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A recepção do método tradutório de Ezra Pound no Brasil

Scheila Souza Sodré

23 de fev. de 2025

"As melhores traduções são aquelas que não parecem tradução"
(Augusto de Campos)

Ezra Pound (1885-1972), poeta, crítico literário, tradutor e ensaísta norte-americano, desenvolveu um novo olhar sobre a poesia, numa atitude crítica e criativa de reinterpretação da tradição poética, valorizando especialmente aspectos como a precisão, a objetividade, a visualidade, a sonoridade, a coloquialidade, o humor e a ironia, temas discutidos no ABC of reading (1934). Segundo Pound “os bons escritores são aqueles que mantêm a linguagem eficiente”; “A linguagem é o principal meio de comunicação humana. Se o sistema nervoso de um animal não transmite sensações e estímulos, o animal se atrofia”; “Do mesmo modo, se a literatura de uma nação entra em declínio, a nação se atrofia e cai. O estadista não pode governar, o cientista não pode comunicar suas descobertas, os homens não podem se entender sobre a ação mais conveniente, sem a linguagem”; “A Grécia e Roma se civilizaram via linguagem. A linguagem de vocês está nas mãos de seus escritores. Roma se elevou com o idioma de César, Ovídio e Tácito, e decaiu num banho de retórica, a linguagem dos diplomatas, feita para ocultar o pensamento, e assim por diante”; “Um povo que cresce habituado à má literatura é um povo que está em vias de perder o pulso do seu país e de si próprio”, culminando no conhecido adágio “Os poetas são as antenas da raça”. A defesa da clareza e da objetividade na poesia, portanto, para EP, não era apenas uma questão estética, mas também ética e política, sendo a função social dos escritores manter a linguagem viva.

 

No ensaio How to read (1927, in Literary Essays, 1954), Pound cria conceitos para definição das modalidades da poesia, tal como segue: a melopeia, do grego melopoiía («composição de cantos líricos»), em que predomina no verso a intenção melódica, tal como acontece na poesia de Homero, Safo e nos trovadores provençais do século XII; a fanopeia, em que predomina a presença da imagem no texto poético, ou, nas palavras de EP, “throwing the object (fixed or moving) on to the visual imagination”, recurso particularmente significativo na poesia chinesa, escrita no alfabeto de ideogramas, mas também em autores como o simbolista francês Arthur Rimbaud; e a logopeia, do grego logopoeía, que é a “dança do intelecto entre as palavras”, a modalidade poética onde predomina o pensamento, tal como ocorre em Propércio e Laforgue. Todos os autores que Pound cita como exemplares nas três modalidades definidas por ele – melopeia, fanopeia, logopeia – foram também traduzidos e estudados por ele e incorporados em seu paideuma, ou “ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem ou geração possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos”. Pound incluiu em seu paideuma, por exemplo, Homero, Safo, o Livro das Odes Clássicas Chinesas coletadas por Confúcio, Li Tai Po, Catulo, Ovídio, trovadores provençais – especialmente Arnaut Daniel --, Dante, François Villon, Shakespeare e Rimbaud, entre outros. Ou seja, sua lista vai até a segunda metade do séc. XIX, em que vigorava o simbolismo francês (e o autor norte-americano irá privilegiar, em sua escolha canônica, a linhagem “coloquial-irônica” de Laforgue e Corbière, em detrimento da linhagem “sério-estética” de Baudelaire, Verlaine e Mallarmé, para usarmos as categorias adotadas pelo crítico norte-americano Edmund Wilson no livro O castelo de Axel).  Pound exclui, de sua lista, autores importantes do cânone ocidental, como Góngora e Mallarmé, por um princípio criativo pessoal: ele valorizava a clareza, a precisão e a objetividade, como já nos referimos, e por isso mesmo via com certa suspeita o uso excessivo da metáfora, da alegoria, da linguagem rebuscada, hermética, obscura, que dificulta a construção do pensamento com clareza. Em sua lista canônica, também cria uma classificação para agrupar os poetas conforme a nível de realização alcançado em seu trabalho: os inventores, mestres, diluidores, bons escritores, beletristas e lançadores de modas.

