Por André Dick
não há pressa: mallarmé deixou
meiadúzia de coisas
Paulo Leminski
1
Logo depois de publicar Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase, Paulo Leminski lançou Polonaises. Em sua primeira edição, de 1980, os poemas que se encontram visualmente bastante diminuídos ao tamanho formal em edições posteriores de sua obra completa ganham uma dimensão especial, ocupando o espaço de toda a página. Trata-se de uma criação visual vigorosa dialogando certamente com os ganhos da poesia concreta, uma das influências centrais do escritor. Conforme lembra Toninho Vaz, a capa foi desenhada por Retamozo “a partir de um manuscrito original de Leminski em polonês, borrifado com gotas de sangue (em vermelho) como um elemento dramático” (VAZ, 2001, p. 225)
No entanto, Polonaises, dedicado a Boris Schnaiderman em sua versão original, traz um elemento a mais, para além dessa apresentação original: é o livro de Leminski que mais indica sua ligação com a origem de sua família na Polônia.
Na biografia de Leminski, Toninho Vaz detalha:
Paulo Leminski, o pai do poeta, era filho de poloneses de uma remota província de nome Narájow [...]. A família, composta pelo pai Pedro, a mãe Catharina e o irmão Miguel, veio para o Brasil no fluxo da grande migração de 1895, quando grupos da Polônia e da Ucrânia deixaram a Galícia (tudo, então, Império Austro-húngaro) – e as razões pelas quais estes êxodos aconteceram são históricas: perseguições políticas e raciais, um surto de cólera que atingiu a Ucrânia e, ainda, o sempre cultivado sonho de um mundo “novo e produtivo”. Historicamente, sabe-se que os três fatores agiram simultaneamente quando os Leminski decidiram encarar a aventura de cruzar o Atlântico a bordo de um navio. Para quem não tinha nada a perder, era pegar ou lagar. Os Leminski resolveram pegar (VAZ, 2001, p. 20)
Leminski escreveria depois um poema intitulado justamente “Narájow”, incluído em Distraídos venceremos (1987):
Uma mosca pouse no mapa
e me pouse em Narájow,
a aldeia donde veio
o pai do meu pai,
o que veio fazer a América,
o que vai fazer o contrário,
a Polônia na memória,
o Atlântico na frente,
o Vístula na veia.
A relação com este poema é muito bem contada por Estrela Leminski (2024) e é muito bonito ver como o sentimento de ter a Polônia como lugar de origem familiar (1) – e sendo este o poeta que seria conhecido como “polaco” – se estende desde a epígrafe de Polonaises, com versos do poeta polonês Adam Mickiewicz, em tradução do próprio Leminski (2):
Choveram-me lágrimas limpas, ininterruptas,
Na minha infância campestre, celeste,
Na mocidade de alturas e loucuras,
Na minha idade adulta, idade de desdita;
Choveram-me lágrimas limpas, ininterruptas… (1979)
Com diz Aurea Leminski, sobre essa aproximação do pai com a cultura polonesa:
Ele tinha muito orgulho de ser descendente de poloneses por parte de pai e fazia questão de dizer que era um “polaco”. Em Curitiba se criou uma diferenciação para se referir os imigrantes: “polaco” para denominar quem era de origem humilde, quem tinha imigrado pra trabalhar no campo, por exemplo, e “polonês” era para aqueles de uma classe “superior”. Como se polaco fosse uma forma pejorativa. Esta foi uma polêmica na cidade que aos poucos fez muita gente se posicionar. Meu pai foi um dos primeiros a defender o termo “polaco” e rechaçava o termo “polonês”. Não aceitava as castas que se criaram dentro da comunidade polonesa.
Ainda faz muitos anos, quando não se falava sobre o orgulho polaco, meu pai já levantava a bandeira, dizendo “sou polaco” ou “negro mestiço”. Ele era descendente de negro, índio e português por parte de mãe. A Polônia estava sempre presente no discurso dele, está em muitos poemas e ensaios. O avô chegou ao Brasil em 1895 com a primeira esposa, que morreu logo depois e então ele casou novamente com uma imigrante polonesa que conheceu no Brasil. Casaram-se e tiveram nove filhos. Um deles foi o pai de Paulo Leminski. Temos até hoje alguns cadernos e livros com os quais o pai de Paulo estava tentando estudar polonês, mas infelizmente a língua não foi passada do pai ao filho. Uma situação comum entre os imigrantes poloneses. A língua se perdeu.
