Por Claudio Daniel

Caveira na mala é um livro inclassificável. Romance? Poema em prosa? Ensaio alegórico? Memórias, talvez? Sem dúvida, nessa obra singular, o hibridismo de gêneros e a miscigenação de estilos são elementos estruturais. É uma “obra aberta”, conforme o conceito do semioticista italiano Umberto Eco, pois a sua estrutura foi pensada de modo a permitir uma pluralidade de interpretações. Ao lermos Caveira na mala, somos surpreendidos pela sensação de uma contínua metamorfose, em que o texto se transforma a cada momento, como se fosse um caleidoscópio infinito. Essa sensação nos faz recordar de outro conceito de Eco, o de obra em movimento, que pode ser aplicado à arte dos sons, como a “música aleatória” de Pierre Boulez, em que a partir de três quatro blocos instrumentais definidos em partitura, é possível formar diferentes combinações, definidas pelo regente, e também às artes visuais, sobretudo as esculturas móveis, ou móbiles, de Alexander Calder, que nas palavras de Eco são “estruturas elementares que possuem justamente a capacidade de mover-se no ar, assumindo disposições espaciais diversas, criando continuamente seu próprio espaço e suas próprias dimensões”. O conceito de obra em movimento poderia ser aplicado também a algumas peças da artista plástica brasileira Lygia Clark, e em especial à série de esculturas em metal designada Bichos, que podem ser manipuladas pelos espectadores, assumindo diferentes contornos visuais; e a trabalhos de Mary Vieira, com a sua scultura mobile, e de Waldermar Cordeiro, como a obra Aleatório. Todos esses artistas são considerados representativos dessa vereda de pesquisa estética por Haroldo de Campos, que no livro A arte no horizonte do provável afirma: “A programação do acaso, sua integração na estrutura da obra, constitui hoje uma das preocupações dominantes da vanguarda internacional”.
Na literatura, as obras mais emblemáticas são, sem dúvida, o Lance de dados de Mallarmé, o Finnegans wake de James Joyce e os textos excêntricos de Gertrude Stein, em especial a série de tender buttons, ou “botões tenros” (aliás gíria das lésbicas norte-americanas para designar o clitóris). Em obras regidas por esse espírito de invenção, a sequência tradicional início-meio-fim é abolida (pensemos em La rayuela, de Júlio Cortázar), bem como as unidades tradicionais de tempo e espaço e a própria noção de verossimilhança: quando tudo pode ser transformado em tudo, todas as possibilidades estão colocadas na mesa. A distinção tradicional entre prosa e poesia é suprimida em favor da noção de texto (conforme define Max Bense em sua Pequena estética), o enredo é secundarizado e o uso da paródia e dos jogos vocabulares próprios da função poética são os alicerces fundamentais da composição. A ordem lógico-gramatical é perturbada pelas transgressões sintático-morfológicas e a própria maneira de ler o texto é alterada de forma radical. Em obras como Galáxias, de Haroldo de Campos, ou o Catatau, de Paulo Leminski, por exemplo, há uma multiplicidade de possíveis sequências de leitura: a própria arquitetura estrutural dessas invenções semânticas, que facilita a intervenção do acaso, permite essa mobilidade, levando ao questionamento do próprio conceito de livro. É a partir dessas formulações conceituais que podemos entender o livro-performance Caveira na mala, de Isadora Salazar e Thienne Johnson, que pertence à estranha família dos livros malditos, no sentido da experimentação radical de linguagem (que destoa da literatura de mercado publicada hoje por grandes editoras, tão incensada por certa crítica acadêmica e jurados de concursos literários). Logo no início do livro, após uma citação de Hoelderlin em alemão (o hibridismo nessa obra é também idiomático, desde a epígrafe até o miolo), lemos, nas primeiras linhas do capítulo inicial, intitulado O bóson de Higgs:
atacaram uma ilha desarmada de bombas
e a ilha se chamava Cérebro.
A mesma ilha onde a avó de Rita a Quase Insolvente, certa vez, resgatou seu baldinho vermelho das águas turvas de rio em que aprendeu na mesma hora a nadar.
Era uma ilha fluvial. Aluvião Catalão Meio de Rio. Alongada lágrima que escorre.
Ilha reversa, braço de rio reverso, ao gosto do eixo, dos eixos, rodamoinhos, e das pororocas das luas; na verdade, tão reversa quanto ao sabor da pororoca dos tempos.
—Noah, o filho de Rita, tem cabelo de rodamoinho.
— Tem?
—Sim. TempoMoinho
— três?
— Sim: Três.
“Cabelo de rodamoinho é coisa de criança atentada”, dizia à Rita a Velha Avó da Ilha do Aluvião.
Três rodamoinhos: nuca, franjinha, plexo solar, e cucuruto. Afirmou Rita a já intuir o que viria, mas jamais o furto de um contrato post-mortem.
— 3/4.
Nestas breves linhas iniciais, algumas imagens chamam a nossa atenção: ilha, rios, rodamoinho, bombas, cérebro, Tempo-moinho. A palavra ilha, por exemplo, remete às ideias de isolamento e incomunicabilidade; rio nos faz pensar no fluir das águas, do tempo e da própria sucessão de eventos da jornada humana, que nos tornam tão iguais e dessemelhantes; rodamoinho é essa violenta manifestação da natureza que derruba tudo à sua volta, fazendo ruir a estabilidade e a permanência das coisas; bombas é uma metonímia do contexto político e bélico da contemporaneidade, uma das subcamadas de leitura de Caveira na mala; cérebro remete à racionalidade oculta no aparente caos desse texto transtornado e transformável; e Tempo-moinho indica tanto a nossa triste era dilacerada quanto à própria articulação e desarticulação semântica da obra. Estes termos são algumas das pistas ou palavras-chave para empreendermos a viagem proposta por Isadora e Thienne em Caveira na mala, obra excêntrica que se destaca na literatura brasileira atual por sua imensa inventividade, que se supera e se sobrepõe, com coragem, ao império da mediocridade vigente em nossas letras. O resto, leitor, é sua descoberta. Evoé, Isadora, evoé, Thienne! Que os deuses da imprevisibilidade e da audácia estejam sempre com vocês!
São Paulo, primavera de 2024
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* Claudio Daniel é poeta, romancista, crítico literário e professor de literatura. Nasceu em 1962, na cidade de São Paulo (SP). Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP). Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo e colunista da revista CULT. Foi editor, por vinte anos, da revista eletrônica Zunái. Atualmente, Claudio Daniel é editor da revista impressa GROU Cultura e Arte e ministra aulas on-line de criação literária no Laboratório de Criação Poética. Publicou diversos livros de poesia, ensaio e ficção, entre eles Cadernos bestiais: breviário da tragédia brasileira, Portão 7, Marabô Obatalá, Sete olhos & outros poemas e Dialeto açafrão (sob a lua de Gaza), todos de poesia, o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo e os romances Mojubá e A casa das encantadas.
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