Por Ronaldo Bressane
Tirem o louco da casinha e o soltem na página. Com ímpeto arqueológico, os organizadores Ramon Nunes Mello, Silvana Guimarães e Jorge Lira passaram anos escavando computadores, memórias externas, sites, blogues e anotações em cadernos e diários de Rodrigo de Souza Leão, encontrando cerca de 900 objetos poéticos, espalhados em 23 reuniões prévias, nunca antes impressas em conjunto, como aqui: Retalhos (1998), XXV Tábuas (2000), No litoral do tempo (2000), Janelas deitadas (Síndrome) (2000), Impressões sob pressão alta (2000), Na vesícula do rock: as minhas pedras (2000), Miragens póstumas (2001), Meu primeiro livro que é o segundo (2001), Uma temporada nas têmporas (2001), O bem e o mal divinos (2002), Suorpicious & Mind (2002), Omar (2001), Cataclismo (2007), Há flores na pele (2001), Desequilivro (2008), Caga-regras (2009), Krâneo e seu neurôneo (2007), Brincar de viver (2002), Sabotador de infinitos (2007), Dias de Leão (2002), 1965 & outros poemas (1999), Romina Conti (2009), Lowcura, blogue (2009). Poeta surgido na virada dos 1990 para o começo 2000, RSL foi um sujeito de seu tempo. Contemporâneo da cultura dos blogues, praticava literatura na internet, como autor ou como repórter (apresentou e entrevistou cerca de 150 autores — foi assim, aliás, que o conheci). Em sua obra, buscou uma linguagem que capturasse os traços da digitalidade: verbalização imediata, tempo repetitivo e não linear-cronológico. Usou a internet como passagem para conhecer o Outro — e também para conhecer a si mesmo, através da autopublicação. Aqui você tem acesso a 377 poemas escolhidos desta vasta obra. Já nos títulos de muitas dessas coleções de poemas entrevê-se o tema central de RSL: o sofrimento psíquico, a investigação sincera dos becos sem saída e dos labirintos da própria mente. O tema é trabalhado pela autoderrisão, vista no gosto por trocadilhos, paradoxos, neologismos e travessuras lógicas.
Conforme resume o irônico Vida: “A mim foi negado tudo/ Até o absurdo”. A esquizofrenia paranoide, rebatida com altas doses de bipolaridade e depressão severa, privaram o poeta tanto da possibilidade de ordem quanto de desordem. No entanto, para além da melancolia que permeia toda a sua obra, neste poeta convivem, numa boa, dor e humor — e muitas vezes a graça é um escape ao desastre (como diria Luiz Alberto Simas: “Não se faz festa porque a vida é mole, mas pela razão inversa”). Assim, em sua viciante dicotomia remédio/veneno, os psicotrópicos — Lexotan, Haldol, Prozac, Fenergan, Amplictil, Diazepam — acabam se tornando, mais que motivos recorrentes, estruturantes para sua poética circular:
ORAÇÃO AO HALDOL
Santo, Santo Haldol tu
És tão pura fórmula madura
Ditadura de toda a minha cura
Loucura clausura gasta em cu
Culatra pelos tiros que beijei
Haldol que para alguns nada
Produz no sono de conto de fada
Quem em si só é um rei
Gordo e austero comendo
As lápides e os epitáfios vários
De alguns Zés e outros otários
Que como eu vivem tecendo
Odes a um remédio que me inibe
De ser louco, pouco como o P.I.B.
