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O mapeamento poético da condição humana em “Aquedutos”, de Flavio Caamaña

Por Daúde Amade*


“A linguagem é a casa do ser. Em sua habitação mora o Homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é consumar a manifestação do ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem.” (Martin Heidegger)


1. Este ensaio é um exercício de leitura do livro do poeta cearense/brasileiro, Flavio Caamaña[1], a fim de dilucidar alguns aspectos inerentes à experimentação do fenómeno da condição humana em seu evento criativo. A matéria gravítica desta leitura é o “Aquedutos”, seu livro de estreia, publicado em 2016 pela editora Patuá. O livro tem 116 páginas, que são repartidas em três cadernos: i) um ninho de areia movediça; ii) o diabo nos quer vivos; e iii) orifícios desarrumados. Os três cadernos perfazem a unidade orgânica de “Aquedutos” que, por imanência das imagens que se depreendem dos mesmos, encontram-se liames que os unem, como que num ofício do tecelão, para exprimir as fenoménicas percepções do eu-poeta em temáticas como: as dúvidas e certezas existenciais; o autêntico modo de existir de um ser finito; a dor como sagrada matéria humana; a lucidez que, insuportável aos pés trémulos, se torna embriaguez ante o chão movediço; estilhaçamento das lógicas fundantes da vida; e desvelamento das feridas putrefactas aos olhos de um leitor do Zeitgeist e do seu tempo interior, em particular.


O vocábulo Aqueduto, que é porta de acesso aos bastidores da poética de Flavio Caamaña, tem suas raízes clássicas. Remonta do latim Aqua, água, e Ductus, condução, conduzir ou guiar. Na arquitectura urbana latina os aquedutos eram engenhosos canais de transporte de água potável proveniente dos rios, de especial importância para as necessidades mais básicas de sobrevivência e higiene públicas. Aqui neste livro, o termo aqueduto surge-nos com a imagética representação do conceito de mundano (no sentido de inserido no mundo), cujo sujeito poético, em lugar de ser humano, experimenta o facto de estar-no-mundo através de seus alicerces – a dor, as angústias, as necessidades, as poucas alegrias, a procura de nós próprios, indagações sem respostas – como o próprio mais alto panfleto da condução humana a ser erguido enquanto a morte não se levantar de seu lugar etéreo. Tal como as águas que passam em aquedutos, a vida também segue discorrendo entre os canais da existência e é essa ideia que se depreende do título “Aquedutos”, como uma metaforização da condição vital da humanidade que, presa nesse tubo de ensaio, assiste a cada dia o passar das suas águas, como que a invocar Tales de Mileto para re-significar que a água é o princípio e o fim de todas as coisas, pois nela despontam e nela sucumbem todas elas, e assim é também o ser humano.


2. O exercício de cartografar a condição humana em “Aquedutos” exige, como questão de partida, a seguinte: o que é isto, a condição humana? A condição humana é a forma autêntica, a encenação pura dos Homens nos espaços de mundanidade em que estão inseridos. É o modo como os Homens enquanto seres de questionamento e insatisfação mais do que de contentamento e sossego, pois a natureza não os dotou de tais dons, transformam o mundo, dando-lhe um sentido capaz de, através dele, configurarem a sua existência inessencial. E isso só é possível porque, diferente do gato ou cão que é determinado de forma metafísica a sua forma de ser enquanto entidade – tem essência –, o Homem não é, ele precisa fazer-se Homem a cada dia, questionando, duvidando, problematizando, o que lhe leva, portanto, a transformar o seu meio e a si próprio, escrevendo, então, a sua mundanidade. Hannah Arendt (1906-1975) dedicou-se ao estudo dessa condição existencial peculiar em seu livro A Condição Humana, o qual incidiu na reconstrução analítica da fenomenologia dos actos humanos fundamentais nos contextos da vita ativa. A vita ativa é o fundamento da condição humana, pois explicita “avida humana na medida em que [o Homem] se empenha ativamente em fazer algo”[2]. Porque ele trabalha, fabrica e age perante o mundo, só dessa forma pode sobreviver ao abandono que se encontra nele perante o cosmos. É, assim, um passatempo. Porque o fazer algo humano não é um fazer desprovido de consciência e substância, é ele que atribui valor a tudo que o Homem toca e assim o preenche interiormente. Daí que não podemos fugir do pensar, do trabalhar e de transformar o mundo.