 

Inventores são aqueles que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo, como Arnaut Daniel, que inventou a sextina e formas inusitadas de distribuição de rimas (como acontece no poema L’aura amara);

 

Mestres são aqueles que combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou até melhor que os inventores, como acontece com o Rimbaud das Poésies (em que se encontram poemas em versos valorizados por Pound pela construção imagética, ironia e humor);

 

Diluidores são os que vieram depois dos inventores e dos mestres e que não foram capazes de realizar tão bem o trabalho, facilitando por vezes as inovações formais trazidas por seus antecessores;

 

Bons escritores sem qualidades salientes são os que tiveram a sorte de nascer numa época em que a literatura de seu país está em boa ordem ou em que algum ramo particular da arte de escrever é saudável. Por exemplo, sonetistas na época de Dante;

 

Beletristas são os homens que realmente não inventaram nada mas que se especializaram em uma parte particular da arte de escrever e que não podem ser considerados grandes homens ou autores que tentaram dar uma representação completa da vida ou da sua época.

 

Na opinião de Pound, os leitores deveriam se preocupar em ler, sobretudo, as obras dos mestres e dos inventores, ou seja, daqueles que realizaram bem a sua arte. Todas essas classificações e conceitos foram elaborados por ele com o objetivo de criar um método de estudo da literatura, e nesse ponto poderíamos nos perguntar: o que significa literatura para ele? Pound define literatura como “[...] linguagem carregada de significado. “Grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”. Não se trata, portanto, de “arte pela arte”, de mero formalismo ou artificialismo técnico, mas de união indissolúvel entre conteúdo e forma – daí a sua valorização da clareza e da objetividade. Mais adiante, afirma: Literatura é novidade que permanece novidade. Quando lemos o Fausto de Goethe, a Divina Comédia de Dante ou a Odisseia de Homero, por exemplo, somos surpreendidos, a cada momento, por referências históricas, literárias, mitológicas e procedimentos formais que não se esgotam em poucas leituras; pelo contrário, são obras que, por sua imensurável riqueza, exigem contínuas releituras, e em cada uma delas assimilamos uma informação nova para nós. Esta é, talvez, a diferença entre a grande literatura e as obras de entretenimento, de compreensão mais fácil e rápida, que se esgotam após uma única leitura. Pound também gostava de lembrar que, em alemão, poesia se diz dichten, que significa condensar, concentrar. É pela concentração do pensamento no texto poético que o autor consegue não apenas obter maior poder de impacto em seus recursos de som e imagem, mas também aglutinar uma quantidade maior de ideias, tornando o texto rico em termos referenciais e de grande força estética.

 

O poeta-crítico norte-americano propõe ainda o que ele chama de método ideogrâmico para o estudo da poesia, que consiste na comparação crítica de textos de poetas de diferentes épocas, idiomas ou países, numa abordagem sincrônica, para a avaliação dos pontos fortes e fracos de cada um. Assim, se o objetivo imediato for o estudo do humor e da sátira na poesia, por exemplo, o estudante pode colocar, lado a lado, poemas de François Villon, Bocage, Gregório de Matos ou Tristan Corbière, por exemplo, para verificar como cada um desses autores trabalha o humor na poesia – pela escolha do vocabulário, construção das rimas, escolha temática etc. Pound chamou o seu método de ideogrâmico porque a estrutura do kanji é formada pela justaposição direta de signos, que estabelece uma relação de analogia entre eles, de comparação, que permite a construção de significados por parte do leitor. Ao fazer o estudo comparativo de poemas, o estudante poderá perceber quais recursos ainda são eficazes hoje para o fazer poético e quais se tornaram obsoletos, fazendo assim uma seleção crítica. 