Então, Aurea acrescenta uma observação exatamente sobre o poeta citado na epígrafe de Polonaises:
O avô dele trouxe da Polônia o livro de Adam Mickiewicz, que chegou, como herança, nas mãos do meu pai e despertou interesse imediato pelo poeta polonês e pela questão polonesa. Ele fez questão de aprender, pelo menos o suficiente, para poder traduzir poemas dele. Tem também aqui dois dicionários de português – polonês, que ele com certeza tinha comprado num sebo (LEMINSKI, 2016).
Leminski já anuncia, nessa epígrafe lágrimas do sujeito que ao longo do livro se transformam principalmente em “chuva”, ele que, como Aurea diz na entrevista, aceitava ser chamado de “polaco” – é assim que Haroldo o chama num belo poema de Crisantempo, “polaco polilingue” (CAMPOS, 1998, p. 110), o mesmo “polaco” que irrompe ao final do romance experimental pluripolifônico Catatau. E indispensável lembrar que Piotr Kilanowski e Konrad Szczesniak fizeram traduções de poemas de Leminski para o polonês em Meu coração de polaco voltou, parte de um projeto com mesmo nome, organizado pela Casa da Cultura Polônia Brasil, com curadoria das filhas Aurea e Estrela Leminski, em homenagem ao pai, em 2015 (MOSER, 2015).
A origem primeira reaparece no seguinte poema, fazendo agora referência ao avô:
meu coração de polaco voltou
coração que meu avô
trouxe de longe pra mim
um coração esmagado
um coração pisoteado
um coração de poeta
Há uma dramaticidade neste poema como parece haver no poema escolhido para a epígrafe: o coração do avô polonês é um “coração esmagado”, um “coração pisoteado” – e nisso se conclui que é um “coração de poeta”, como se passasse para ele essa função de fazer poesia. Raras vezes Leminski retomou essa verve mais dramático escolhida para esta criação. E ele retoma uma sensibilidade familiar aguda.
2
Deve-se lembrar que a polonaise (em francês) é uma dança em três quartos, relativamente lenta, que se originou na Polônia. O músico Frédéric Chopin se notabilizou por uma série de Polonaises escritas em piano solo. É exatamente em tom de dança que Leminski escreve em “dança da chuva”:
senhorita chuva
me concede a honra
desta contradança
e vamos sair
por esses campos
ao som desta chuva
que cai sobre o teclado
O poeta – e sua lágrimas ininterruptas – regressa com a chuva em outro poema:
lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça
Aqui, você vai vendo a origem de Leminski – a Polônia – se misturar com as raízes de sua família brasileira por meio do vocábulo “mestiça”, desta vez em forma de verbo, mas não apenas isso, e sim como aquele que “assiste missa” – remetendo ao seu tempo como monge beneditino –, e recordando que, reunindo tudo, Haroldo o chamava num poema de “samurai mestiço” e “jovem rimbaud fileleno” (CAMPOS, 1998, p. 110).
De modo geral, é como se Leminski, por meio de Polonaises, procurasse suas raízes também na natureza, e depois das lágrimas que se transformam em chuva temos a presença do vento. A chuva e o vento caracterizam lugares gelados, como são a Polônia de origem, como é a Curitiba onde viveu Leminski, exatamente na Cruz do Pilarzinho. Como ele escreve numa carta sem data a Régis Bonvicino:
tudo de vento em popa
nesta cidade simbolista
quieta
[...]
metrópole tímida
terra de bares e longas encucações
fria
com poentes longos como agonia
não brasileira (LEMINSKI, 1992, p. 125).
Deve-se reparar que Leminski sublinha a cidade como “não brasileira”, não no sentido, evidentemente, de não pertencer ao Brasil, mas de ter um clima que remete à Europa, de sua origem polonesa, assim como se trataria de uma “cidade simbolista”, remetendo a tantos poetas que o acompanharam, principalmente Mallarmé e seu Un coup de dés.
O “tudo de vento em popa” cerca Polonaises do início ao fim. Vemos isso em:
um deus também é o vento
só se vê nos seus efeitos
[...]
a este deus
que levanta a poeira dos caminhos
os levando a voar
consagro este suspiro
nele cresça
até virar vendaval
E em
tanta maravilha
maravilharia durar
aqui neste lugar
onde nada dura
onde nada para
para ser ventura
No qual “ventura” na verdade ecoa o “vento”, aquilo que não para e não dura: é transitório.
