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HERMANN HESSE & A LITERATURA CONTRACULTURAL

Patrícia Marcondes de Barros

23 de fev. de 2025

Hermann Hesse foi um grande inspirador da juventude contracultural, especialmente entre aqueles que buscavam novas formas de existência.

Quem escuta Steppenwolf e o hino da geração das estradas Born to be Wild nem imagina que o nome da banda foi inspirado no romance O Lobo da Estepe (Der Steppenwolf), de Hermann Hesse (1877-1962). Temas como identidade e o desejo de liberdade ressoam com a contracultura dos anos 1960 e com o espírito rebelde do rock:

I like smoke and lightning

Eu gosto de fumaça e relâmpagos

Heavy metal thunder

Trovão de metal pesado

Racin' with the Wind

Correndo com o vento

And the feelin' that I'm under

E a sensação que me envolve

Yeah, darlin', go and make it happen

Sim, querida, vá e faça acontecer

Take the world in a love embrace

Abrace o mundo com amor

 

Hermann Hesse foi um grande inspirador da juventude contracultural, especialmente entre aqueles que buscavam novas formas de existência. Nascido em 1877, na Alemanha (Calw), rejeitou o moralismo burguês e encontrou na filosofia oriental um caminho para o autoconhecimento. Sua viagem à Índia transformou sua visão espiritual, inspirando obras como Sidarta (1922), que retrata a busca pela iluminação (satori) e reflete valores do zen, como a simplicidade e o desapego:

 

Um único objetivo surgia diante de Sidarta; o objetivo de tornar – se vazio, vazio de sede, vazio de desejos, vazio de sonhos, vazio de alegria e de pesar. Exterminar – se distanciando – se de si mesmo; cessar de ser um eu; encontrar sossego, após ter evacuado o coração; abrir – se ao milagre, com o pensamento desindividualizado — eis o que era o seu propósito (1974, p.14).

 

Desde seus primeiros romances, Hesse aprofunda a tensão entre o indivíduo e a sociedade, explorando o mundo interior como forma de resistência às imposições externas. Em Peter Camenzind (1904), sua primeira novela, apresenta a trajetória de um jovem poeta que busca realização artística e autoconhecimento, rompendo com as convenções do mundo burguês. Na introdução Hesse escreve: “No princípio era o mito. Deus, em sua busca pela expressão, investiu a alma de hindus, gregos e alemães com poesia, e continua diariamente derramando poesia na alma de cada criança". Já em Demian (1919), aprofunda o processo de individuação e a descoberta do eu verdadeiro, incorporando elementos da psicologia junguiana para representar a luta entre a conformidade e a emancipação espiritual.

 

Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que o meu sangue murmura em mim. Não é agradável a minha história, não é suave e harmoniosa como as histórias inventadas; sabe a insensatez e a confusão, a loucura e o sonho, como a vida de todos os homens que já não querem mais mentir a si mesmos.


A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros, mais claramente, cada qual como pode. Todos levam consigo, até o fim, viscosidades e cascas de ovo de um mundo primitivo (1982, p.20).

 

Seu pensamento dialoga intrinsecamente com a ideia de "existência autêntica", um conceito filosófico central no existencialismo, especialmente em autores como Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre. A existência autêntica se opõe à vida inautêntica, na qual o indivíduo simplesmente segue normas sociais e expectativas externas, sem refletir sobre suas próprias escolhas e valores. Para Sartre, a autenticidade envolve assumir a liberdade e a responsabilidade sobre sua própria existência, sem se refugiar em desculpas ou convenções impostas. Já em Heidegger, ser autêntico significa reconhecer a finitude da vida e viver de forma consciente, em harmonia com seu próprio ser-no-mundo. Essas ideias inspiraram inúmeros leitores a transformarem suas vidas, promovendo valores como harmonia com a natureza, desapego e transcendência do mundo essencialmente material.


Dos beats aos hippies dos anos 70, a obra de Hesse influenciou escritores como Jack Kerouac e Allen Ginsberg, que viam nele uma alternativa ao conformismo da sociedade americana e seu American way of life, modelo de vida capitalista que se espraiou pelo Ocidente no mundo pós-guerra.


Em Os Vagabundos Iluminados (The Dharma Bums, 1958), por exemplo, Kerouac narra às experiências de Ray Smith (seu alter ego) e Japhy Ryder (baseado em Gary Snyder), que mergulham na meditação zen, no ascetismo e na conexão espiritual com a natureza. O livro é um tributo à busca espiritual, inspirado por conceitos como simplicidade e desapego:

 

[...] O Oriente e o Ocidente se encontram de qualquer maneira. Pense na maravilhosa revolução mundial que vai acontecer quando o Oriente finalmente encontrar o Ocidente, e são caras como nós que podem dar início a essa coisa. tenho a visão de uma grande revolução de mochilas, milhares ou até mesmo milhões de jovens americanos vagando por aí com mochilas nas costas, subindo montanhas para rezar, fazendo as crianças rirem e deixando os velhos contentes, deixando meninas alegres e moças ainda mais alegres, todos esses zen-lunáticos que ficam aí escrevendo poemas que aparecem na cabeça deles sem razão nenhuma (2004, p. 208).

