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A Respeito das Galáxias, de Haroldo de Campos

Cláudio Rodrigues da Silva

8 de abr. de 2025

– Página do romance A Máquina de Escrever –

No início, foram as cartas de Caetano Veloso escritas no exílio de Londres e publicadas n’O Pasquim, entre setembro de 1969 à dezembro do ano seguinte, perfazendo um total de 18 missivas. Gilberto Gil e Caetano Veloso haviam desaparecido de repente da grande mídia, não escreviam mais sobre eles na imprensa, e nos programas televisivos em que eram figuras constantes pairava no ar sua dupla sombra. Soube-se depois que fizeram shows em Salvador, e mais tarde o Gil lançou o compacto com Aquele Abraço e o LP Gilberto Gil, enquanto Caetano lançou Caetano Veloso, cuja capa branca, com a assinatura do músico estampada (dizem as más línguas que imitando o chamado álbum branco dos Beatles lançado no ano anterior), foi a única até o momento sem a foto do artista. Porém, à boca miúda, aos poucos se espalhou a notícia de que eles foram presos e exilados, e moravam em Londres com suas esposas, as irmãs Dedé e Sandra Gadelha, untos com o empresário dos músicos, Guilherme Araújo, e sua esposa, na casa nº. 16 da Redesdale Street, no Chelsea, batizada como Capela Sixteena pelo poeta Haroldo de Campos, quando os visitou. Estes fatos ficaram encobertos por um talvez, que durou até a publicação de tais cartas.


Entre meus doze e treze anos de idade eu já compreendia que Caetano Veloso e Gilberto Gil não faziam apenas música, mas eram parte de um movimento que via crescer à minha volta, desde os momentos inaugurais da primeira infância, mas ainda não tinha idade para participar e mesmo compreender seu alcance e complexidade. Tudo começou com o som. Ou foi a imagem? Ouvíamos com os olhos, víamos escutando: assistíamos. Na frente do aparelho de televisão. A minha geração de meninos foi das primeiras a se aboletar na frente da TV nessas terras de cá, onde se plantando tudo dá, inclusive nossas caras bestificadas, as atenções voltadas à um único ponto em que no fundo da caverna as sombras se movem. Aquilo não era real, era mais que real, era hiper, mesmo em preto-e-branco. A televisão em todos os lares. A chegada do homem à Lua aconteceu dentro de cada sala na frente da gente. O fato histórico não foi apenas um humano aportar no satélite distante, mas tantas pessoas em todo o mundo ao mesmo tempo interligadas pelo olhar em um único fato, um único ponto, a marca dos pés de humanos impressos em solo lunar. Fazíamos parte de um grande momento, a aldeia global havia se concretizado. Será? O momento, o acontecimento, o movimento, a história que rapidamente se deslocava. E provocava barulho. O som. O rock. The Beatles. Ou tudo começou com O Pasquim, que por sua vez para mim também era mais que um jornal. Se tudo tem um começo, e se esse começo se afasta e o momento inaugural é recuado à medida que o tempo parece progredir para frente, segundo a noção comum que temos dele, o começar também se estica, deixa de ser um ponto e é um traço em movimento e, a cada novo momento, o começo dá um passo atrás. No caso em questão, começou com O Pasquim. Era um tempo de muitos começos, se via muitas coisas pela primeira vez, e este jornal me serviu de farol, de guia, de baliza ou outras metáforas do estilo. Eu começava a ler e a ouvir, começava a ver ao invés de apenas olhar, e perceber com a pele o que era invisível. Meu sexo crescia, meu corpo se cobria de pelos, pentelhos surgiam nas minhas virilhas, a penugem aveludada do meu rosto dava lugar à uma rala barba, meus mamilos se tornaram duas pedrinhas, apertadas com delícia, meu rosto diariamente era outro, minhas mãos ganhavam formas desconhecidas, minha cabeça se enchia de ideias e de besteiras, o sonho às vezes se confundia com a realidade e um fato dava um chega pra lá na vontade cada vez mais ansiosa, indo sempre adiante a explorar o espaço e o tempo que eram devidos ao meu corpo, os hormônios a mil, o momento histórico convulso, as novidades em turbilhão, de um ano para o outro se notava uma enorme diferença nos costumes, no vestir, no escutar, no que ler e assistir, ao mesmo  tempo que a televisão substituía a realidade para as massas, criando milhões de cabeças homogenias ao lhes sequestrar o senso-comum, uma coisa de importância monumental acontecia sob nossos olhos e debaixo de nossos pés, uma revolução no modo de ser em escala global, a própria noção de uma escala global até então não atingida dava o tom da monumentalidade da coisa, e eu, que adolescia, às vezes com a percepção de ser aplastado pelos acontecimentos, precisava de um guia, (não de uma doutrina), e um jornal como aquele em um momento de movimento de contrarrevolução, que foi aqui no Brasil o advento do AI 5, era principalmente uma luz. Bem, não uma luz para segui-la, ou ir em direção a ela e chamuscar as asas, mas para iluminar em torno e saber onde pisar, e a área de ação e conhecimento a qual mais me interessava saber onde pisar naquele tempo era o movimento da Contracultura, e as páginas centrais do pasquim em questão, sob o título de Underground, dirigidas pelo jornalista Luis Carlos Maciel, ofereciam lanternas e mapas.