Ao longo desta reunião de poemas, como um subtema intermitente, veremos que outra válvula de escape possível para a loucura, fora o humor, é a espiritualidade. Mas só se for “para dar um fim ao juízo de Deus”, na sugestão de Antonin Artaud. Muitas vezes, os remédios são apresentados como passaporte para a libertação ou mesmo reconexão divina, ainda que sarcástica (como no soneto “Oração ao Haldol”, evocando o cabralino “Num monumento à aspirina”). Porém, o poeta adverte: tanto a cura quanto a religiosidade são ilusões. Todo remédio será veneno. Então talvez o antídoto à loucura seja a literatura:
PERGUNTA
as respostas
não estão
nas hóstias
as respostas não
estão na bula
simplesmente
não há
respostas
nenhum
deus
que se engula
O paideuma de RSL comparece nos poemas reunidos mais como personagens do que como citações, embora aparecem em umas sampleadas. Entre os autores que o inspiraram está a figura onipresente de Rimbaud, coadjuvante em seu romance Todos os cachorros são azuis (“Rimbaud”: “galos/de/campina/crinas/ de/ capim/ em/ mim/ adrenalina/ ansiolítico/ no/ fim/ da/ tarde/ trôpego/ tropeçando/ em/ seu/ crepúsculo”). Está o fantasma amarelo de Van Gogh, que assombra o e-book O bem e o mal divinos; o artista é inspiração para os últimos anos de RSL, quando passa a se dedicar à pintura. Estão no e-book Na vesícula do rock: as minhas pedras, que agrega os poemas dedicados aos roqueiros suicidas ou de morte trágica (Kurt Cobain, Jimi Hendrix, Renato Russo). Estão em “O dado de sete lados”, onde Drummond, Murilo Mendes e Roberto Piva se cruzam em sua circularidade minimalista (“Podem me chamar de otário/ No sentido horário/ e no anti-horário”). Extrair do mínimo o máximo, ser máximo no mínimo: aqui reside um paradoxo desta lírica.
Tudo é pequeno
A fama
A lama
O lince hipnotizando a iguana
O que é grande
É a arte
Há vida em Marte
O último poema de Rodrigo de Souza Leão, publicado poucos dias antes de sua morte em seu blogue Lowcura, sintetiza algumas das linhas de força de sua obra. Apesar da grande produção, os textos em geral são curtos: dísticos, haikais, quadras, sonetos, fragmentos de poesia em prosa. Muitos poemas exibem versos órfãos (ou viúvos, dependendo do ponto de vista), com uma, duas, três palavras, e às vezes só cacos de palavras. Há séries longas, unificadas por temas ou motivos, nada também muito volumoso. RSL parecia escrever usando a página branca: a busca pela concisão, pela contenção, pela precisão, abre clarões na página, faz com que a gente se detenha em cada palavra buscada, talvez a lendo intimamente com vagar, talvez a lendo em voz alta no registro de um sussurro. Tome-se este último poema. Duas estrofes em contraste — e contrastes, paradoxos, oximoros e contradições são efeitos constantes no conteúdo da poética de RSL. “Tudo é pequeno”, o poeta afirma. Tanto a glória quanto a derrota, parece dizer.
A rima toante de “iguana” soma-se às sonantes “lama” e “fama”, introduzindo uma cena dentro do poema. Porque este poeta é dramático: também prosador e jornalista, aprecia a narrativa, procura cenários, personagens, diálogos. “O lince hipnotizando o iguana” é uma cena em que o olhar acena com a possibilidade da morte. Quem será o poeta aqui, lince ou iguana, predador ou presa — ou ambos? Não importa: a morte equaliza perdas e ganhos; tudo se equivale na “pequenez”. A sonoridade da segunda estrofe se abre, então, com as rimas oralizadas “arte” e “Marte”, em oposição às nasalizadas “lama”/“fama”/“iguana”. Saímos do pequeno ao grande, da oclusão à amplidão. Porque há uma ressalva nesta total pequenez: a arte. O último verso responde afirmativamente à canção “Life on Mars?”, de David Bowie — uma das referências musicais de RSL. Talvez, se houver vida em Marte, ali o poeta se encontre — vendo “tudo” muito “pequeno”, como se à distância, livre dos compromissos terrenos com glória ou derrota. E a morte — o felino predando o réptil — reside justo neste verso, feito uma passagem entre reinos: um verso que é um portal.
