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Havia um escritor de Cardiff

Dirce Waltrick do Amarante

2 de abr. de 2023

"(...) parece-me que um determinado grupo estaria tentando esmagar não só certos textos, mas também a autonomia dos leitores em geral."

Cecília Meireles (1901 -1964) costumava afirmar que depois de nos tornarmos adultos o mundo das crianças se torna completamente desconhecido para nós. Essa frase pode significar muito na discussão sobre a adaptação (ou censura) do trabalho de Roald Dahl, autor de James e Pêssego Gigante, A Fantástica Fábrica de Chocolates entre outros, feita principalmente por pessoas maduras tentando adivinhar o que se passa na mente dos jovens leitores. Segundo elas, as crianças são muito sensíveis a alguns termos e descrições utilizados pelo autor.


Em primeiro lugar, vale lembrar que nunca sabemos como um livro será lido, pois os leitores têm abordagens e interpretações diferentes, dependendo de sua biografia, que, nesse caso, engloba o repertório estético, cultural, social etc. do leitor, como bem pontua, por exemplo, Giorgio Agamben. Em segundo lugar, é difícil acreditar que, na Inglaterra, berço de Lewis Carroll, as pessoas defendam esse tipo de “adaptação” acreditando conhecer o outro. Elas parecem não haver aprendido nada lendo Alice no País das Maravilhas, do mencionado escritor. Nesse livro, quando a Lagarta pergunta à menina Alice quem é ela, a menina responde: "Eu sabia quem eu era esta manhã, mas eu mudei algumas vezes desde então". Se não conhecemos a nós mesmos, pois estamos sempre mudando, como queremos conhecer os outros?


Não seria mais profícuo explicar em que contexto político e social a obra de Dahl foi escrita? No Brasil, essa questão tem sido bastante debatida com relação à obra de vários autores, como Monteiro Lobato, por exemplo, acusado frequentemente de racista, o que ele de fato é. Ainda que não se tenha chegado a nenhuma conclusão sobre os direitos dos chamados “leitores sensíveis”, a discussão do tema em si é importante e talvez devesse estar incluída nos paratextos das novas edições não modificadas das obras desses autores de outros séculos cujas ideias soam hoje inadmissíveis.   


No contexto inglês, se a tendência for a revisão de textos visando torná-los menos controversos, logo terão de adaptar também a obra escrita especialmente para crianças de Edward Lear, um dos pais da literatura nonsense inglesa. A literatura nonsense, vale lembrar, pode ser bastante violenta e assustadora: pessoas se agridem verbal ou fisicamente em uma eterna luta entre o indivíduo e a sociedade.  


Quando Lear escreveu seus limeriques (costumo aportuguesar a grafia limericks), que são poemas curtos de 4 ou 5 versos conforme disposição gráfica, o sucesso foi enorme entre os pequenos. O escritor os publicou primeiramente em Um Livro de Nonsense (1846), obra que assinou usando seu próprio nome e não com um pseudônimo, como era de praxe entre os escritores, uma vez que livros para crianças eram considerados uma literatura menor. Edward Lear foi, portanto, o primeiro autor para crianças a se revelar para os leitores. Embora os limeriques não tenham sido uma invenção do escritor, eles se tornaram conhecidos graças a ele.


Apesar de terem sido escritos para crianças, alguns limeriques são particularmente violentos, como já afirmei. Eis um exemplo:


Havia um velho da República Democrática do Congo,


            Que dia e noite, noite e dia, batucava um sonoro gongo;


Mas eles gritaram: “Senhor!


            Isso é um verdadeiro horror”.


Com o gongo esmagaram o velho da República Democrática do Congo


Nessa discussão sobre a recente adaptação da obra de Dahl e de outros escritores, motivada pela reação negativa de certos “leitores sensíveis”, parece-me que um determinado grupo estaria tentando esmagar não só certos textos, mas também a autonomia dos leitores em geral.




 


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