Por Marta Passos Pinheiro
O poema narrativo Formigas, de Mário Alex Rosa, publicado em 2013 pela Cosac & Naify, foi reinventado em 2024, na edição primorosa da Impressões de Minas, trazendo na quarta capa texto de Hélder Pinheiro. As ilustrações, pequenas formigas pretas, e o projeto gráfico de Mário Vinícius, que manteve um diálogo intenso com o poeta, nos mostram a importância dessas linguagens para a construção de uma obra literária. Trata-se, sem dúvida, de um novo poema, dessa vez em um diálogo ainda maior com a poesia concreta, podendo conquistar não apenas o público infantil, mas também o público adulto.
Essa “dupla audiência” vem caracterizando boa parte da produção do poeta e artista plástico Mário Alex Rosa, que despontou ainda na primeira década dos anos 2000, com publicações em antologias e suplementos literários. Seus livros para o público adulto Ouro Preto e Cartas ao mar, publicados pela Scriptum em 2012 e 2023, respectivamente, Via férrea, publicado pela Cosac & Naify em 2013, e Casa, publicado pela Impressões de Minas em 2020, foram muito bem recebidos por público e crítica. Os livros “infantis” ABC futebol clube e Cosmonauta, publicados pela Aletria em 2015 e 2022, respectivamente, vêm ocupando um lugar de destaque nas escolas e nas premiações literárias. O poeta tem uma forte atuação na cena cultural belorizontina e seus poemas-objetos vêm sendo expostos em galerias e universidades das cidades mineiras.
O renovado Formigas veio para provocar a imaginação dos leitores, convidados a uma experiência estética de presença, na atenção necessária à percepção da visualidade dos versos escritos e ilustrados (as formigas), e de memória, na busca por recordações do caminhar das formigas. Se podemos entender a capa como a porta de entrada de um livro, que já indica sua proposta de interação e a que veio, não temos dúvida: o livro discreto em preto e branco já ocupa, por seu tamanho vertical diferenciado e papel encorpado, espaço na estante dos livros contemporâneos que vêm investindo na materialidade enquanto linguagem. Esse movimento, que tem como precursora a literatura infantil, vem atingindo as demais produções e pode ser compreendido também como um movimento de resistência ao aumento das obras digitais/digitalizadas e uma resposta à pergunta: o que será do futuro do livro impresso? Produções como Formigas nos mostram que o futuro existe e que a experiência estética de manusear e ler um livro impresso não é substituível. E mais: o diálogo entre texto escrito, ilustração e projeto gráfico vem ampliando o público leitor dessas obras, ricas em camadas de leituras, atingindo os públicos infantis, juvenis e adulto, de todas as idades.
Já no título observamos o que se concretizará ao longo do poema: uma fragmentação maior do texto, que pode ser compreendido, nas páginas finais da obra, como poemas autônomos. Na capa, a palavra “Formigas” é separada em sílabas, podendo ser percebida como três versos de uma palavra-sílaba ou sílaba-palavra: “For/ Mi/ Gas”. O jogo lúdico com palavras e letras e a forma de disposição do texto escrito e das imagens das formigas no espaço da página aproximam o poema da proposta da Poesia Concreta.
O preto, que traz um ar de sobriedade e elegância ao livro, se repete em páginas alternadas, compondo o ritmo do poema: páginas pretas e páginas brancas. Nas pretas, encontra-se o texto escrito, com letras em caixa-alta brancas, e nas brancas, as formigas pretas, com tamanho próximo ao das letras. Elas não se misturam: cada uma nas suas páginas! O texto escrito ilustra as formigas ou as formigas ilustram o texto escrito? Dispostas em filas, as formigas “dão um selinho/ dão outro selinho/ e vão,/ não sei pra onde,” (p. 11-23). A vírgula finalizando este último verso merece destaque, pois na página seguinte encontramos uma fileira de formigas, tornando possível a interpretação de que se trata de uma continuação do verso anterior. Seriam formigas-verso? Poderia ser o poema formado por versos-formiga (texto escrito) e formigas-verso (ilustração)?