O poeta já está em outra, vivendo em Marte. Talvez de volta a seu planeta natal: pois em toda a sua obra RSL faz questão de dizer que a Terra não é seu lar, pois vive fora da casinha. Se em seus versos RSL aparece como um grande solitário, na literatura brasileira seu caso tem boa companhia. Faz parte de uma comunidade de autores cujas vidas e obras foram atravessadas pela questão da loucura. Temos aí Cruz e Sousa, cuja depressão foi agravada pelo racismo e pela bipolaridade da esposa, Gavita. O grafômano Qorpo-Santo, tido como louco até pelo médico de Dom Pedro II. Lima Barreto, que também lutou contra o racismo e o alcoolismo, se internou em uma clínica psiquiátrica, experiência descrita em livros como O cemitério dos vivos. José Agrippino de Paula, diagnosticado como esquizofrênico, condição que surge sutil em seu livro Lugar público e que vai afastá-lo da cena literária. Maura Lopes Cançado, autora central deste tema na literatura brasileira, conforme expresso em sua dupla de livros Hospício é Deus e O sofredor do ver. Renato Pompeu, esquizofrênico, preso durante a ditadura, experiência tematizada em Memórias da loucura. Stela do Patrocínio, cujo “falatório” produzido durante anos de confinamento em clínica deu origem ao livro de poemas Reino dos bichos e dos animais é meu nome. E Carlos Sussekind, que até usou o próprio psicanalista como coautor em obras como O autor mente muito. Como nos autores acima, a busca pelo autoconhecimento por meio da literatura é tanto uma questão de saúde mental quanto um dado que estrutura versos e narrativas. Se, em livros como Me roubaram uns dias contados o narrador se multiplica em inúmeros personagens (como Weimar, O Sósia e Rodrigo), em uma verdadeira máquina de selfies, a poesia é o lugar em que RSL busca a transparência como uma estratégia de combater a opacidade dos transtornos psíquicos. Mas o curto-circuito faz com que, ao sair de si, o poeta acabe caindo em si novamente:
3x4
o três por quatro
não é um retrato
é o close de um fato
algo que fica na carteira
de identidade pra sempre
como se nunca um dia
tivéssemos sido gente
Como Van Gogh, obcecado pela própria imagem, RSL sente que nenhum retrato é suficiente para dar conta de sua identidade — nem autorretrato, nem retrato visto do lado de fora. Afinal o espelho, espelho meu é enganoso:
PODEROSA
o espelho só reflete o que quer
é o dono da imagem
alguma deformação em meu rosto
faz parte de minha engrenagem
mastigo todo o silêncio
e engulo o que me reflete
a escultura que nunca aparece
ou a madrasta da Branca de Neve
Em Kafka — Por uma literatura menor, Gilles Deleuze e Félix Guattari propõem uma leitura de autores cuja excentricidade dentro de um sistema literário tenha produzido um território tão próprio e microscópico, que acabam sintetizando problemas e questões mais amplos: “Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior”, escrevem. Seria o caso de Franz Kafka, um escritor judeu que escrevia em alemão entre tchecos. Seria o caso de RSL, escritor apartado do convívio social por sua condição de esquizofrênico, condição que se torna lente de aumento para sua leitura da realidade: “Diante do escuro minha dor é uma lanterna e Deus é uma sombra” (em “O bem e o mal divinos”). Tematizado em tantos versos aqui, o sofrimento psíquico — que o isola em clínicas psiquiátricas ou trancado no quarto — é a própria perspectiva de mundo de RSL, e conforma a sua arte poética. “Se o escritor está à margem ou apartado de sua comunidade frágil, essa situação o coloca ainda mais em condição de exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade”, diz a dupla Deleuze e Guattari: “Escrever como um cachorro que faz seu buraco, um rato que faz sua toca”.
