Por Ricardo Corona
Nuvens de bolso reúne parte de poemas escritos desde os anos 1980. Nesse tempo todo, houve muitas pausas nessa produção, pelo fato de que nunca me impusera escrever o haiku por entender que se trata de um encontro poético que nasce de fora para dentro. Por isso, com o tempo, preparei-me para estar aberto e atento à sua chegada. Descobrir isso foi um longo caminho que ainda estou percorrendo.
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Das leituras orientais, Matsuô Bashô (1644-1694) é a principal referência, estando em Nuvens de bolso desde o título, que, discretamente, homenageia o poeta japonês, fazendo referência ao seu livro póstumo Oi no Kobumi (Caderno de mochila), o qual, inicia-se com o haiku:
primeiro aguaceiro de inverno –
hoje
chamem-me viajante
O que me motivou a abrir Nuvens de bolso com:
primeiro frio
roupas antigas
cheiro de naftalina
Quando escrevi esse haiku não conhecia o livro de Bashô (que em vida publicou apenas um título) e, ao conhecê-lo, gostei tanto da coincidência de kigo (é o primeiro verso, representando as estações do ano, no caso, em ambos, o “inverno”) e da palavra “primeiro” que também aparece nos poemas (e em ambos no primeiro verso), que me pareceu uma grata surpresa.
Incorporar os avanços desenvolvidos por Bashô não é uma questão puramente de escolha. É impossível ignorá-los. O poeta japonês fez uma revolução nessa forma poética, mas não sem antes passar pelas escolas tradicionais de sua época – a Teimon e a Danrin –, fundadas na primeira metade do século XVII. No entanto, para Bashô, o haiku deveria evitar maneirismos e também as contagens rígidas, puramente formais, e sim buscar a beleza simples das coisas que, segundo ele, eram decisivas para inserir essa forma poética mínima como uma percepção espiritual do mundo. Por isso, não demorou para criar a sua própria escola em 1680: a Shômon. Há vários haikus que exprimem ousadia e inovação do poeta japonês em seu tempo, dentre os quais destacarei um que é menos estudado entre nós, mas que é especialmente emblemático, dada a ironia com que Bashô tratou a rigidez da forma fixa, um assunto que, aliás, repercutiu em nossa época:
a chuva de verão
faz as pernas do grou
ficarem mais curtas
No original, esse haiku conta com 5|5|7 sílabas, ou seja, duas a menos do que a regra, uma subversão bem-humorada em relação à contagem clássica de 5|7|5, pois, somente com a contagem crescente, permitindo que as sete sílabas pulassem do segundo para o terceiro verso, é que Bashô consegue a imagem perfeita da água subindo pelas pernas do grou e “diminuindo” o seu tamanho.
Entre nós, considerando as diferenças abissais entre as línguas portuguesa e japonesa, a ironia do poeta japonês nos diz mais respeito ainda quando o assunto é indexar a métrica tradicional de origem japonesa à escrita do haiku em português. Muitos pesquisadores, tradutores e poetas já consagraram a impossibilidade de trazer rigidamente a contagem métrica tradicional para a língua portuguesa sem que aquela prejudique o “espírito” do haiku, aquela beleza simples, defendida por Bashô. A alternativa foi e é o abrasileiramento. Paulo Leminski foi o maior entusiasta dessa transformação. Assim, escrevi:
botão de ouro persa
flor de rara beleza
com mais de 17 pétalas
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Dividi Nuvens de bolso em três partes: haikus, haikais e haikoans e quase mondos.
Os haikus são composições que fiz a partir de vivências e acontecimentos cotidianos e somam a maior parte de Nuvens de bolso.
Os haikais são uma pequena mostra de escritos feitos a partir de outros haikus e necessitam de uma breve contextualização: chamei-os de haikais para trazer para o livro a ideia de reescrita, e, sobretudo, brasileiramente, propor o jogo da escrita coletiva, movimento que está inserido no haikai no renga. Na tradição japonesa, o renga é composta de versos encadeados a partir do hokku, versos que podem somar de 36 a 100 estrofes. Mas não se tratava de encadear versos a partir de uma temática que supostamente o hokku sugeriria. Mais do que um tema, no renga havia um fazer coletivo, contínuo, de versos que prezavam pelo fluxo e alternância de ideias e imagens. O hokku é o início do haikai no renga, sendo a composição primeira, elaborada com antecedência, feita pelos mestres ou sob sua orientação. Com o tempo, o hokku foi se tornando independente do haikai no renga, sendo daí a origem do haiku. O haiku é quando a forma se individualizou e se descolou do haikai no renga. Essa é, basicamente, a diferença entre haiku e haikai. No Brasil se difundiu o haikai como sendo a forma independente. Em outros países isso não aconteceu. Nos EUA, por exemplo, sempre foi chamado de “haiku”. Mas o fato de ter sido difundido como “haikai” no Brasil deve ser entendido como mais um abrasileiramento do poema japonês. Os haikais inseridos aqui buscam esse contexto, mas apresentam de maneira nova esse encontro das culturas. Eles foram escritos a partir de leituras de haikus de autores que considero mestres, que me estimulam a escrever, a dialogar, e, assim, tratei-os como se fossem “hokkus”, afirmando essa característica antropofágica. Os haikais dessa seção também podem ser lidos apenas como releituras, apesar de a minha intenção maior ser que eles contenham a ideia de renga abrasileirado, pela extensão de assuntos, pois são diálogos, versões e aproximações de conteúdos... Na prática do renga o que menos importa é a autoridade individualizada da autoria, valendo mais a criação coletiva, o jogo. Eis um exemplo:
o sol de inverno congelou
a sombra do monge
sobre o cavalo
O haikai acima é de autoria de Bashô, que o escreveu em suas viagens de andarilho. É que Bashô se disfarçava de monge para se proteger de ladrões. Entre nós, esse dado biográfico fez com que muitos poetas, desavisadamente, o considerassem um monge. Assim, fiz o haikai abaixo cuja ironia aparece no terceiro verso:
a sombra do monge
sobre o cavalo
truque que foi longe
Na terceira parte, chamei “Haikoans e quase mondos”, reunindo poemas que me foram sugeridos por diferentes leituras sobre o zen, especialmente de koans. Sou um leitor voraz de koans, buscando praticá-los a meu modo, rememorando-os ocasionalmente, em momentos especiais ou envolvidos em acontecimentos que me sugerem a escrita ou durante oficinas que ministro, lançando mão deles como estratégia de ensinamento ou prática. Aqui, sobretudo, são poemas sobre o zen e o “mondo” – no budismo zen, “mondo” é um diálogo entre mestre e discípulo, que se destina a transformar o pensamento em intuição direta da natureza da mente.
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As três seções são uma tentativa afetuosa de trazer aspectos da poética japonesa para a língua e cultura brasileiras. Finalmente, deixo a leveza de uma imagem que possa sugerir essa antropofagia, que é sutil. A imagem é a da nuvem, ou melhor: o memai da passagem da nuvem. “Memai” significa “vertigem”. A nuvem, quando lá está, já é outra, e, ao mesmo tempo, supostamente igual em sua diferença. De qual território é a nuvem? A nuvem, antes, habita um lugar de passagem, é nômade. Conforme propôs Mario de Andrade: “Oriente é tudo que passa e se diferencia da civilização que ora corresponde ao momento”.
Ricardo Corona
Recreio da Serra, outono de 2023.
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