Em uma tarde, cheguei em casa da aula com um número do Pasquim nas mãos, sem saber que dentro havia uma bomba semiótica que deixaria marcas em meu entendimento e sensibilidade, e influenciaria para sempre minha forma de ver, interpretar e atuar no mundo (não de imediato, obviamente). Na capa do jornal havia uma foto do Caetano Veloso e a expectativa de algo nas manchetes. E foi como um tapa abrir a página e ler a primeira carta. Durante sua leitura eu tive a certeza de que o Caetano a escreveu para mim, e que esse mim eram muitos, muitas gerações juntas, uma multidão, um povo, muitas consciências que dão forma à uma comunidade que o poeta reunia através da palavra. À primeira leitura fui atraído pela forma/conteúdo em ação, (não a forma em detrimento do conteúdo, como não cansam de repetir os que não compreendem que forma é conteúdo), aquilo sem o qual apenas o conteúdo me atingiria em um texto tipo normal, a prisão entrevista entre palavras, a palavra exílio nas entrelinhas, a amargura, a dor, a ironia. O texto me dizia mais do que estava escrito. O texto me dizia de si próprio. O texto se dizia a partir da própria forma. O conteúdo do texto era seu próprio corpo. Feito de palavras. Enquanto isso, o piano preparado de John Cage, pra lá de bem-temperado, arrasta uma melodia por mais de meia-hora na radiola quando folheio os restos dos Pasquins mau-guardados e reencontro as cartas de Caetano Veloso do exílio à nós brasileiros, e uma dor como de saudade, saudade do horror de outrora, que não cura a dor de agora, faz queimar o coração enquanto releio. As coisas vinham juntas, hoje isso faz sentido, eu monto as peças e formo um quadro cubista. Ano após ano a década de 1960 se construiu como pedra-angular para o sonho dos anos futuros, para uma era futura que foi abortada. A guerra-fria o matou? O sonho morto é o futuro daquele tempo, que é agora. É o que nos restou. O impacto causado por estas cartas provocou em mim a necessidade de escrever, e fizeram meu texto como é. Elas foram um tiro certeiro, um murro no estômago, foram todo um livro, todos os livros juntos, uma discografia completa. Elas me indicaram onde eu estava no tempo e no espaço, de que país eu vinha e em que momento me encontrava, permitindo que encadeasse informações ainda soltas no espaço/tempo escorregadio em que vivia (em que se vive), formando a base de um conhecimento.


Algumas frases:

A ipanemia e uma doença fértil.

Eu gosto de Paris porque é como se de repente Recife virasse o Rio de Janeiro. Eu sofro muito. (11 a 18/9/69)

A felicidade é uma arma quente.

A estranha paz dessa juventude dá medo. Parece que nós todos vamos morrer em breve. (18 a 20/9/69)

Hoje quando eu acordei eu dei de cara com a coisa mais feia que já vi na minha vida. Essa coisa era a minha cara.

(...)

Acho que uma capa de revista pode ser como um espelho para um homem famoso. Quando um homem vê a sua cara no espelho ele vê objetivamente em que estado a vida o deixou.

(...)

Eu atravesso as ruas sem medo, pois eu sei que eles são educados e deixam caminho livre para eu passar. Mas eu não estou aqui e não tenho nada com isso.

(...)