 

Já Ginsberg, ao se iniciar na meditação, passou a capturar em seus poemas a prática contemplativa e viver o instante intensamente. Em Howl (1956), expressa um anseio espiritual associado à busca de transcendência presente no zen. A obra aborda o sofrimento humano na modernidade, da vida das pessoas anônimas nas grandes cidades, de maneira aberta e crua, ressoando com a ideia budista de dukkha (insatisfação):

 

Eu vi as mentes mais brilhantes da minha geração destruídas pela loucura, famintas histéricas nuas, a arrastarem‐se na aurora pelas ruas de negros em busca de uma dose feroz, gingões de angélicas cabeças ardendo pelo velho contato celeste com o dínamo estelar na maquinaria da noite, que de miséria e andrajos e olhos cavos e alucinados se sentavam a fumar na penumbra sobrenatural de quartos de águas frias flutuando pelos cumes das cidades contemplando o jazz [...] (2016, p.25).

 

Dentro desse espírito rebelde, O Lobo da Estepe (1927) se tornou um manifesto literário para aqueles que se sentiam marginalizados pelas normas sociais. A narrativa de Harry Haller, dividido entre seu lado "humano" e seu lado "lobo", reflete a alienação do indivíduo na sociedade industrializada e a busca por uma existência autêntica, integradora.

 

Você tem andado frequentemente desgostoso da vida e com ânsias de deixá-la, não é verdade? Tem ansiado abandonar este tempo, este mundo, esta realidade, e entrar numa outra realidade que lhe seja mais adequada, num mundo intemporal. (…) Você já sabe onde se oculta esse outro mundo, já sabe que esse outro mundo que busca é a sua própria alma. Só em seu próprio interior vive aquela outra realidade que anseia. nada lhe posso dar que já não exista em você mesmo (…). Nada lhe posso dar a não ser a oportunidade, o impulso, a chave (2020, p. 154-156).

 

Nos anos 1960, a literatura de Hesse foi também frequentemente associada às experiências psicodélicas, formas de desterritorialização frente a um mundo em ruínas. Muitos leitores interpretavam suas narrativas de iluminação como metáforas para as jornadas proporcionadas pelo uso de LSD e outras substâncias, algo que Timothy Leary (“o papa do LSD”) chegou a mencionar em suas obras e palestras. Na obra Flashbacks: surfando no caos (1999), destaca a importância de Hesse:

 

[...] O pacifismo de Hesse, em meio ao crescente autoritarismo alemão, obrigou-o a fugir para a Suíça, no início da Primeira Guerra Mundial. No exílio, suas obras foram ficando cada vez mais transcendentais. Sua capacidade de construir uma prosa de realidades múltiplas aparece em Sidarta, O Lobo da Estepe e Viagem ao Oriente. Magister Ludi, um trabalho simbólico monumental, retrata uma sociedade pudica de matemáticos, artistas e filósofos suíços, que resume todo o conhecimento no “jogo das contas de vidro”. Essa alegoria lhe valeu o prêmio Nobel em 1946 (1999, p.272).

 

Essa conexão com o psicodelismo fortaleceu ainda mais sua presença nos círculos contraculturais, onde suas obras eram frequentemente recomendadas como leituras essenciais para a expansão da consciência.


O legado de Hermann Hesse transcende seu tempo e não se esgota. Sua literatura continua a inspirar gerações que buscam significado, profundidade e uma compreensão de si e da existência. No entanto, reduzi-lo a um símbolo da contracultura ou da espiritualidade alternativa seria insuficiente. Sua obra é vasta, repleta de nuances filosóficas, psicológicas e estéticas escrita em um período turbulento da história, atravessando as duas guerras mundiais. Sua obra reflete então os dilemas e transformações desse contexto, abordando as crises individuais e coletivas que marcaram a primeira metade do século XX.


Hesse é um autor que se reinventa a cada leitura, suas narrativas abrem múltiplos caminhos interpretativos e não se esgotam em um único sentido. São muitas as obras que aqui não foram citadas. Entre a busca espiritual, a crítica social e a investigação profunda da psique humana, sua literatura segue como um convite permanente à reflexão e ao autoconhecimento. Como ele escreveu: "Sempre é bom termos consciência de que dentro de nós há alguém que tudo sabe."

 

Obras citadas:

KEROUAC, Jack. Vagabundos Iluminados. L&PM Pocket, 2004.

GINSBERG, Allen. Uivo, Kadish e outros poemas. L&PM, 2016.

HESSE, Herman. Peter Camenzind. Trad. Myriam Moraes Spiritus. São Paulo: Brasiliense, 1972.

HESSE, Hermann. Sidarta. Civilização Brasileira, 1974.

HESSE, Herman. Demian. Tradução Ivo Barroso. Record,1982.

HESSE, Hermann. O Lobo da estepe. Record, 2020.

LEARY, Timothy. Flashbacks: Surfando no Caos. Beca, 1999.

 

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Patrícia Marcondes de Barros é professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. Doutora em História (UNESP) e em Estudos Literários (UEL). Pesquisadora da contracultura brasileira e da literatura marginal a

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