top of page

Conhecer Guido Crepax

Seraphim Pietroforte

8 de abr. de 2025

"Hoje sou sexagenário e permaneço lendo, entusiasticamente, Guido Crepax... "

A primeira vez que li Guido Crepax eu tinha 18 anos de idade e me lembro muito bem da história. Naquela época, por volta de 1982, quem vivia na cidade de São Paulo conheceu um ambiente cultural algo distinto dos dias atuais... sinto saudades dos tempos em que os países europeus mantinham projetos culturais distantes da indústria cultural estadunidense. Assisti a, ainda nos cinemas da Avenida Paulista, as estreias de filmes autorais de Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Liliana Cavani, Carlos Saura, Ingmar Bergman, Werner Herzog ou Rainer Fassbinder. Também sinto falta das livrarias, principalmente daquelas acolhedoras onde se fazia amizade com os vendedores, por suas vezes, conhecedores de livros, álbuns de música – dos discos aos CDs – e de histórias em quadrinhos; entre elas, nada como a antiga Livraria Cultura, quando ainda era uma pequena loja no Conjunto Nacional, e a incomparável Livraria do Bexiga. Pois bem, vieram de lá minhas primeiras HQs de Guido Crepax, quer dizer, Valentina e Anita, ambas editadas, nos anos 1980, pela LPM, ao lado de Will Eisner, Allan Dicker, Chester Gould e George Pichard, entre outros clássicos da linguagem dos quadrinhos.     


Hoje sou sexagenário e permaneço lendo, entusiasticamente, Guido Crepax... desde a adolescência testemunho, em suas HQs, configurações do imaginário erótico não apenas meus, mas de minha geração. Não me refiro a algo sofisticado como as reflexões sobre Anita e sua relação sexual com a televisão; detenho-me, isto sim, na tematização, mediante figuras, dos imaginários LGBT, BDSM e demais fetiches, tais quais podolatria, shibari, roupas de couro, fantasias inspiradas em animais, sexo grupal etc. Em Crepax, contudo, semelhantemente aos verdadeiros artistas dos quadrinhos, como o já mencionado Pichard, não se trata apenas de significar, mediante desenhos e narrativas, passagens picantes do cotidiano sexual daqueles com mais imaginação, com vistas ao onanismo... Crepax, Pichard, Franco Saudelli, Magnus e Alex Varenne não expressam apenas sensualidade, mas as redes de relações em que o erotismo surge, flui e se alastra. Dessa perspectiva, portanto, detenho-me em três aspectos de sua arte: (1) a temática fetichista e BDSM; (2) as personagens; (3) o virtuosismo do traço.


Em regra, o universo dos super-heróis, das HQs alternativas às convencionais, encontra-se permeado pelo erotismo, dos corpos sob uniformes justos dos X-Men ao sexo quase explícito do casal gay Apolo e Meia-Noite, do Stormwatch; todavia, o foco, nas histórias de super-heróis, recai na trama dos mocinhos contra os vilões e, na maioria dos enredos, as ideologias políticas suplantam as eróticas. Em Valentina, contudo, muito se distingue: (1) seu namorado, Philip Rembrandt, o super-herói Neutron, quem possui poderes paranormais, não protagoniza as aventuras, cujo papel principal cabe a Valentina; (2) ela, por sua vez, não depende do namorado nem trabalha para ele, pois vive como fotógrafa de moda, emancipando-se; (3) ambos firmam uma relação aberta; (4) a sexualidade não surge subordinada a ou eventualmente na narrativa, mas orienta a história, dando-lhe coerência; (5) por fim, não se trata apenas da sexualidade dita heteronormativa – predominante no gênero super-herói –, expressando-se, isto sim, o erotismo em plenitude mediante variadas manifestações. Ademais, vale insistir, Crepax não externa apenas os sujeitos eróticos, multiplicando-os além dos papeis convencionais, persistindo, principalmente, em rituais e em alegorias, tais quais as práticas BDSM e as simbologias fetichistas.   