Talvez alguns caras no Brasil tenham querido me aniquilar; talvez tudo tenha acontecido por acaso. Mas eu agora quero dizer aquele abraço a quem quer que tenha querido me aniquilar porque o conseguiu. Gilberto Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço para esses caras. Não muito merecido porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar. Mas virão outros. Nós estamos mortos.

Ele está mais vivo do que nós. (mais tarde se soube que se referia à Carlos Marighella) (27/11 a 2/12/69)

(...)

deus, brotas, deus, circuladô de fulô do poeta dos campos. (18 a 24/06/70)

(...)

Eu quero a proesia. Eu quero as galáxias do poeta heraldo de los campos. Quem não comunica dá a dica. Eu quero a proesia. I wanna go back to bahia. Ou melhor: I wanna to go back to bahia. (25/11 a 01/12/70)


As cartas eram a cara do semblante triste do compositor na capa do álbum Caetano Veloso, de 1971, gravado no exilio, em que foi lançada a canção London, London. O retrato do artista exilado. O pianista cospe sangue no teclado. A máquina de escrever matraca mais uma palavra. Meus dedos batucam nas teclas e os tipos certeiros tatuam a pele da página em branco. A cara desolada do poeta. A curva preta na garganta. Os olhos veem um sol quadrado. Ângulos por todos os lados. O disco triste. Do fundo de um poço, o calabouço, um coração, a luz vermelha pulsa. Na época em que descobri este álbum, ao andar pelas ruas de madrugada com meus amigos pelo bairro em que morava durante as primeiras noites fugidas de casa numa tentativa de boemia antes da hora nas vagabundagens das turmas de adolescentes que enfrentavam as madrugadas sentados nas calçadas das esquinas daquela época, a cidade dividida entre gangs de otários que brigavam entre si por esporte, na idade pré-xarope usado para fins recreativos, costumávamos cantar como alucinados, bem alto o refrão I feel a little more blue and then, I feel a little more blue and then, da faixa A Little More Blue, sem saber que ficaríamos bem mais tristes agora, passados cinco, seis anos. Soa triste a capa amargurada, o namoro com a morte, a serpente-emplumada, a flor de Iansã, Maria Bethânia, a Londres parida como uma loba, a cidade como sombra, o calabouço de boca aberta engole um homem e regurgita um caroço, uma noz de negror que esconde o sol de um outro dia, a esperança de um sonho futuro que não veio, que seria o agora em que eu remexo meus guardados neste quarto sem espessura e a lenta melodia de uma nota só como lesma do piano preparado de John Cage me ajuda a montar uma estrutura da qual faz parte meu corpo. Marinheiro só. Cadê meu sol dourado? Cadê as coisas do meu país? Triste. Foi muito triste ouvir isso naquela época, nem tão remota assim, mas que parece agora outro país. Hoje eu não choro. Nunca mais que eu choro isso. Tudo meio blusado, uma espécie de baião que dá saudade de um Recôncavo que nem Caetano o viveu, e está num sonho de pratos batidos e pés no mesmo ritmo, de um outrora que nos pariu, a casa-grande-senzala que somos nós como para sempre em uma vertigem de looping ao desaparecer em um vórtice. Quando vamos nos livrar disso?  Essa doença? Essa colônia? John Cage se interpõe ao discurso, um arrulho de notas do piano invisível que habita a radiola dessa madrugada quente do meu quarto, se interpõe ao livro que escrevo e que não se acaba nunca, se interpõe à máquina de escrever, às salas das morgues, aos esquartejamentos. Esta máquina já me escreve, sou letra sua, a gota de suor escorre preta como uma letra e pinga mais uma nota na página, uma rasura, um signo.