CAIXA DE FÓSFOROS
Eu não saio pra ver a vida
Eu vivo ávido de vida
A vida está aqui dentro
Tão dentro que estou morto
Pronto pra pegar fogo
O poema acima traduz essa circularidade minimalista. O eu lírico é um palito de fósforo contido dentro das seis paredes de uma caixa. Está imóvel, “morto”, porém ao mesmo tempo está “ávido de vida” — como na “falta que ama” de Drummond: seu desejo o torna vivo. É o latente, o potencial, à espera de se manifestar, “pronto pra pegar fogo”: basta que um outro o toque, o risque. O erotismo, expresso em tantas páginas de RSL, aqui se sugere em um eu lírico que, mesmo encerrado, fechado, isolado, busca o encontro com o outro. Como em Kafka, não lemos Gregor Samsa “como se” fosse um inseto: Samsa é o próprio inseto — sua literatura recusa a metáfora. “A literatura deixa de ser representativa para tender a seus extremos ou seus limites”, dizem Deleuze e Guattari; “a metamorfose é o contrário da metáfora. Não há mais sentido próprio nem sentido figurado, mas distribuição de estados no leque da palavra”. Sempre bom lembrar que a metamorfose é a coisa e ao mesmo tempo a coisa tornada outra coisa. RSL não soa “como se” fosse um palito de fósforo: é um palito de fósforo, fechado na caixa. * O tom menor, o registro intimista, a lábia confessional, a autobiografia, a circularidade minimalista são bússolas que nos guiam por este pequeno país. Já no primeiro capítulo deste livro, “Nas costelas do céu”, temos poemas como “Avestruz bem-te-vi” que instauram esse oximoro fora-dentro em forma de imagem:
A SEDUÇÃO
encorpada
pela sua voz calada
os arranha-céus sangrando
aos filhos homenageando
o vermelho dos dias
e as velhas filosofias
tudo indicando guerra
como alto quem berra
nas asas de um avião
risco a vermelhidão
quem te fez altura
pra pular fundura
mergulhar dentro de si
como avestruz bem-te-vi
Duas aves pelo preço de uma: em RSL, o pássaro que vocaliza a alvorada pode ser o mesmo pássaro que oculta sua cabeça dentro da terra. Esconder-se é anunciar-se: publicar a própria intimidade —‚ este comportamento hoje tão comum na internet... — faz parte deste projeto em que o privado se torna público, e talvez só ganhe sua carga de significados exatamente enquanto este movimento se processa. Bom lembrar que muitos destes poemas circularam exclusivamente na internet: como se, só escondido em público, RSL pudesse declarar a própria existência. Em variados poemas o autor se metamorfoseia em outros animais para expressar um comportamento ou uma sensação — o “devir-animal”, como dizem Deleuze e Guattari. Pode ser uma flor carnívora, em “Cousa” (“sou o máximo do mínimo e o mínimo do máximo”, outra expressão desta minoridade). Ou ainda o pássaro sagrado em “Rabiolas de céu” (“eu queria voar ao seu lado/ mas aqui embaixo dando linha/ já me sinto voando, voando”). Percebe-se que nem sempre o mergulho da avestruz é o movimento buscado por esta poesia. Às vezes, a contemplação da natureza pode fornecer um voo para o eu lírico, enfim, sossegar, metamorfoseado na página branca: Lagoa a garça disfarça-se de branco para nuvem ser também silenciar Eis um escritor que nunca quis silenciar, mesmo acossado por dificuldades advindas de sua condição psíquica, mesmo isolado no quarto ou em clínicas psiquiátricas, mesmo sem circular com desenvoltura pelos círculos literários. Tomara que, agora impresso, para além da neblina do sofrimento psíquico que circula toda sua obra, os leitores possam se hipnotizar e se deleitar com a beleza e a originalidade da poesia de Rodrigo de Souza Leão.
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