Isso posto, o autor dispõe as personagens nessa semiologia, enriquecidas por suas próprias características e por dialogar com figuras da história da arte, em especial, da literatura. Não se trata somente, vale insistir, de dar vida a pessoas interessantíssimas mediante a complexificação de seus desejos e personalidades, capazes de impulsioná-las em aventuras surpreendentes, mas de estender tal fascínio aos momentos, cenários e demais personagens envolvidas. Dessa forma, Valentina se encontra com habitantes das profundezas da Terra, piratas, gangsters... Bianca, por sua vez, quando vai ao dentista, o doutor se parece com Edgar Allan Poe, numa clara alusão ao conto Berenice, possuindo, no consultório, um ajudante orangotango, remetendo, dessa vez, a Os crimes da Rua Morgue. Assim, nessa rede de relações com a literatura, Crepax transcriou, para a linguagem da HQ, clássicos do terror e do erotismo, não raramente explorando as articulações entre ambos os gêneros literários; nesse tópico, remetemos o leitor às transcriações Drácula, Frankenstein, O médico e o monstro, Justine, A vênus das peles e História de O. Ademais, Crepax não se limita a ilustrar os romances com desenhos, interferindo na trama; em O médico e o monstro, as orgias do senhor Hyde, discretamente sugeridas por Robert Lou Stevenson, explicitam-se em imagens vivazes, enquanto, no final de A vênus das peles, Severino, surpreendentemente, consulta-se com Sigmund Freud.


Por fim, o virtuosismo dos traços; para tanto, o melhor trabalho para verificar isso é Valentina no metrô. O enredo se divide em duas partes: na primeira, Valentina, retornando para casa de metrô, relaciona-se com gangsters, destacamentos de soldados, rinocerontes, dinossauros... permanecendo, dessa forma, fiel ao estilo de suas aventuras; na segunda parte, ainda no metrô, ela conhece personagens clássicas das histórias em quadrinhos, mas não apenas isso... ao se referir à personagens alheias, a citação não se limita às figuras, abrangendo, precisamente, uma emulação dos traços característicos de cada autor mencionado, revelando-se, então, toda a genialidade de Crepax. Eis, portanto, as alusões, com os autores seguidos pelas personagens, com as quais Valentina, em regra, termina fazendo sexo: (1) Ângela e Luciana Giussani – Diabolik; (2) Wolinski e Pichard – Paulette; (3) Hugo Pratt – Corto Maltese; (4) Jean-Claude Forrest – Barbarela; (5) Alex Raymond – Flash Gordon; (6) Lee Falk – Mandraque e Fantasma; (7) Chester Gould – Dick Tracy; (8) Stan Lee e Jack Kirby – Quarteto Fantástico; (9) Harold Foster – Principe Valente; (10) Milton Caniff – Terry e os piratas; (11) Burne Hogarth – Tarzan; (12) Guy Peellaert – Pravda; (13) John Willie – Gwendoline; (14) Enric Sio – Mara; (15) Alberto Breccia – Mort Cinder; (16) Windsor Mc Cay – Pequeno Nemo.


Para concluir, vale repetir que o erotismo, em Crepax, deixa de ser apenas referência, a partir da qual ele desenvolve a metalinguagem, para se definir, isto sim, em função dela, revelando, com clareza, o quanto o erotismo se distancia do sexo, englobando-o com as dimensões da arte e do imaginário humanos. Nesse aspecto, seu trabalho é revolucionário, principalmente em culturas dominadas pela identificação simplista em erotismo e sexualidade, fadadas e reproduzir ideologias moralistas e puritanas, ou seja, próximas do fascismo e de intolerâncias religiosas.    

 

 

São Paulo, 11 de março de 2025

 

 

 

 

2022 por Paola Schroeder, Claudio Daniel, Rita Coitinho e André Dick

bottom of page