 

Pound formulou também um pensamento original acerca da crítica literária, que ele divide em cinco modalidades: a crítica via tradução, a crítica via música, a crítica via criação no estilo de uma época, a crítica via discussão e a crítica via poesia. Devido ao escopo de nosso trabalho ser o estudo da recepção do método tradutório de Pound no Brasil, iremos discutir aqui apenas a primeira dessas modalidades, a crítica via tradução, baseada  no lema do filósofo chinês Confúcio, que ele traduziu como Make it New, ou “faça-o novo”, “renovar”. Na visão do poeta-crítico norte-americano, o tradutor deveria atualizar o texto poético traduzido, dando-lhe vida, trazendo-o para a nossa época, e ao mesmo tempo ressaltando as qualidades artísticas do original, que muitas vezes se perdem numa tradução literal, que se ocupa apenas do sentido, mas não da forma, da arquitetura estética do poema. Além disso, o tradutor, ao escolher autores pouco conhecidos, mas de relevância para o estudo da poesia e o fazer poético, operava assim uma forma de crítica, destacando elementos que deveriam ser melhor assimilados por nós. Pound deu o exemplo ao traduzir, entre outros, poemas de Li Tai Po, que ele reuniu no livro Cathay, de 1915, fato que levou T. S. Eliot a chamar Pound de “o inventor da poesia chinesa para a nossa época”. O volume de poesia chinesa organizado e traduzido por Pound reúne 19 poemas, abrangendo um período do século 11 a.C. até o século IV d. C. e foi possível graças ao mapeamento realizado por Fenollosa, que fez a tradução preliminar linha a linha de cada poema para o inglês, além de alinhar sinônimos de cada palavra em inglês e em japonês. Pound operou a “reimaginação” desses textos em língua inglesa valendo-se não apenas do conhecimento do sentido literal como também de seui amplo domínio da linguagem poética e dos recursos técnicos disponíveis em língua inglesa[1]. Traduziu também as 305 odes da antologia clássica definida por Confúcio, poemas de trovadores provençais, como Arnaut Daniel, então quase esquecido, do italiano Guido Cavalcanti, contemporâneo de Dante, peças de teatro nô japonês e tragédias gregas, entre vários outros autores e obras. Em sua conhecida recriação de uma tragédia de Sófocles, chegou a usar o slang, gíria dos negros norte-americanos, nas falas dos coros, dando um novo sentido ao texto, em releitura contemporânea (no Brasil, experiência similar foi feita por Décio Pignatari, que em sua tradução da Balada da gorda Margô, de François Villon, poeta francês do século XV, usou a gíria urbana falada na cidade de São Paulo na segunda metade do século XX. Guilherme de Almeida, por sua vez, traduziu o francês arcaico de Villon adotando, na língua de chegada, o galego-português das cantigas trovadorescas ibéricas). Esse tipo de procedimento visa criar aproximações e diálogos com repertórios culturais diferentes, sem trair o espírito do original, mas situando-o em relação ao presente. É um modo de atualizar um texto clássico antigo, sendo fiel a seu artesanato estético – concepção que influenciou profundamente as concepções de “recriação” e “transcriação” formuladas por Augusto e Haroldo de Campos em suas obras. Poesia, critica e tradução são indissociáveis, segundo a concepção poundiana, e a partir desse princípio o grupo concretista de São Paulo desenvolveu o seu próprio projeto poético-tradutório, aprofundando o sentido da tradução como um ato de transgressão, considerando que a forma e conteúdo não podem ser separados sem implicar perda de informação estética.