Também em:
bate o vento eu movo
volta a bater de novo
a me mover eu volto
sempre em volta deste
meu amor ao vento
Em:
moinho de versos
movido a vento
em noites de boemia
vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia
Este é um poema que se transformou praticamente num hit do poeta, uma grande amostra de seu poder de síntese e sua recuperação de certa vida boêmia, underground, que se converte em linguagem. Tudo indica noites geladas, com ventania percorridas por Leminski na “terra de bares e longas encucações”, como se refere em sua carta.
Talvez o único poema do livro original Polonaises que fuja a esse estilo seja “O esplêndido corcel”, que seria excluído em Caprichos & relaxos (1983) e regressaria em La vie en close (1991), mas nele ressurge a imagem do vento inescapável:
o esplêndido corcel
vê a sombra do chicote
e corre, esplendores do cavalo
em labirintos de crina
incentivados pelo vento
Os poemas de Polonaises já antecipam aquela vista formalmente sintética de Leminski, que influenciaria a produção com dicção mais leve de Augusto de Campos a partir de Expoemas e poemas de Haroldo em A educação dos cinco sentidos (“Já fiz de tudo com as palavras / Agora quero fazer de nada”). Podemos selecionar alguns. O primeiro:
dois loucos no bairro
um passa os dias
chutando postes para ver se acendem
o outro as noites
apagando palavras contra um papel branco
todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também
O segundo, em que ele sintetiza a ligação com alguns nomes que o acompanharam na sua trajetória: Caetano Veloso (que viria a gravar seu poema “Verdura”), Glauber Rocha (cineasta de Terra em transe) e Décio Pignatari, uma das referências de Leminski não apenas no campo da literatura, mas também no meio publicitário.
dia
dai-me
a sabedoria de caetano
nunca ler jornais
a loucura de glauber
ter sempre uma cabeça cortada a mais
a fúria de décio
nunca fazer versinhos normais
E esta linda pérola:
aqui
nesta pedra
alguém sentou
olhando o mar
o mar
não parou
pra ser olhado
foi mar
pra tudo quanto é lado
Com essa fusão entre sujeito e natureza (chuva, vento), associados ao mar – o mesmo por onde veio a família de origem da Europa –, são poemas com um tom antecipando certa melancolia que se expandiria em seus livros póstumos, La vie en close e O ex-estranho:
hoje o circo está na cidade
todo mundo me telefonou
hoje eu acho tudo uma preguiça
esses dias de encher linguiça
entre um triunfo e um waterloo
É como se o poeta estivesse numa cidade distante – talvez como Leminski se sentisse quando principalmente à margem, nos anos 70, com ecos de seu extraordinário Catatau. Como ele escreve numa outra carta sua: “além do mais / tem o fator isolamento” (LEMINSKI, 1992, p. 126). Como escreve Leyla Perrone-Moisés (2001, p. 259), em “Leminski, o samurai malandro”, o poeta era “transcultural: polonês, caboclo e ‘japonês’”.
3
Também é de Polonaises um dos poemas mais belos de Leminski, o que possivelmente define os caminhos adotados em sua poesia:
um dia
a gente ia ser Homero
a obra nada menos que uma ilíada
depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um éluard um ginsberg
por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores
Em relação a esse poema, Leyla Perrone-Moisés afirma que “é exatamente aí que ele (Leminski) ganha a parada”. Segundo ela, a “viagem pelos grandes textos, num primeiro tempo, reduz o poeta provinciano a sua “insignificância”; mas, abrindo seu desconfiômetro, permite-lhe safar-se da repetição involuntária ou degradada. […] Ao assumir seu provincianismo, ele deixa de ser provinciano, porque provinciano é justamente aquele que nem desconfia”.
É curioso que Leminski faça uma analogia entre a máscara do poeta e as flores desgastadas pelo tempo. E o mais interessante: as máscaras (que representam os poetas) são como as flores. Ou seja, elas podem se desgastar – se não houver a apropriação e a renovação através da releitura. Para Leminski, o autor é uma criação moderna. Mas, se ele não acreditava na figura do Autor, apoiava a figura do autor, do “poeta de província”, capaz de dispersar sua identidade. Ele talvez pensasse que, ao insistir nessa linguagem sintética, estava revelando ao leitor a sua predisposição em enfrentar aquela tradição na qual gostaria de se inserir: na tradição do poeta com consciência de linguagem, se não levada à mais extrema radicalidade – pois já impossível, a do Un coup de dés (“que coisa pode ser feita que não seja pura perda?”, ele se pergunta em relação ao poema de Mallarmé e ao Finnegans wake, de Joyce) –, pelo menos a que demonstra diálogo com o difícil.