A condição humana, em Arendt, implica o reconhecimento de que para o Homem humanizar-se e continuar em vida, após o nascimento, precisa de se dar conta da vida e da forma como ela ocorre. A própria vida, o nascimento e a morte, a mundanidade, a natureza gregária e o planeta terra, lugares próprios de produção da condição humana, são as condições sine qua non para que o humano possa aparecer, ser e estar, representar a sua vida no mundo e por fim, como é parte de sua natureza, morrer[3].O humano só pode ser visto neste quadro aberto de possibilidades de dever criar seu próprio mundo como condição de sobrevivência porque é por natureza um ser errante, frágil, incerto e dramático, que procura pelo sentido de estar perdido na imensidão do cosmo naturalmente. Mas como podemos ver essa perdição a que o Homem está jogado nela? Qual a característica da condição humana? À luz da poética de Flavio Caamaña, a condição humana fala através da linguagem da dúvida e da incerteza humanas, é lida através de certas tonalidades inquisitivas voltadas ao próprio fenómeno existencial. Vejamos, por exemplo, nos versos a seguir do poema Lixeiras:


é preciso desconfiar dos dias fáceis

das armadilhas feitas para acaçapar pequenas aves[4]


A condição humana, como é descrita nos versos acima, coloca o Homem como um animal ferido, cujas certezas de sua cura estão na possibilidade de reflectir acerca de si e de tudo que há em seu entorno. O eu-poeta fala-nos de desconfiar dos dias fáceis. Só pode desconfiar dos dias fáceis aquele que sabe que seus dias não foram feitos para serem fáceis, mas para tentar fazê-los, ante facilidades e dificuldades, fáceis. O Homem é um ser minúsculo para a imensidão do cosmo, é a pequena ave perante as armadilhas que o querem acaçapar, encolher, por isso que precisa da dúvida, da incerteza e do questionamento como meios de desvelar a sua própria condição humana e criar referenciais de objectividade, uma espécie de mapas de orientação.


3. Com que linguagem nos fala da condição humana a poética de “Aquedutos”? Mas, antes, o que é falar? O exercício de falar ocorre mediante a recolha de referenciais e conceituação do mundo, é também actividade da alma humana de expressão e comunicação por meio de sons.E estamos concordes que o poema fala com uma linguagem. Mas com que linguagem o poema nos fala? O poema fala-nos com a linguagem humana. Tudo o que há no poema não é senão uma abertura dos bastidores do sub, do in e do consciente humano. Em “Aquedutos” dizer que o poema fala, que tem seu tom de linguagem resulta, na analítica existencial heideggeriana, na acepção do poema como um produto humano, já que nenhuma outra espécie há com este dom senão esta. E ele, o poema, aqui em “Aquedutos”,“...é a linguagem que propicia e concede o homem. Assim pensado, o homem seria uma promessa da linguagem”[5].


Como que a explicitar essa leitura heideggeriana, em “Aquedutos” o humano só é possível de ser pensado enquanto produto da linguagem que, na poesia, desprovida de todos os valores de se querer detentora da verdade, a última verdade, abre-se ao acolhimento das mais possíveis perspectivas de leitura do mundo. A linguagem da poesia é uma linguagem fluída, líquida, sem pretensão ulterior, essa é a sua metafísica, por isso assume de antemão que pode falhar nas suas projecções. Diria Bernardo Soares, entidade pessoana, no Livro do Desassossego, que “…na arte não há desilusão, porque a ilusão foi admitida desde o princípio”[6]. Assim, não se querendo guiar pelas postulações a prior, quais incandesceriam o ilusório, o poema afigura-se como um dizer autêntico por isso, pela simples abertura à debilidade humana quanto ao verdadeiro que habita no poema. No encalço da fala da linguagem, tomaremos o que consideramos originalmente um poema, que mais do que outros, em “Aquedutos”, nos pode auxiliar a dar os primeiros passos no ensaio do condicionante dessa condição humana. Oiçamos o que nos diz. O poema intitula-se:


