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SEQUÊNCIAS, DE JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES

Por Mário Alex Rosa


Há praticamente 15 anos o poeta Júlio Castañon não publicava um livro de poemas. Nesse intervalo saíram cinco plaquetes, três no Brasil e duas na França. Mas enquanto não colocava novo livro na praça, estava cuidando de dois projetos volumosos em duplo sentido: as traduções das Flores do mal (prêmio Paulo Rónai de tradução, 2019) e a prosa do poeta francês Charles Baudelaire. Ou seja, a poesia, estudos sobre artes, narrativas concentradas como poemas em prosa, ou pequenos contos e a vida do flâneur pelas ruas de Paris, continuavam no centro de seus interesses. Vamos dizer que o poeta estava sob um excelente convívio. Traduzir não é só conhecer a outra língua, o que já é muito, mas é conhecer um pouco o mundo do outro. Castañon, que tem longa experiência em traduções, já traduziu poetas extremamente difíceis como Mallarmé, Paul Valéry e Francis Ponge. Afora essas experiências, é um estudioso de pelo menos três grandes poetas brasileiros: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Pelo que se vê, o convívio do poeta mineiro com poetas estrangeiros e brasileiros oferece uma soma substanciosa para afirmamos sem restrições que Júlio Castañon Guimarães é um poeta-crítico, mas mais que isso: é um poeta que vem de forma consistente e singular propondo uma poesia com formulações próprias, uma sintaxe singular, sem se afastar de suas experiências particulares quanto das que acumulou lendo pelo menos duas tradições fundamentais de poetas do século XIX e XX. Assim, entre tradição e experimentalismo, a poesia de Castañon se impõe por um sujeito lírico, recolhido em meio à sua própria linguagem, como se ela fosse uma maneira de pensar o mundo sensível das coisas.


Seu novo livro Sequências, (2023), publicado pela coleção Círculo de Poemas, parece continuar os mesmos périplos anteriores de seus livros anteriores, ou seja, o caminhar, a observação de objetos, a memória de algum lugar (cidades, montanhas, pinturas, música), a própria linguagem como elemento de construção dos poemas, mas não apresentando um tipo de metalinguagem muito comum na atual poesia contemporânea, ou seja, falar do e sobre o poema. Em Júlio, o que parece interessar é o processo de construção tanto da forma de seus poemas quanto do que esteja buscando para dar sentido ao mundo sensível das coisas, por isso as indagações, os cortes, o pensamento aparentemente fragmentado, levantamento de situações específicas (uma caminhada, por exemplo), elipses, hipóteses, suposições, enfim, a condição é talvez de propor até mesmo a própria fragilidade da feitura do poema e não apenas do sujeito que constrói. É como se ambos (poema e sujeito lírico, queira chamar assim) estivessem em falta consigo mesmos. A dupla experiência do fazer e viver – poderia dizer também dedicação, sensibilidade, fazem dessa poesia autorreflexiva, mas não ensimesmada num jogo apenas e só metalinguístico. Em Substâncias há avanços notáveis e que vão além da construção – sempre tão cuidada nos seus poemas. Um elemento que parece agora com mais intensidade e que ilumina as imagens dos seus poemas é a luz das cores, como da cor amarela. Veja-se o poema “Por pouco que...”:


Por pouco que tenha passado,

não somos mais exatamente os mesmos,

como é o mesmo aquele amarelo,

ainda que em algum momento

os limões do ano passado

tenham sido colhidos.

No silêncio e brilho insistentes do dia

persiste sua cor, e ressoa

na luz que os cerca,

que é como que sua luz expandida.


Se já não somos exatamente os mesmos que vivenciaram a “cena”, ainda que “por pouco que tenha passado”, ela permaneceu na lembrança visual, ou, se quisermos, no sentido sensível da visão que observou o amarelo dos limões. A passagem do tempo é inexorável, mas a cor vinda do dia e do fruto mostra a expansão da luz que cerca e ilumina a beleza desse poema. Ainda nessa sequência, é visível que o poeta parece buscar pontos luminosos que possam aqui e ali desfazer o que ainda é incerto e restituir a “forma informe”, isto é, não apenas a forma dos seus poemas que já trazem a sua própria forma. É como se neles houvessem algo inacabado, incerto, e o poeta precisasse na sua caminhada dar conta de uma busca menos informe. Daí a aparência dos fragmentos de versos, palavras, conectivos, pausas (veja o belo e longo poema “Esboço de uma cena”). Ao se observar as cores (quase sempre o amarelo como a cor que possa iluminar as partes e o todo de seus poemas) de um quadro, de uma fruta ou da própria natureza dos dias, as imagens sobressaem e “não há por que não dizer que as cores podem ser formas” (“Quase elementos (a propósito de pintura de Manfredo de Souzanetto)”). Relembrando a velha formulação horaciana de que “poesia é como pintura”, então, é possível reconhecer que em Sequências diversos poemas parecem ser iluminados pelas cores, que há uma relação entre o mundo natural e o das artes, no caso a pintura. O que se percebe não é de uma descrição propriamente pictórica, mas de suas sensações, como se houvesse uma sinestesia poética e sensível aos sentidos do sujeito lírico e recolhido que observa o mundo das coisas. Se essa hipótese é plausível, ficamos diante de alguns poemas como diante de uma exposição de quadros. Dessa maneira, toda parte 7 do livro é um convite aos nossos cinco sentidos: “Desta janela, uns…”, “Pelo outono…”, “Aqui, é quase…” “do dia…”. Afora esses poemas, há três outros cuja experiência do olhar do poeta remete diretamente a pinturas: “O grande pinheiro, de Cézanne”, “Fazenda da Normandia, de Cézanne” e “Quase elementos (a propósito de pinturas de Manfredo de Souzanetto)”. Não se trata, nesses poemas, de uma relação direta com que se conhece por écfrase, ou seja, um modo de escrever sobre um quadro a partir de sua descrição. Na verdade, esses ótimos poemas se constroem pela sintaxe, na qual a linguagem é o ponto central que não só faz dar a ver as imagens construídas verbalmente como os rumores que se adensam nas caminhadas solitárias de um sujeito lírico noites adentro, como na realização no belo poema “Sem título”, que lembra as gravuras de Goeldi.


Dessas novas experiências, e simplificando muito, o que se pode notar é que, entre pequenos feixes de luzes e cores vivas, a lírica meditativa de Júlio Castañon continua palmilhando por ruas desertas, sondando as noites, a passagem dos dias, das manhãs, dos entardeceres, mas agora com uma tentativa de alguma “exatidão cromática” (“Hoje à tarde”), “do dia azulíssimo” (“Do dia…”), “com sóis múltiplos em revolução” (“Pelo outono…”), enfim, se o peso das sombras continua é porque nelas há algum sinal que as ilumina, por isso e por muito mais a poesia de Júlio Castanõn se coloca com uma daquelas que renovam a cena contemporânea da poesia brasileira, como sintetiza Leonardo Gandolfi na apresentação do livro: “seu trabalho de pesquisar linguagens e mudar a tradição de lugar”.


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