O texto escrito, narrado por um sujeito poético em primeira pessoa que observa o caminhar das formigas, nos faz buscar na memória as visões das formigas de nossa infância. Qual criança nunca acompanhou uma fileira de formigas em um canto da casa ou do quintal? Já as imagens das formigas nas páginas, em seus movimentos e (des)alinhamentos, também nos instigam a buscar por meio da imaginação “expressões verbais” que expliquem/organizem o seu caminhar. Essa organização é feita no texto escrito pela voz do sujeito poético, que não deixa de registrar seu ponto de vista em relação aos selinhos dados pelas formigas: “Essas formigas que não têm pudor” (p. 27) e “danadinhas” (p. 47). Os versos são dispostos ora horizontalmente ora verticalmente, como as fileiras de formigas: caminhando pra direita, subindo e descendo. Dessa forma, há um destaque para as letras e palavras, poucas e precisas, em um processo de “formiguização” dos versos e de “versificação” das formigas.
O clímax do poema narrativo encontra-se na marca da impressão digital de um pequeno dedo em uma página de papel vegetal. A translucidez do papel faz aparecer de forma difusa imagens de formigas, que estão na página branca seguinte, em formação hexagonal. A partir desse momento os versos escritos, nas páginas pretas, são apresentados em círculos, ganhando movimento e certa autonomia, ou seja, podendo também serem entendidos como versos-poema. Dessa sequência fazem parte: “A menina distraída, mas que tudo via,” (p. 53) e “selou com seu dedinho o caminho das formigas.” (p. 57). As páginas seguintes trazem, alternadamente: formigas-poema em movimento dispostas em formas geométricas e versos-formiga em círculos cada vez mais abertos, materializando o dispersar das formigas: “E foi uma desatenção de antenas,” (p. 61)/ “que ninguém mais sabe” (p. 65)/ “se foram para Atenas ou Barbacena.” (p. 69). O jogo com as palavras e suas rimas aproxima a cidade interiorana do poeta mineiro, Barbacena, da capital da Grécia, Atenas, estabelecendo um interessante contraste e mostrando que as formigas podem estar mais próximas ou mais distantes.
A referência a Atenas, rimando com “antenas”, também pode remeter o leitor a uma Grécia clássica, de mitos e deuses, distante e agora próxima, pelo processo imaginativo despertado pelas palavras do poema. Esse processo é desencadeado por uma qualidade/valor da literatura destacada por Italo Calvino em uma palestra que iria proferir na Universidade de Harvard e que foi publicada na famosa obra Seis propostas para o próximo milênio: a “visibilidade”, relacionada a dois tipos de processos imaginativos: “o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal.” (1990, p. 99). O primeiro processo, como pontua Calvino, “é o que ocorre normalmente na leitura” (1990, p. 99), pois o texto escrito nos leva “a ver a cena como se esta se desenrolasse diante de nossos olhos.” O segundo pode ser compreendido como o próprio processo de escrita, no qual o escritor traduz em palavras as imagens de sua mente.
Essas imagens fazem parte do “cinema mental” da imaginação que, como destaca Calvino, funciona continuamente em nós e está em risco, devido ao bombardeio de imagens por que passa nossa civilização, o risco de perdermos a capacidade de “por em foco visões de olhos fechados” (1990, p. 107-108). Esse alerta foi feito ainda na década de 1980 e o levou a colocar a “visibilidade” na lista dos seis valores/qualidades da literatura a serem preservados para o milênio em que agora nos encontramos. Apesar de Calvino se referir a um conceito de literatura que priorizava o texto escrito, acreditamos que os livros de literatura infantil contemporâneos podem fazer parte dos textos que contribuem para a qualidade da “visibilidade” por ele apontada. Formigas, com suas formigas-verso e seus versos-formiga, é um convite à nossa imaginação, trazendo para as crianças uma forte experiência estética visual e para os adultos trazendo ainda a alegria e a saudade de um tempo lento de observação do ágil e ininterrupto caminhar das formigas...
______________________________________________________________________________________
Marta Passos Pinheiro é doutora e pós-doutora em Educação pela UFMG, mestre em Literatura Brasileira pela UERJ. Professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Belo Horizonte. Desenvolve pesquisas sobre formação de leitor de literatura e design de livros para crianças e jovens. Coordena o grupo de pesquisa Leitura literária, Edição, Mediação e Ensino (LLEME/CEFET-MG).
Comments