
Dirce Waltrick do Amarante
9 de nov. de 2025
"No caso da tradução, é possível solicitar que ela traduza poemas, por exemplo, preservando rimas, ritmo, repetições de palavras, entre outros elementos. O tradutor humano orienta a máquina para que ela execute aquilo que ele deseja, aquilo que considera necessário. Ele continua no comando."
Há muito tempo a máquina vem assombrando os tradutores. Em A máquina de traduzir, artigo publicado no Diário de Notícias em 29 de janeiro de 1956 e, mais tarde, incluído no livro Escola de Tradutores, o tradutor, ensaísta, linguista e professor húngaro naturalizado brasileiro Paulo Rónai se questionava: “Será que, depois de tantas outras profissões, a modesta casta dos tradutores se veria também na obrigação de enfrentar a terrível concorrência da Máquina? Ao que parece, a mecanização chegou a atingir o cantinho onde esses humildes faquires da inteligência se entregavam tranquilos a inocentes exercícios de malabarismo verbal”.
Até essa data, 1956, as “traduções realmente literárias” não enfrentavam nenhuma ameaça real, pois, como afirmava Rónai, elas continuariam sendo realizadas por tradutores humanos. Já sobre a tradução de textos de caráter técnico, o linguista não demonstrava o mesmo otimismo: “não tenho a menor dúvida: daqui a alguns anos poderão ser vertidos eletronicamente com rapidez jamais alcançada pelos cérebros da massa cinzenta”.
Hoje muita coisa mudou. As inteligências artificiais estão se tornando cada vez mais sofisticadas, chegando a impressionar até escritores e tradutores renomados, como o ficcionista angolano José Eduardo Agualusa. Em sua coluna no jornal O Globo, publicada em 1º de março deste ano, ele relata que começou a experimentar os modelos de inteligência artificial para a criação de haicais: “No início”, diz ele, “achei os resultados ridículos e decepcionantes. Isso começou a mudar a partir do momento em que ganhei intimidade com a ferramenta e a trouxe para o meu universo. Os resultados também costumam ser mais interessantes se as demandas forem ao mesmo tempo precisas e inusitadas”.
O sucesso dessa “parceria” depende, portanto, do diálogo que o humano estabelece com a máquina. No caso da tradução, é possível solicitar que ela traduza poemas, por exemplo, preservando rimas, ritmo, repetições de palavras, entre outros elementos. O tradutor humano orienta a máquina para que ela execute aquilo que ele deseja, aquilo que considera necessário. Ele continua no comando.
O fato é que a máquina apresenta sempre uma primeira proposta tradutória. O processo dela é o mesmo do tradutor humano que traduz, retoma a tradução e vai lapidando seu trabalho até chegar à versão que considera a melhor naquele momento. Vale lembrar que nenhum texto nasce pronto na cabeça do escritor nem na do tradutor. Uma composição literária é fruto de uma longa confusão de rascunhos, como diria o poeta russo Ósip Mandelstam. Então, por que o texto traduzido haveria de nascer pronto na primeira tentativa da máquina? Contudo, a diferença entre o tradutor e a máquina de traduzir é que a máquina não revisa por conta própria, ela precisa ser instigada por um humano para seguir no processo de revisão.
Essa parceria entre homem e máquina parece apontar para o futuro. Mas será mesmo? Por um lado, as máquinas podem viabilizar a tradução de um maior número de livros, intensificando a troca cultural. Isso, naturalmente, com a participação indispensável de um grupo de tradutores e revisores humanos no processo. Por outro lado, vejamos o exemplo do DeepL, que já cobra pelo serviço de tradução. É provável que outros aplicativos sigam o mesmo caminho: começam gratuitos, mas, à medida que os usuários se tornam “dependentes”, os “donos” da tecnologia percebem a oportunidade de cobrar e lucrar com o serviço. Sem contar que o diálogo entre o humano e a máquina a alimenta — e, vale destacar, gratuitamente.
Como ficará a remuneração do tradutor diante do advento da inteligência artificial? Será que ele precisará competir ou “compartilhar” com a “máquina” o valor do seu trabalho?
Voltando à reflexão sobre o ato de traduzir, é evidente que essa questão interessa exclusivamente aos humanos. Apesar de a máquina ser capaz de “processar”, seu objetivo não é refletir. Ela foi desenvolvida para entregar um produto, o que parece ir de encontro à tese do filósofo alemão Martin Heidegger, que afirmou: Alles ist Weg (Tudo é caminho).
O fato é que um dos prazeres da tradução, assim como de outras atividades intelectuais, reside no caminho percorrido para alcançar um determinado resultado.
Quando questionada sobre o papel das inteligências artificiais, a tradutora profissional Denise Bottmann afirmou: “Uma coisa muito importante e fascinante no ofício de tradução é o gosto, o prazer em fazer aquilo. Transcende o aspecto meramente pragmático do trabalho; abre portas a uma dedicação de outra natureza: é o que às vezes chamo de ‘tradução afetiva’”.
Para esses tradutores, a jornada é tão significativa quanto o produto final. Na verdade, o produto final é sempre fruto de uma longa trajetória intelectual e reflexiva.
Em uma sociedade marcada por uma paralisia intelectual, as plataformas de inteligência artificial podem facilmente substituir os tradutores. Os leitores, talvez, fiquem tão impressionados com a tradução da máquina quanto a elite intelectual ficava com o talento do Sr. Castelo, personagem de “O Homem que Sabia Javanês”, de Lima Barreto, que “traduzia” a partir de uma língua e cultura que desconhecia completamente. A tradução realizada por máquinas será certamente mais precisa do que a encenação da personagem de Barreto. Porém, ela também terá um impacto ambiental significativo. Sabe-se que, quanto mais sofisticados se tornam os comandos das IAs, maior é o consumo de energia, infraestruturas e equipamentos de informática, como placas gráficas, o que aumenta a demanda por silício e cobalto. A extração de cobalto, por exemplo, degrada o solo e os ecossistemas, contribuindo para a deterioração ambiental. No entanto, enquanto essa extração ocorrer na República Democrática do Congo, ela parece não nos atingir diretamente.
O uso das IAs envolve, portanto, uma discussão ética e jurídica... Afinal, tudo é caminho.

