonista é vencido), a muiraquitã é recuperada e o “dano” é removido (função XIX: o dano inicial ou carência são reparados). Sobre a “função XIX”, Propp afirma: “Com esta função o conto atinge o ápice” (1984, p. 51).


Porém, seria a recuperação da muiraquitã realmente o “ápice” do romance?


Após o “cap. XIV - Muiraquitã”, em que há a vitória do herói sobre o Gigante, temos ainda mais três capítulos, além de um epílogo. No “cap. XV - A pacuera de Oibê”, Macunaíma e o “monstro Oibê o minhocão temível” participam de uma perseguição que só termina após muitas e muitas léguas e depois de o herói conseguir, finalmente, por meio da sua “mágica”, transformar a pacuera num periantã e fugir com a princesa através do rio.


Então botou o furabolo na goela pela última vez, fez cosquinha e alojou a pacuera n’àgua. A pacuera virou num periantã muito fofo de ervas. Macunaíma botou a gaiola com jeito no fofo, atirou a princesa lá e dando um arranco na margem com o pé, afastou da praia o periantã que as águas levaram. Oibê chegou mas os fugitivos iam longe (ANDRADE, 1984, p. 191).


Essa perseguição do herói pelo monstro Oibê pode ser classificada como a função XXI - o herói sofre perseguição (PROPP, 1984, p. 53). Essa mesma função ocorre também no capítulo seguinte, “XVI - Uraricoera”, quando a “sombra leprosa do mano Jiguê” persegue o herói até que a “sombra” se transforma na segunda cabeça do urubu-ruxama: “E voou pra altura. Desde esse dia o urubu-ruxama que é o Pai do Urubu possui duas cabeças. A sombra leprosa é a cabeça da esquerda. De primeiro o urubu-rei tinha só uma cabeça” (ANDRADE, 1984, p. 207).


Finalmente, no “cap. XVII - Ursa Maior”, Macunaíma sofre a artimanha de Vei, a Sol, e mergulha no “lagoão” onde a Uiara o espera para devorá-lo.


Voltando a nossa questão anterior: seria a recuperação da muiraquitã realmente o “ápice” do romance?


Depois de duas longas perseguições (a de Oibê e a da “sombra leprosa”) e da luta contra a Uiara, parece que a recuperação da muiraquitã (a reparação do dano) não poderia realmente configurar o “ápice” da narrativa andradiana. Gilda de Mello e Souza, em seu O Tupi e o Alaúde, coloca severas restrições ao uso da teoria proppiana para a análise do Macunaíma realizada por Haroldo de Campos[2] e faz uma interessante observação sobre o episódio da Vei e sua importância para a estrutura da narrativa.


Se tentássemos, a partir deste momento, pôr entre parênteses a analogia com o conto russo, deixando aflorar numa leitura relativamente inocente a morfologia profunda da rapsódia brasileira, veríamos que ela é regida não por um, mas por dois grandes sintagmas antagônicos: o primeiro é representado pelo confronto de Macunaíma com o gigante Piaimã, e dele o herói sai vitorioso, recuperando a muiraquitã; o segundo é representado pelo confronto de Macunaíma com Vei a Sol, episódio fracionado em duas sequências complementares, que chamaremos da escolha funesta e da vingança — e dele o herói sai vencido, perdendo para sempre a pedra mágica. Assim, ao invés da narrativa brasileira seguir o movimento progressivo do conto russo, evoluindo do dano para a reparação do dano, se submete a um movimento regressivo, em que a aventura evolui de um primeiro dano provisório a um segundo dano definitivo, com um tempo intermediário que de certo modo se anula (SOUZA, 2003, p. 49).


A partir das observações da estudiosa, poderíamos propor que, se ocorre um segundo dano (a luta com a Uiara e a consequente perda definitiva da muiraquitã), a reparação do primeiro dano (a vitória contra o Gigante e a recuperação da muiraquitã) poderia configurar não o único ápice do romance, mas, de certa forma, o início de uma nova narrativa, no que se assemelharia ao que ocorre nos contos maravilhosos. Eis o que afirma o folclorista russo:


Numerosos contos terminam no momento em que o herói é salvo de seus perseguidores. Ele volta ao lar e, no caso de ter resgatado a jovem, casa-se com ela, etc. Mas nem sempre é assim. Às vezes, o conto maravilhoso submete o herói a novas adversidades. O inimigo reaparece, rouba o objeto que o herói conseguira, mata-o, etc. Resumindo, o dano que constituíra o nó da intriga se repete, às vezes sob as mesmas formas, outras vezes sob forma diferente, nova para um determinado conto. Com isso, inicia-se um novo conto (PROPP, 1984, p. 54).