Página

a cada dois passos que dou

um passo vai para frente

o outro vai para trás


se olho pela brecha da porta

um olho arde de sol e sertão

o outro congela no paraíso


se penso nos grãos vencidos

é maior a fome da lombriga

afogada no suco de uvas


a cada dois dias vividos

um dia é para ser esquecido

o outro será sempre lembrado


a cada página que reivindico

uma deverá ser rasgada

a outra corrigida[7]


O poema tem cinco estrofes. Com sua métrica e musicalidade próprias. É simples a determinação de suas figuras. O seu conteúdo é perceptível. Não é hermético do ponto de vista das palavras empregadas, nenhuma é desconhecida. No seu todo, os versos chamam à reflexão, muito em particular os da quarta e quinta estrofes, que nos soam a aforismos:


a cada dois dias vividos

um dia é para ser esquecido

o outro será sempre lembrado


a cada página que reivindico

uma deverá ser rasgada

a outra corrigida


Porém as estrofes acima apresentadas também assinalam o belo singular das imagens que se pretende despertar: o valor das máximas. Esse belo eleva o encanto do poema e sedimenta a totalidade estética de sua artisticidade.


O poema descreve a condição humana autêntica ou o modo próprio de existir. Esse ek-sistir, à luz de sua raiz etimológica, é dado a partir de um projectar-se para fora do que se é, dar um passo à frente. Portanto, é de maneira reflexiva aparecer, estar na existência[8]. Nesse modo, apenas o ser humano existe. E isto põe-se aberto aqui. A primeira estrofe traz ao de cima a noção do eu-poeta de como a vida acontece: a cada dois passos que dá. O que se passa acontece aos Homens. A cada dois passos que damos, um é movimento progressivo e o outro é regressivo, depreende-se. Não será isso reflexo de nosso modo autêntico de existir? Quem insuflaria o peito, certo de que a sua vida é só feita de passos progressivos?


Na segunda e terceira estrofes surge uma visão contumaz à descrição da condição humana pós-moderna, onde as diferenças agudizaram-se e o capitalismo deixa tudo mais acentuado. Enquanto de um lado contempla-se o sol e o sertão expostos na precariedade do existir, onde a penúria de uns e o egoísmo de outros fazem os dias, outro olhar é de esperança, onde a imagética do paraíso na segunda estrofe e da saciedade na terceira estrofe perfazem o núcleo de fé. Mas essas oposições que o poema desvela quiçá nos conduzam à fala da linguagem. Isso não se diz abertamente. O poema fala com debilidade, ao invés de assumir-se última verdade, pretende que a página onde se lhe escreveu, que reivindica, seja rasgada e a outra seja corrigida.


“Página”. Esse é o título do poema. Pretende-se, a partir do título, que o poema tenha que ver, somente, com a descrição de uma página tal como ela é. No entanto, o poema não diz, nos versos iniciais, alguma coisa que nos conduza à página. Ele não retracta uma página que tenha alguma vez existido. Pois é óbvio, alguém pensaria. O poema é feito de imagens. O poema é um enlaçamento de imagens ainda que nos pareça estar a descrever alguma coisa. É o que chamamos de metáfora. Ao poetizar, o criador imagina algo contingente. Por isso que, ao poetizar, como diria Heidegger “o poema representa numa imagem o que imaginou”[9]. É a imaginação criativa que se exprime no universo de que fala o poema. O que o poema nos parece falar é, destarte, o que o eu-poeta exprime como um locus em si próprio. O que desse modo se expressa é assim como enuncia o seu interior. A linguagem do poema propaga-se como um feixe, em muitas direcções de enunciação.