 

Para Haroldo de Campos (cujos ensaios mais importantes sobre a tradução criativa foram reunidos no volume Transcriação, publicado em 2013 pela editora Perspectiva), o tradutor é co-criador e crítico na medida em que, ao escolher os textos constrói um novo texto (Make it New), e neste ponto a sua concepção de tradução se aproxima daquela de Ezra Pound. Haroldo de Campos diz que a tradução como crítica implica também uma crítica da tradução, uma vez que somente as traduções capazes de executar a reconfiguração radical do som e significados são criativas — no sentido de produtoras de significados novos e relevantes. No livro Qohélet, O-que-sabe, que reúne sua tradução poética integral do livro do Eclesiastes, do Antigo Testamento, Haroldo de Campos escreve:

 

As traduções aqui coligidas são ensaios. Não têm, de modo algum, a desmesurada ambição de restituir uma suposta “autenticidade” da língua original, nem do ponto de vista filológico, nem do ponto de vista hermenêutico. Não aspiram a repristinar nenhuma “verdade” textual. Não se nutrem de nenhuma ilusão “’purista”. Tão-somente, buscam reconfigurar uma “imagem” possível da linguagem do original, convocando, para isso, os recursos da poesia moderna, no empenho de resgatar a poeticidade do texto do fundo mortiço ou edulcorado das versões convencionais em português. Seus resultados finais devem ser avaliados em nossa língua como trabalho de recriação poética que nela se perfaz, levando-a, quando necessário, a extremar seus limites. (CAMPOS, 2004: 11-12)   

 

Como exemplo das escolhas estéticas feitas por Haroldo de Campos para a sua tradução do texto bíblico, citamos esta, nas palavras do próprio poeta-tradutor:

 

“Erra na treva” procura captar com uma assonância o efeito sonoro que perpassa em bahóshekh holêkh. Na BJ , simplesmente: “caminha nas trevas”. “Que um destino uno / a todos se destina” / shemmiqré ehad yiqré, literalmente: “Que um só destino encontrará (tocará) a todos”. Como observam LOH e BZ, miqré (destino) e yikré (encontrará) têm a mesma raíz (procedem do verbo qará). Daí a minha solução. (idem, 120) 

 

Procedimentos semelhantes foram utilizados por Haroldo de Campos em suas criativas versões da poesia de Maiakovski, em que ele procurou, com a recriação das rimas, jogos de assonância, aliteração, paronomásia, trocadilhos e outros recursos dos poemas originais, “russificar” o português (assim como no Qohélet intentou “hebraizar” a língua de chegada), conforme lemos em seu ensaio, publicado no livro A operação do texto, em que o autor paulistano expõe como traduziu o poema de Maiakovski dedicado a Iessiênin. Tal maneira de tradução é, explicitamente, uma construção crítica. Conforme Albrecht Fabri, “toda tradução é crítica” porque “nasce da deficiência da sentença”, da sua “insuficiência para valer por si mesma” (in CAMPOS, 2013: 2): o original só existe em estado de latência, para as múltiplas interpretações criativas do leitor-tradutor. A comparação entre as soluções encontradas por diferentes poetas-tradutores para um mesmo texto é reveladora não apenas de seus peculiares traços estilísticos, mas também de como eles se relacionam com a tradição literária do cânone língua de partida e da língua de chegada, numa ampla teia intertextual.

 

