Por Arnaldo Antunes
Arrepiando poros e neurônios
no curto-circuito entre concisão e exuberância,
erudição e sabedoria,
razão e sensibilidade (sentimento + sensação), eis
reeditado (depois de quase três décadas
desde sua única publicação) A educação dos cinco sentidos;
livro medular da poesia de Haroldo de Campos,
com suas redes de eletrodos
plugados nos agoras de cada tempo —
afinando simultaneamente
a síntese dos poemas da fase concreta
e o transbordamento das Galáxias;
os punti luminosi de Signantia: quasi coelum
e o barroquismo presente desde o Auto do possesso;
as eleições poéticas filosóficas afetivas
e a interlocução com as artes plásticas.
Tudo converge aqui com rigor-vigor
e graça — quem mais poderia chamar Roman Jakobson
de “plusquesexappealgenário” (amor e humor)? —
onde, depois de já ter feito “de tudo com as palavras”,
disposto a fazer “de nada” (minima moralia), Haroldo
modula um ponto de equilíbrio
entre o excesso de seu extravasante repertório
e o “mínimo imprescindível” de cada poema
— equação de potências que caracterizará
toda sua poesia “pós-utópica”,
de artesanato melofanologopaico (Pound)
ultralapidado — “húbris do mínimo / que resta”.
Se a natureza da poesia é incorporar os sentidos que expressa
em sua estrutura (quase-organismo) de linguagem material,
este é um livro iniciático,
que educa os cinco sentidos ao abordar
a educação dos cinco sentidos —
tomando o mote de Marx como t(l)ema
do que exerce a cada mo(vi)mento:
converter os signos em vias de acesso direto à experiência
(“...porque não distingues / o dançarino da dança”)
do cheiro do toque do gosto do som da cor:
“o corpo é o pensador”.
Assim como, em birdsong: alba,
o canto dos pássaros se metamorfoseia em escrita
através das metonímias “bico” e “pena”
na expressão “bico de pena”.
Ou em cello impromptu, que percorre matéria tátil
(“libido de madeira / por estas gamas de topázio”),
cor (“um furor de amarelo”), sabor (“conhaque contra a luz”),
aroma (“um dulçor alourado de tabaco”),
som (“voz viril de pássaro encerrado”) e sensualidade
(“andróginas ancas / femínias bronzeadas a verniz fogoso”)
para alcançar o objetivo do simples objeto: “o cello”.
Ou ainda em“cisco de sol no olho”, “nó de água”,
“o ar lapidado”, “inscrições rupestres na ponta da língua”,
entre outros tantos mínimos múltiplos comuns
de conexão dos sentidos sentidos (Augusto).
Explorando extremos, do vocabulário mais raro
(“abantesmas”, “emética”, “crisoprásio”, “biófago”, “saxífraga”, “ciclâmen”, “tintinabulantes”) ao mais mundano
(“zorra”, “strip-tease”, “pornô”, “cartoon”, “pato donald”);
do incomum ao desincomum
— “vênus de tênis branco”, “godivas de bicicleta” —
passando pelos amálgamas
(“camaleocaleidoscópico”, “plusquamfuturo”, “decéuver-se”,
“siamesmos”, “dispássaros”, “florchameja”) de palavras
com o mesmo desassombro com que engendra teias
aliterativas e paronomásticas
(“o olho vê-se / no avesso do olho”, “desarticulária / de áreas reais”,
“casulos resolvidos em asas”, “tomei a mescalina de mim mesmo”
“nó desfeito no após do pó”),
ou converte substantivos em verbos (“o olho se esmeralda”,
“um riso onde a dissolta enteléquia / ... / primavera”;
assim como Décio fez em
“caviar o prazer / prazer o porvir / porvir o torpor / contemporalizar”
e Augusto em
“a flor flore / o colibri colibrisa / e a poesia poesia”,
aqui citado em
ode (explícita) em defesa da poesia no dia de são luckács),
Haroldo contorce a forma (arco teso a todo instante)
de todas as multiformas,
sem perder a informalidade
do sotaque natural de sua sintaxe.
Pois ele sabia que é entre os entres
(entre-sentidos, entre-palavras, entre-pausas, entre-dentes)
que o “mínimo (não prescindível)” da poesia se faz
(“o ar / lapidado: veja / como se junta esta palavra / a esta outra”);
que as palavras em si não dizem nada (ou dizem
apenas no inócuo dicionário), mas o atrito entre elas
(“inter / considere / o que vai da palavra stella / à palavra styx”)
é que acende a fagulha —
como em de um leão zen, onde efetua a viagem
do ícone do leão ao ouro de que ele é feito,
da cor do leão à cor do ouro,
do signo “leão” ao seu próprio signo astrológico
(também referido em opúsculo goetheano:
“é o mesmo fogo no signo do leão
para a combustão desta página / virgem”),
do olho ao silêncio (“olho do furacão”).
Assim também, entre um poema e outro,
alguns motivos retornam transformados.
O pánta rhei de Heráclito
(fundido à idéia do eterno retorno,
pela referência subliminar à “recorrente”
na transcriação “tudo riocorrente”)
se irradia em le don du poème
(“um poema começa / por onde ele termina”),
que reencontra o “fimcomeço” das Galáxias
e o “nascemorre” de Fome de Forma
num “riocorrente” de recorrências
que voltam sempre renovadas à sua poesia —
lusco-foco
de clareza cegante
como um soco, baque, choque
elétrico arrepiando
(“acupuntura com raios cósmicos”)
poros e neurônios.
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* Arnaldo Antunes é músico, poeta e artista visual. Nasceu em São Paulo, em 1960. Integrou os grupos Titãs e Tribalistas. Em carreira solo desde 1992, já lançou 20 álbuns. Tem vários livros publicados no Brasil e em Portugal, Espanha, Argentina e Uruguai. Participou de mostras de poesia visual e realizou exposições individuais
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