A linguagem com que o poema se faz até nós é a da expressão, a sua peculiar expressão. Mas o poema não é somente desta que se faz, ele também evoca e convoca os objectos do mundo ao seu universo. Evocar implica estimular e clamar, estimular o válido e clamar pelo inválido. Os dois passos dados, o olho que se vai à brecha da porta vozeiam aqui e agora no locus do poema. Existem numa evocação. Eles não são, no sentido de se presentificarem, porém, como o que está aqui e agora no meu quarto, espaço em que escrevo. Mas a evocação aqui anunciada convida as coisas de maneira que estas possam tomar espaço no poema, como coisas, a abranger aos Homens. Os dois passos dados arrastam os Homens para a quotidianidade[10], na qual o eu-poeta não se identifica. O olho que se vai à brecha da porta traz o lado claro e obscuro da condição humana, poucas certezas e excesso de dúvidas, a iluminação de fora e a escuridão da caverna. As coisas aqui designadas, ou seja, evocadas, guardam junto de si a condição humana. Os dois perfazem o binómio originário de existir em relação ao outro. O nosso modo autêntico de ser assume a estrutura desse binómio nele existir. Esse assumir o modo binomial da condição humana é que faz com que a existência seja. Existir é nome que conjugamos a partir do binómio certezas e dúvidas, que permanece com unidade no fazer-se coisa das coisas. É dessa forma que a linguagem do poema é a linguagem que mapeia a condição humana. Pois o ser humano confere essência as coisas. As coisas são enquanto dúvidas e certezas de desvelamento humano do mundo ou do mundo humano.


4. A poesia tem-se representado a partir de dois limites para a sua inclinação de comunicação da condição humana: o do silêncio e o da fala. Ambos encontram-se presentes em “Aquedutos”, mas conforme um modo de compartilhamento em que a fala toma primazia e abandona a tonalidade musical dos versos para uma categoria do chamejar adicional. A presença do efeito de fala, que se sobressalta nesta poesia, não pode ser compreensível senão fora das circunstâncias temporais em que o abarrotamento de palavras cheias de vazio ou cacofonias é a regra: abundância da volição de dizer nos tempos mais psicológicos da poesia da «quotidianidade»[11]; abundância de guias espirituais com modalidades de configuração dormente da condição humana no período de maior hegemonia do abandono da humanidade do Homem.


E eis que surge a real fala. É o surgimento de uma necessidade existencial. Isso reconhecemos facilmente: porque estamos perante uma fala invertida, i.e., algo que se debate consigo mesmo. Há que pôr em pedestais diferentes a fala de uma poesia que a si própria se corrige, se aniquila, se suprime, no sentido de uma frieza incurável (um pouco ao modo do «Autoconhecimento» de um Kahlil Gibran, em que a postura altamente lírica se forja numa minúcia descritiva da existência), e uma outra fala, que se afasta do labor poético de um Flavio Caamaña, em que há sempre uma postura de um niilismo combativo e incurável, e em que se tece na decisão humana da condição poética:


e se restar palavra

uma única palavra

que seja pólvora

numa mata seca[12]


E não é a poesia que atinge a finitude para dar espaço a um falar mutado, à escassez da verdadeira palavra, à ironia gasta, ao desfile infindo, à alienação humana, mas clama, questiona-se enquanto não se mediocriza pelo silêncio inautêntico, estéril às engrenagens da poesia que, aqui, precisa da palavra.


Digamos, portanto, que neste primeiro caso, o da fala, a poesia tem por indicação a activação de toda uma semiótica e alegorias poéticas da condição humana: a indagação do mundo à nossa volta e a palavra como acessório. E no segundo caso não nos referimos à activação, mas de sinalização de uma diferença (o que em “Aquedutos” se mostra muitas vezes mediante a exaltação do questionamento das bases metafísicas e sem as marcas de realocação de uma outra verdade ao seu lugar, deixando o silêncio pairar e sem dizer, por exemplo, o que virá mais além: se o poeta não é roupa fina[13], se não se destina ao silêncio pois é inadiável[14], se a porta não mais abrir e nem fechar[15]).