A tradução criativa, conforme Marcelo Tápia, percorre justamente a saga de “reinvenção de uma tradição, inserida em novo contexto” (idem, XVIII). A tradição não é um território imutável[2], mas algo vivo, suscetível de metamorfoses. Conforme Haroldo de Campos, ela “não se move apenas pela homologação: seu motor, frequentemente, é a ruptura, a quebra, a descontinuidade, a dessacralização pela leitura ao revés” (CAMPOS, 1981: 208). Em vez da reconstrução da aura de um passado para sempre perdido, distante de nosso meio e cultura, a tradução criativa toma para si a responsabilidade pela “construção de uma tradição viva” como “um ato até certo ponto usurpatório, que se rege pelas necessidades do presente de criação” (idem, 39), escreve Haroldo de Campos. Nessa aventura linguística até certo ponto fabulatória, o texto “transforma-se na ‘viagem’, e seu ponto de chegada acolhe-o de modo a participar de sua reestruturação, para a qual o presente, a releitura e a comunicação em novo espaço e em novo tempo são determinantes” (idem) Podemos pensar, aqui, no comentário de Marcelo Tápia a respeito do método tradutório de Augusto de Campos: “enfatizar a estrutura do texto e sua interação com o leitor permitirá um desapego da ideia de reconstruir um mundo passado (uma vez que este se modifica pelo mundo presente no ato da leitura e da recriação)”, o que, na opinião do autor, caminha “ao encontro do conceito de make it new” (in CAMPOS, 2013: XIX). Refabular uma cultura, um texto literário de um idioma e concepção de mundo tão distantes do universo eurocêntrico, sem dúvida, é um risco, inclusive para o texto original: segundo Derrida, em seu livro Torres de Babel, “o original se dá modificando-se, esse dom não é o de um objeto dado, ele vive e sobrevive em mutação” (DERRIDA, 2002: 38). O autor francês cita, em seguida, um adágio de Walter Benjamin: “Pois na sobrevida, que não mereceria esse nome se ela não fosse mutação e renovação do vivo, o original se modifica. Mesmo para as palavras modificadas existe ainda uma pós-maturação” (idem).


       O texto poético refabulado em outra língua e ambiente cultural, dentro dessa concepção crítico-tradutória, seria a “desconstrução e reconstrução da história” porque “traduz a tradição, reinventando-a”[3], na síntese feliz de Marcelo Tápia, proclive à concepção haroldiana (in CAMPOS, 2013: XVIII). Pensamento similar foi desenvolvido por Jorge Luis Borges no ensaio As versões homéricas, incluído no livro Discussão: “O conceito de texto definitivo não corresponde senão à religião ou ao cansaço” (BORGES, 1985: 71-72), de onde conclui: “pressupor que toda a recombinação de elementos é inferior ao seu original é supor que o rascunho X é obrigatoriamente inferior ao rascunho Y – já que não pode haver nada mais do que rascunhos” (idem). Sem rejeitar – por considerá-las inevitáveis – as omissões e ênfases que variam de uma versão para outra (no caso, traduções inglesas da Ilíada de Homero, e em especial as de Chapman, Buckley e Pope), Borges conclui: “Qual dessas numerosas versões é a fiel?, quererá saber talvez o meu leitor. Repito que nenhuma ou todas elas” (idem, 78). Para o autor do Livro de areia, “se a fidelidade tem que referir-se à imaginação de Homero, aos irrecuperáveis homens e dias que ele se representou, nenhuma delas pode ser fiel para nós” (idem). A hipótese da versão literal, centrada na pura referencialidade, é abandonada pelo autor da História universal da infâmia, que considera: “Em cada idioma, não acredito que haja sinônimos, nem sequer sei se a palavra lua é uma tradução exata da palavra inglesa moon. Possivelmente não, já que essa palavra passou por diferentes autores e cada um a escreveu diferente” (entrevista publicada na revista Gaia n. 1: 1989, 5).

 

       Citando o exemplo do pesadelo, Borges assinala a diferença de significados culturais entre o termo inglês nightmare, “que significa, no inglês antigo, ‘demônio da noite’”, e o termo francês cauchemar, que “gerou a famosa metáfora do pesadelo, le cheval noir de la nuit” (idem, 8). A analogia borgiana é reforçada por Karlheinz Stierle, para quem “o caso ideal de um significante que tenha um e apenas um significado, conforme nos ensina qualquer dicionário, praticamente inexiste” (in LIMA: 2011, 123), uma vez que “cada significante evoca, de imediato, um horizonte de significados possíveis, dentro do qual se há de descobrir o significado visado” (idem). Dessa forma, “a significação frasal é uma hipótese, que se erige sobre uma quantidade de significados correlacionados, que, por sua vez, são projetados sobre a base material dos significantes” (idem).