Sem querermos nos aprofundar na crítica feita por Gilda a Haroldo, parece-nos que o segundo “sintagma” sobre o qual fala a autora poderia ser explicado pela característica do conto maravilhoso de apresentar o herói enfrentando “novas adversidades” após a reparação do dano, o que proporcionaria o começo de um novo conto. Afirma ainda Propp: “Uma nova desgraça dá origem a uma nova sequência, e deste modo uma história reúne, às vezes, toda uma série de contos” (1984, p. 55). A “nova desgraça” – a perda definitiva da muiraquitã – iniciaria, portanto, uma “nova sequência”, que resultaria na transformação de Macunaíma na Ursa Maior. Sendo assim, poderíamos substituir o sintagma de que fala Gilda pelo termo proppiano sequência[3]. Teríamos, portanto, dois “ápices” da narrativa, cada um numa sequência/sintagma: o primeiro ápice seria a recuperação da muiraquitã, seguida da volta ao Uraricoera; o segundo, a perda definitiva do talismã[4] e a posterior transformação do herói em uma constelação.


Sob essa perspectiva, ou seja, considerando a teoria de Propp sobre a possibilidade de haver, depois do advento de um novo dano, o início de uma nova narrativa, poderíamos considerar que, em Macunaíma, ocorre algo similar ao verificado nos contos maravilhosos estudados pelo teórico russo.


Nossa proposta de leitura, ao apontarmos essa outra possibilidade de compreensão do romance de Mário de Andrade à luz da teoria proppiana, tem tão somente o intuito de tentar acrescentar um novo ponto de vista às importantes e iluminadoras interpretações de Haroldo de Campos e de Gilda de Mello e Souza.


Referências:


ANDRADE, Mário. Macunaíma. São Paulo: Círculo do Livro, 1984.

CAMPOS, Haroldo. Morfologia do Macunaíma. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Trad. Jasna Paravich Sarhan. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1984.

SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.


NOTAS


[1] Propp assim define o fenômeno da triplicação: “A triplicação como tal tem sido suficientemente examinada nos textos científicos; por isso não precisamos deter-nos agora neste fenômeno. Assinalaremos apenas que podem triplicar-se alguns detalhes particulares de caráter atributivo (dragão de três cabeças), bem como funções isoladas e pares de funções (perseguição-salvamento), grupos de funções ou sequências inteiras. A repetição pode ser uniforme (três tarefas, três anos de serviço), ou produzir uma intensificação (a terceira tarefa pode ser a mais difícil, o terceiro combate o mais terrível), ou apresentar por duas vezes um resultado negativo, e na terceira vez um positivo” (1984, p. 67).

[2] Diz a estudiosa: “Tentarei agora discutir a posição de Haroldo de Campos, para adotar um ponto de vista diferente do seu. Em primeiro lugar, levando mais a sério as reservas feitas por Propp e Jakobson quanto à validade de aplicação à literatura dos métodos surgidos para estudar o folclore; em segundo lugar, confiando menos nas analogias que propõe entre Macunaíma e o conto de magia; e, por último, procurando ressaltar na rapsódia brasileira os traços que justamente a definem como uma obra literária e valorizando, por conseguinte, os afastamentos que apresenta em relação ao esqueleto de normas e tradições que lhe serviram de estímulo” (2003, p. 44-45). Apesar da evidente importância que há nesse debate entre Haroldo e Gilda para o estudo do Macunaíma, nos contentaremos apenas em relembrar a discussão e não nos aprofundaremos nas questões que afastam ambos os críticos.

[3] Propp oferece um exemplo de conto com duas sequências. Na primeira sequência, narra-se a vitória do herói, a libertação de três jovens princesas, o noivado do herói com a mais nova dentre as moças e, por fim, o retorno do herói. Por sua vez, a segunda sequência da mesma narrativa mostra o herói sendo derrotado pelos seus irmãos e por um antagonista, que raptam as princesas, depois o herói recebe um objeto mágico, realiza uma tarefa difícil, salva as moças, castiga os antagonistas, e, finalmente, casa-se com a jovem princesa (PROPP, 1984, p. 121-2). Neste exemplo de Propp, o herói, ao contrário do que ocorre com Macunaíma, primeiramente vence o antagonista (fim da primeira sequência), logo após é derrotado por um novo antagonista (início da segunda sequência) e, por fim, volta a vencer (fim da segunda sequência). [4] Em nota de rodapé, afirma Gilda de Mello e Souza: “É oportuno lembrar que, no decorrer do livro, a muiraquitã é designada como amuleto, talismã e velocino roubado, numa intenção evidente de estabelecer a analogia entre a rapsódia brasileira e os relatos europeus que giram em torno da busca do objeto maravilhoso” (2003, p. 79). Um desses objetos maravilhosos seria o Graal. Em seu livro, Gilda elabora uma aproximação interessantíssima entre Macunaíma e o romance arturiano: “A hipótese que levanto é que Macunaíma pode filiar-se, sob certos aspectos, a uma remota tradição narrativa do Ocidente, o romance arturiano, que por sua vez desenvolve um dos arquétipos mais difundidos da literatura popular universal: a busca do objeto miraculoso, no seu caso, o Graal” (2003, p. 60).

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