O que se pode depreender desta transição da palavra que realmente fala, mas com bravata, como vimos acima, à uma outra que instaura, através do questionamento aberto, o silêncio? Que o que o poema ergue não é propriamente um lugar de fala, mas um espaço que, não oco, porque a palavra o preenche, serve de intervalo, transitório, para um falar no poema que se dá mediante o silêncio da reflexão que lhe precede. Podemos inferir que o elementar no binómio silêncio/fala não é nenhum dos conceitos em si mesmo, mas a amarra que os distancia, tanto mais conflituoso o cruzamento entre eles – a fala e o silêncio –, mais sublime, mais tangente é à miséria do Homem.


De certa maneira, é isto que em “Aquedutos” se desvela num de seus poemas mais misteriosamente claros:


Alguns homens morrem de gripe

alguns homens morrem de gripe

de fastio de excesso de leveza

ou por beberem num copo o sobejo

da premiada desesperança beata já eleita

para ser a única santa do próximo vagão


alguns morrem porque devem morrer

de cansaço de enterrar o sonho no terreiro

ao descer a escada num desvelo

acordar de manhã e após o café

simplesmente dizer: é hoje


alguns morrem e falta algo a dizer

um verso uma letra um bocejo

destrancar a porta da gaveta

permitir que os papéis caiam

dos parapeitos sem apelos


e falta dizer algo sobre morrer

mas só o pode quem morreu

só aos mortos pertence o segredo

só aos mortos compete acordar

enquanto os vivos dormem[16]


Gostaria de ressaltar a ideia de que esta poesia, acima de ser um canto à palavra que reconhece a existência da morte como condição limite e ditadora da finitude humana e tentou dizê-la, é uma reflexão sobre a nossa ignorância ou o limite da inteligência humana sobre a morte, o que eticamente impele o eu-lírico a erguer o silêncio quando assume que embora tenha dito alguma coisa acerca de morrer ainda falta alguma coisa incapaz de dizê-la na condição de vivente, cabendo aos que já se consumaram em mortos dizer este segredo. A última estrofe do poema é como se invocasse as máximas cortantes do filósofo austríaco, Wittgenstein, ao colocar marcos divisórios acerca do que deve ser dito e ou não, considerando que, porque “Os limites da minha linguagem significa os limites do meu mundo”[17], e este é circunscrito às mundivisões nas quais estou inserido, culmina, então, com a sentença: “Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio[18]”. Esta é outra face da lucidez do silêncio que sobrevoa os versos do poeta.


Se a poesia de Flavio Caamaña se faz com reservas com relação aos exageros das palavras em meio à verborreia que ele mesmo faz levantar a cada poema, não é porque haja algum impasse ou fraqueza da poesia, ou a sua tarefa supostamente alienatória, mas pelo seu desajuste em relação ao modo essencial que cada um dos poemas invoca as utopias, como por exemplo: tapar o sol com a ponta dos dedos, sim, não as coisas, na sua serenidade, mas o momento em que cada coisa se possibilita no universo linguístico, porque é o tal momento em que cada coisa se abre ao acolhimento de ser outra coisa, o silêncio.


Há um estupendo poema em que tudo isto que se clareia com alguma permanência. Sob o título Nil est dictu facilius (nada é mais fácil que falar), e, até certo ponto, é um experimento para distanciar o saber do conhecimento, ou, caso se diga, entre a filosofia e a poesia, em que a primeira tende a falar e a outra tende ao silêncio:


eu planejo a eternidade não planejo o dia

arquitecto nos subsolos teorias melódicas

arranco páginas ardendo com chupadas

repente repetível traindo-me pela rima

eu arquivo tudo que não posso suturar[19]


