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A grande atriz coadjuvante


Dirce Waltrick do Amarante

22 de dez. de 2024

Um filme corajoso e necessário. Grandes atuações.

(Dirce Waltrick do Amarante é autora de Cenas do Teatro Moderno e Contemporâneo, Metáforas da tradução, entre outros)


Mesmo em Santa Catarina, considerado o estado mais bolsonarista do país, as salas de cinema têm ficado lotadas nas sessões de Ainda estou aqui, filme sobre os anos de ditadura militar no Brasil baseado do romance homônimo de Marcelo Rubens Paiva e dirigido por Walter Salles. A protagonista da trama, Maria Eunice Paiva, representada por Fernanda Torres, cuja atuação tem impressionado os críticos, foi mulher de Rubens Paiva, um dos muitos mortos durante as ações repressivas do governo do famigerado general Emílio Garrastazu Médici.


O filme resgata um episódio que muita gente parece preferir esquecer. É como se, depois da redemocratização do país, não fosse mais necessário falar sobre os horrores da ditadura militar. Assim, o passado se torna irrelevante, mas é justamente ele que contamina o presente e pode tornar o futuro desastroso, já que estivemos há pouco ameaçados por um golpe de Estado.


 Ainda estou aqui é, por isso, corajoso e muito oportuno. A história de Eunice Paiva tem muito a ensinar: nascida em 1928, se formou em Letras numa época em que a maioria das mulheres se contentava apenas em ser dona de casa, delegando a vida política e as decisões culturais aos homens.


Depois de 2016, quando Michel Temer assumiu o poder, uma manchete chamou a atenção e foi muito comentada, e nada tinha a ver com o novo presidente, mas com a sua mulher, definida como “bela, recatada e do lar”. Essa definição machista foi de encontro ao desejo de muitas mulheres brasileiras de definirem livremente seu próprio papel na sociedade. Por um lado, Eunice Paiva, pelo menos como o filme a retrata, também foi uma mulher “bela, recatada e do lar”, mas, por outro lado, tinha um diferencial, dado talvez pela sua formação,  qual seja, a sensibilidade para as coisas da sua época e a consciência do contexto histórico em que vivia. A excepcional dedicação de Eunice Paiva a causas indígenas, por exemplo, na segunda metade da sua vida, seria, a meu ver, consequência disso.


Eunice casou-se com o engenheiro Rubens Paiva, e ambos, morando no Rio de Janeiro, faziam parte da elite econômica e intelectual brasileira. Rubens Paiva foi deputado federal eleito em 1962 pelo Partido Trabalhista Brasileiro, mas teve o mandato cassado depois do Golpe Militar em 1964. Por seus ideais e por sua história, Paiva não sucumbiu à tentação (outros da elite o fizeram) de trabalhar para os militares. Já viúva, mas sem ter o atestado de óbito do marido, Eunice transformou o trauma da perda em luta. Formou em Direito, passou a defender as causas em que acreditava, entre elas, os direitos indígenas, que já mencionei, numa época em que não era “moda” falar sobre eles.


No que tange ao filme propriamente dito, mais especificamente às atuações, muito tem-se falado de Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva, cuja atuação, a meu ver, chama a atenção, principalmente, porque Torres consegue segurar frases banais e repetitivas na maioria das cenas.  As crianças também mereceriam destaque, em especial Bárbara Luz, a atriz que faz o papel de Nalu, filha do meio do casal Paiva.  Mas quem, a meu ver, mereceria concorrer ao Oscar – na categoria de Atriz Coadjuvante – é a veneranda Fernanda Montenegro, que interpreta Eunice Paiva já com Alzheimer e em idade avançada. É impressionante como, em pouquíssimos minutos em cena, sem proferir uma frase sequer, ela consiga recriar e resumir toda a história da personagem por meio de algumas expressões faciais muito sutis, na medida exata para demonstrar que ainda está ali. Justamente por isso, ela consegue comover e impactar.

 

*Imagem: reprodução do filme "Ainda estou aqui".



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