E o que as Galáxias de Haroldo de Campos têm com isso? Eu não havia ainda tomado conhecimento delas ainda. Eu não sabia de nada. Távola-rasa, minha mente era um espaço fértil a novas constelações. Eu não sabia ainda que o poeta Haroldo de Campos esteve na casa dos músicos durante o exílio em Londres, que ao sair desta visita, o automóvel em que estava se envolveu em um acidente de trânsito, quando o poeta se feriu, por isso passou alguns dias hospedado com os músicos, e que durante sua estadia entre eles leu para a seleta assistência os manuscritos de suas Galáxias. Também tem a ver com o fato de que, durante a prisão de quase toda a redação d’O Pasquim, ainda em 1969, os milicos tosquiaram à força a juba do jornalista Luis Carlos Maciel, editor da página Underground, justo a marca distintiva de pertencimento de uma tribo que tinha tudo para mudar o mundo, mas não teve a menor chance, e em um documento que tiveram de lavrar durante a prisão em que os militares exigiram dos prisioneiros que se auto delatassem como conspiradores contra o regime militar, o jornalista em questão, de próprio punho, reclamou da arbitrariedade cometida contra ele, o que granjeou admiração de Sérgio Cabral, então editor do jornal, que lhe prometeu o que pedisse dentro do âmbito do hebdomadário, e o sonho dele era ter um jornal de contracultura, ao que o outro aceitou, nascendo assim o Flor do Mal, em que foram publicadas transcrições de algumas Heliotapes, fitas cassete que o artista-plástico Hélio Oiticica há uma década produzia, contendo uma longa entrevista com o poeta Haroldo de Campos no Hotel Chelsea em Nova York, em 1971, nas quais, enquanto dissertavam sobre a equivalência das diferenças entre Tropicália e Tropicalismo e Poesia Concreta e Concretismo, sobre a tradução literária como obra de arte, sobre a importância da abordagem sincrônica da obra de arte, sobre o cinema de Júlio Bressane e o filme Matou a Família e Foi ao Cinema, o poeta falou sobre o projeto de um livro-objeto que vinha trabalhando desde 1963, um work in progress, um livro de viagem composto por cem páginas não encadernadas, e intercambiáveis, sendo que apenas a primeira e a última seriam fixas, cobertas por um texto sem pontuação, sem a separação de parágrafos e  numeração de página, do qual foram publicados trechos na revista Invenção a partir de 1964, cujo nome, Galáxias, ao ler esta entrevista, logo me remeteu às cartas de Caetano Veloso no exílio.


 Sem acesso à revista Invenção, tive de me contentar com trechos pingados aqui e ali em jornais e revistas que cobriam o cenário da contracultura no Brasil e no exterior, e os colecionei com avidez: Naviloca, Pólen, Código, Qorpo Estranho. Assim tive o encontro (como marcado) com o texto, a escrita, a palavra constelada em um móbile que se abre em todos os sentidos, um texto que tateia, fareja, degusta, escuta, vê, intui, tentativa de epifania, segundo o próprio texto, as Galáxias do poeta Haroldo de Campos, que o Caetano Veloso definiu como proesia. A língua em transe, a terra treme. E blocos de coisas, conceitos e ideias se encaixaram dando espessura ao momento/acontecimento do descobrimento do autor e sua obra. Foi mais um passo para a compreensão do espaço e o tempo que se cruzavam em meu corpo, se é que essa ideia se apreende e não é criado um sonho no qual se acredita, e é só acordar desse sonho para ser cravado por tipos como punhaladas e se aprender de vez que não se é nada além de texto, e se ninguém o ler, se é ninguém, e nunca vai ser. Eu só existo sob seus olhos e apenas me manifesto sob seu escrutínio, meu caro, presumível, leitor! Como um deus, é a graça de teu olhar que me dá presença. Brilha o sol do teu olhar a letra opaca gravada na página em que para sempre estou atado. Sem brilho próprio, eu só existo na leitura. Um discurso ininterrupto, uma fala-texto-canto-conto-caixa-de-Pandora, flor que se descabela que eu tento espelhar aqui nesses meus cacos diários diante dela, que impera, onde unicamente se é, dona de minhas palavras, senhora de meus dedos e neurônios: a máquina de escrever. Ela não poderia faltar aqui, os dentes cariados de seus tipos mordem para todos os lados. Arranca nacos de carne de textos alheios.


Escrevo este texto, maltrato meus dedos no teclado desta máquina de escrever, faço um mergulho no tempo rememorando sentimentos e acontecimentos, toco um ponto fulcral da minha história, tiro do fundo do guarda-roupa a múmia escondida, encontro os restos dos Pasquins e do Flor do Mal que sobraram, refaço um caminho de recuos no tempo à procura de origens, coloco um John Cage na radiola e deixo o som  do piano se esticar enquanto remexo meus guardados sentado num canto da cama de costas para a janela, cega à esta hora da madrugada, porque à tarde o meu amigo João me presenteou com o livro, Xadrez de Estrelas – Percurso Textual 1949-1974, do estupendo poeta Haroldo de Campos lançado há três anos, em que foram publicadas nas últimas páginas todas as Galáxias.

2022 por Paola Schroeder, Claudio Daniel, Rita Coitinho e André Dick

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