 

       A atividade tradutória, em consequência, não se afasta de uma certa refabulação, ou “reimaginação” – termo usado por Haroldo de Campos para se referir às suas recriações de poesia chinesa e japonesa – e o exemplo mais notório é talvez o de Edward FitzGerald, cidadão inglês do século XIX que traduziu o Rubayat de Omar Khayyam, autor persa do século XI (a palavra rubayat é o plural de rubai, quadra persa em que o primeiro, o segundo e o quarto verso rimam entre si. Essa forma breve pode ser comparada com o terceto japonês, ou haicai,  com a quadra chinesa, ou jueju, e com o poema breve coreano, o sijô, esse último traduzido no Brasil por Yun Jung Im e Alberto Marsicano no livro Sijô – poesiacanto coreana clássica. São Paulo: Iluminuras, 1994.  No Ocidente, o poema breve tem uma história que remonta ao epigrama, ao dístico e outras formas da poesia clássica grega e romana). O tema  é abordado por Borges em outro ensaio, publicado no volume Outras inquisições:

 

Aconteceu um milagre: da fortuita conjunção de um astrônomo persa que condescendeu à poesia e de um inglês excêntrico que percorre, talvez, sem entendê-los por completo, livros orientais e hispânicos, surge um extraordinário poeta, que não se parece com nenhum dos dois. Swinburne escreve que FitzGerald “deu a Omar Khayyam um lugar perpétuo entre os maiores poetas da Inglaterra”, e Chesterton, sensível ao que há de romântico e de clássico nesse livro sem par, observa que ao mesmo tempo há nele “uma melodia que escapa e uma inscrição que dura”. Alguns críticos entendem que o Omar de FitzGerald é, de fato, um poema inglês com referências persas; FitzGerald interpolou, afinou e inventou, mas seus Rubayat parecem exigir que os leiamos como persas e antigos. (BORGES, 1999: 73)

 

       FitzGerald, “amador” em cultura persa, segundo Haroldo de Campos, “não hesitou em situar-se, com desenvoltura, na polêmica dos ‘orientalistas’ a respeito da interpretação mística ou realista dos versos de amor e vinho do poeta-astrônomo dos Rubayat” (CAMPOS, 2013: 43), tomando o partido de uma interpretação laica e hedonista, em detrimento da leitura esotérica sufi, assim como fez Goethe, em seu Divã Ocidental-Oriental, na transposição criativa de versos de Hafiz (poeta também homenageado por Manuel Bandeira, na Lira dos cinquent’anos, na curiosa composição Gazal em louvor de Hafiz, que recria em português o verso monorrimo da tradição persa e árabe-andaluz). “Qualquer tradução é uma ‘aventura histórica’ e não definitiva, sobrevive em função das convenções culturais de sua época[4]”, resume Yao Feng.

 

       A tradução poética criativa, portanto, transcende a desejada identidade entre texto “original” e texto recriado, ao se materializar em um novo original, que responde às inquietações estéticas e históricas de um outro momento e cultura. A esse propósito, escreve João Alexandre Barbosa, em As ilusões da modernidade: “Traduzir significaria assim distanciar-se cada vez mais do sentido original pela modificação de um contexto básico perdido” (BARBOSA, 2005: 156). O que é possível preservar, sempre de forma parcial, nesse processo criativo, são alguns vestígios da informação estética (Max Bense), do original, sem presunção de verdade ou pureza.