Talvez o verso medular do poema seja este: «eu arquivo tudo que não posso suturar». Porque o verbo poder aparece num status em que lhe antecede o advérbio denegação, como que a acentuar a debilidade gnosiológica do eu-poeta: não posso. Mas a alusão é também acolhida na fraqueza dos actos: «suturar». Quem sutura, no sentido de coser uma peça de roupa ou, ainda, quem liga/ conecta, no tom que nos fala o poema, é quem se reconhece incapaz de, com todos os artefactos de sua engenhosidade prosseguir numa criação eterna, aos moldes de quem planeia a eternidade e não o dia. Quem sutura só pode estar a planear para o dia. Pois se é capaz de planear a eternidade, de forma a prior anteveria os erros de sua criação e não precisaria suturar. É por isso que este suturar instaura-se na transição antitética do eu planejo a eternidade, que é o alvorecer de um falar sumptuoso (daquele que primeiramente tratamos nas inclinações da fala do poema, repleto de surreais desejos, em que se sustenta a arquitectura de suas teorias para além do que é a condição humana). Há aqui uma confidência, que é a confidência de arquivar, na medida que é também a confidência da poesia (silenciar sabiamente, indagar, declarar ignorância não culpável, de reconhecer os limites do inefável). E a poesia materializa-se partindo do efeito entre as vãs divagações do poeta e a tese do silêncio: num desnudar os liames e contornos em que a extensão do poema é afinal um silenciamento que se dissimula em indagar a condição humana.

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*Nasceu em Maputo (Moçambique), é professor, escritor, poeta e ensaísta. Formou-se em Ensino de Filosofia e História pela Universidade Pedagógica. Estudou Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos publicados dentro e fora de Moçambique. Contacto: daudeamade@gmail.com


[1] Flavio Caamaña é um trabalhador braçal nascido em Tamboril, desertão do Ceará. Vivenciou o auge da ditadura, a infâmia e a injustiça. No início dos anos noventa participou como voluntário em campanhas de apoio às vítimas da Aids. Primeiro lugar no XVI Prêmio Literário Ideal Clube De Literatura, participou das colectâneas Revista Gueto (Edit. PATUÁ), Revista Intempestiva número 01, Antologia Golpe (Edit. NOSOTROS) e revistas literárias virtuais. É autor do livro de poemas “Aquedutos” (PATUÁ, 2016). [2]ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo; Revisão e apresentação de Adriano Correia; 11ª ed. rev., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 26. [3]Ibidem, p. 19. [4] CAAMAÑA, Flavio. Aquedutos. São Paulo: Patuá, 2016, p. 35. [5] HEIDEGGER, Martin. A Caminho da Linguagem. Trad. Marcia Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p. 10. [6] PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego / por Vicente Guedes e Bernardo Soares, edição de Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Relógio d’Água, 2008, p. 370. [7] CAAMAÑA, Flavio. Aquedutos. São Paulo: Patuá, 2016, p. 96. [8] INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Trad. Luísa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2002, p. 58. [9] HEIDEGGER, M. A Caminho da Linguagem. Trad. Marcia Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p. 14. [10] Viver na quotidianidade é lançar-se a um modo de viver impróprio, ou inautêntico (Uneigentlich). É o modo que caracteriza o Homem que não indaga o seu ser, ocupando-se de qualquer coisa que o faça não se colocar em questão. [11] A vida levada sob a sombra da quotidianidade ocorre no instante do presente, onde passado e futuro encontram-se esboroados. O ser humano que se devia questionar, tanto em passado e também em futuro de sua existência, abdica de sua condição angustiante de ser um sujeito jogado no mundo, que precisa trilhar e dar sentido aos seus caminhos, através de decisões reflectidas, a favor de uma quotidianidade simples de existir, “alegre”, ocupando-se por se divertir e desproblematizando-se a si e o seu contexto de mundanidade. [12] CAAMAÑA, Flavio. Aquedutos. São Paulo: Patuá, 2016, p. 39. [13] Ibidem, p. 50. [14] Ibidem, p. 69. [15] Ibidem, p.84. [16] Ibidem, p.106. [17] WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico * Investigações Filosófico. Trad. e Prefácio de M. S. Lourenço. 6ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 114, § 5.6. [18] Ibidem, p. 142,§ 6.54. [19] CAAMAÑA, Flavio. Aquedutos. São Paulo: Patuá, 2016, p. 71.

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