Nesse sentido, Polonaises também é muito importante: ao introduzir a importância da flor no imaginário de Leminski. Depois, as flores podem surgir, também, para mostrar a permanência: “Nem tudo, / sentir fica. / Fica como fica a magnólia, / magnífica” ou o amanhecer: “cada manhã que nasce / me nasce / uma rosa na face”; “pelo / branco / magnólia / / o / azul / manhã / vermelho / olha” – este com um vazio branco separando na vertical as palavras. O confronto, nesse último, entre o branco (da magnólia) e o vermelho (da manhã), intermediados pela neutralidade – triste – do azul (outro signo presente em Mallarmé), revela com clareza o interesse de Leminski pela composição da flor como um elemento que o faz se ausentar da palavra no papel. Ou a ligação entre a flor e o espaço que expande, em “In honore ordinis Sancti Benedicti”: “o canto o incenso o silêncio / e no interior do mais pequeno / abre-se profundo / a flor do espaço mais imenso”. E a revelação da flor como iluminação diária, em “Sintonia para pressa e presságio: “Escrevia no espaço. / Hoje, grafo no tempo, / na pele, na palma, na pétala, / luz do momento”. A pétala da flor é a “luz do momento” – num tempo em que o poeta já tentava, em vão, curar cicatrizes e queimaduras. Mas também é o tempo que só existiu por causa da memória da Polônia intensificada como nunca na obra de Leminski em Polonaises – lembrando que a dança polonesa é muito praticada também no interior do Rio Grande do Sul, Brasil, em eventos como bailes e casamentos, sobretudo em alguns municípios de origem alemã. São, imagens para poemas, novas máscaras para o tempo tratar como a flores.
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* Agradecimento especial a Mário Alex Rosa pela primeira edição de Polonaises.
** André Dick é poeta, crítico literário e de cinema, autor de Neste momento (Kotter Editorial), entre outros. Organizou, com Fabiano Calixto, A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski (Lamparina, 2004).
NOTAS
(1) Esta origem da família marca presença no livro de prosa Quando a inocência morreu (São Paulo: Iluminuras, 2024), de Estrela Leminski.
(2) Esta ligação com o poeta polonês é investida no seguinte artigo: SOUZA, Marcelo Paiva de. História, memória, invenção: a Polônia de Paulo Leminski. Contexto, n. 13, 2006. Disponível em: <https://periodicos.ufes.br/contexto/article/view/6710/4919>. Acesso em: 25 ago. 2024.
Referências
CAMPOS, Haroldo de. Crisantempo – No espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 1998.
LEMINSKI, Aurea. Entrevistadora: Aleksandra Pluta. Paulo Leminski – apaixonado pela linguagem. Culture.pl, 18 jul. 2016. Disponível em: <https://culture.pl/pt/article/paulo-leminski-apaixonado-pela-linguagem-entrevista>. Acesso em: 25 ago. 2024.
LEMINSKI, Estrela Ruiz. Especial Leminski 80 Anos | Leminski raiz. Cândido, 18 ago. 2024. Disponível em: <https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Noticia/ESPECIAL-LEMINSKI-80-ANOS-Leminski-raiz>. Acesso em: 20 ago. 2024.
LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1987.
______. Polonaises. Curitiba: Edição do Autor, 1980.
______. Uma carta uma brasa através: Cartas a Régis Bonvicino (1976-1981). São Paulo: Iluminuras, 1992.
MOSER, Sandro. Exposição e livro revelam o Leminski polaco de Kurytyba. Gazeta do Povo, 31 ago. 2015. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/literatura/exposicao-e-livro-revelam-o-leminski-polaco-de-kurytyba-1d0zrp29lak27jjbmnr92vc7w/>. Acesso em: 25 ago. 2024.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Leminski, o samurai malandro. In: Inútil poesia e outros ensaios breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 234-240.
VAZ, Toninho. Paulo Leminski. O bandido que sabia latim. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Que texto fantástico, grande André!
Fica o adendo da correção da história familiar da chegada dos seus antepassados (feita a partir de pesquisa documental):
Pedro Leminski, veio da Polônia ao lado de sua mulher Parania e seus três filhos: Anna, João e Nicolas. Nicolas, recém nascido, morre no porto de Gênova. João, de 5 anos, falece em Curitiba, ainda na hospedaria de imigrantes. Chegam na região da Lapa apenas com Anna, de 12 anos. Logo nos primeiros meses em solos brasileiros fica viúvo. Um ano depois, Pedro se casa com Catharina e em 1900 nasce Miguel, irmão mais velho do pai do poeta.
Abraços e parabéns querido!