 

       Conforme escreve Haroldo de Campos: “Teremos, como quer Bense, em outra língua, uma outra informação estética, autônoma, mas ambas estarão ligadas por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto linguagem, mas, como os próprios corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema” (CAMPOS, 2013: 4). Em vez da busca inalcançável de reproduzir fielmente uma realidade em outra, tão distinta em formas históricas, estéticas e culturais, teríamos a possibilidade da interpretação. Para João Alexandre Barbosa, a tradução poética não é mais encarada como a “busca do Sentido – de que se nutriu e se nutre toda a hermenêutica religiosa desde, pelo menos, Friedrich Schleiermacher – mas como produção de sentidos” (idem). Esta operação é, evidentemente, crítica: “na medida em que a tradução é vista como produção de sentidos, envolvendo o processo de interpretação, a passagem de um código a outro, seja ele qual for, exige o exercício da crítica” (idem, 157), ao que podemos acrescentar: crítica do fazer poético do passado — pela escolha de determinado autor, texto e conjunto de recursos formais utilizados — e crítica do fazer poético do presente, pela produção e circulação de um texto poético que reafirma ou questiona valores estéticos hegemônicos na criação poética e nos estudos literários da época corrente. Relembremos, a esse propósito, que o trabalho tradutório de Ezra Pound estava intimamente ligado ao seu pensamento crítico, em particular à noção de paideuma, ou “ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem ou geração possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos[5]”. Ao traduzir Jules Laforgue ou Tristan Corbière, por exemplo, havia a deliberada intenção de valorizar a linhagem “coloquial-irônica” do Simbolismo francês, numa época em que ainda predominava certa poesia confessional-decadentista. Do mesmo modo, as criativas traduções que Pound realizou da poesia chinesa (Li T’ai Po) e japonesa (Hagoromo), a partir dos estudos de Fenollosa, contribuíram para o surgimento do imagismo e da técnica de composição que o poeta norte-americano desenvolveu em seu poema longo Cantos (ou Cantares) — a montagem “ideogrâmica” de versos ou blocos de texto, obedecendo a um pensamento analógico, procedimento que exerceu profunda influência na poesia contemporânea.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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Scheila Sodré nasceu em São Paulo (SP), é poeta, professora de Língua Inglesa, graduada em Tradução e autora da plaquete de poemas Hemicrânia (Leonella, 2018). Publicou poemas na revista Zunái e nas antologias As mulheres poetas, organizada por Rubens Jardim, e Novas vozes da poesia brasileira, organizada por Claudio Daniel.

 

 


[1] É impossível não citarmos aqui o impacto que a obra de Fenollosa Os caracteres chineses como um meio para a poesia causou no pensamento, método tradutório e na própria poesia de EP. Segundo diz o autor de Cathay, “O ensaio de Fenellosa estava talvez adiantado demais em relação ao seu tempo para que fosse facilmente compreendido. Ele não proclamava seu método; estava tentando explicar o ideograma chinês como um meio de transmissão e registro do pensamento. Foi à raiz do problema, à raiz da diferença entre o que é válido no pensamento chinês e sem valor ou enganoso em uma grande parte do pensamento e da linguagem europeus” (POUND, s.d., p. 25

 

 

 

 

 

[2] A visão da tradição como espaço estático, “puro”, é questionada também por Rudolf Borchardt, em seu livro A imagem histórica da Ilíada afirma: “toda tradição está destruída. Os motivos decisivos estão sempre perdidos, inclusive quando aparentemente foram transmitidos” (in MILÁN, 2002: 74).

 

[3] “Recuperar a história”, escreve Júlio Plaza, “é estabelecer uma relação operativa entre passado-presente e futuro, já que implica duas operações simultâneas e não-antagônicas: de um lado, a apropriação da história, de outro, uma adequação à própria historicidade do presente, estratégia esta que visa não só vencer a corrosão do tempo e fazê-lo reviver, mas também visa sublinhar que as coisas somente podem voltar como diferentes.” (PLAZA, 2013: 5-6)

 

[4] BONVICINO, Régis e FENG, Yao, 2007: 138.

 

[5] POUND, 1978: 11-12.

 

2022 por Paola Schroeder, Claudio Daniel, Rita Coitinho e André Dick

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