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Judeus e palestinos ganham voz em importante ópera de John Adams

Dirce Waltrick do Amarante*

7 de abr. de 2024

No dia 20 de outubro de 2014, assisti à estreia de The Death of Klinghoffer (A morte de Klingoffer), do compositor norte-americano John Adams, ópera que traz os dois lados de um evento trágico que resultou na morte de um cadeirante judeu por um “pirata” palestino num navio de luxo. A obra estreou sob protestos, que se repetiram a cada nova apresentação, no Metropolitan Theatre (MET), em Nova York. O “espetáculo” começava, portanto, antes mesmo de se entrar no teatro.


Na rua, em frente ao MET, manifestantes erguiam cartazes contra a apresentação da ópera, considerada por muitos como antissemita, e se dirigiam às pessoas que, como eu, chegavam ao local. Policias impediam a aproximação dos manifestantes e, na entrada do teatro, espectadores eram minuciosamente revistados. Essa tensão se renova cada vez que se tenta abordar os dois lados da complexa história do Oriente-Médio que opõe judeus a palestinos.


Composta em 1991, a ópera de Adams, com libreto assinado por Alice Goodman, parte, como afirmei, de um fato histórico ocorrido em outubro de 1985, quando o navio italiano Achille Lauro, com turistas de diferentes nacionalidades a bordo, caiu em poder de um grupo da Frente de Libertação da Palestina. Na ocasião, um turista norte-americano de origem judaica, Leon Klinghoffer, que se locomovia em cadeira de rodas, foi assassinado e teve o corpo arremessado ao mar.


As apresentações da ópera, desde a sua estreia em 1991, em Bruxelas, têm gerado protestos. Vale lembrar que Adams começou a trabalhar na ópera em 1989, quando a Primeira Guerra do Golfo estava por explodir. Naquela época, muitos artistas, como Adams, acreditavam que, ao darem voz aos vencidos e ao criarem obras polifônicas, no plano filosófico e cultural, poderiam melhorar o mundo.  


Neste ano, em que o governo de Israel mais uma vez se envolve num conflito com os palestinos e é acusado de massacrar a população de Gaza em ataques que não poupam crianças, velhos e doentes em uma reação às ações terroristas do Hamas em seu território, rever a ópera de Adams talvez seja importante. Não acredito que a obra propague sentimentos “antissemitas”, pois dar voz aos palestinos não significa legitimar ataques terroristas dando-lhes razão. Talvez aqui se pudesse levar em consideração esta afirmação de Judith Butler no livro Caminhos divergentes: Judaicidade e crítica do sionismo (Boitempo, 2017), em tradução de Rogério Bettoni: “alguns valores judaicos de coabitação com os não judeus são parte da própria substância ética da judaicidade diaspórica, será possível concluir que os compromissos com a igualdade social e a justiça social têm sido parte fundamental das tradições judaicas seculares, socialistas e religiosas. Embora isso não devesse surpreender, tornou-se necessário reiterar esse argumento diante de um discurso público segundo o qual toda a crítica à ocupação israelense, às desigualdades de Israel, aos confiscos de terra e aos bombardeios violentos de populações aprisionadas [...] é antissemita ou antijudaica, não está a serviço do povo judeu”. Talvez esse esclarecimento de Butler permitisse que a ópera de Adams pudesse ser discutida e não apenas censurada.


O fato é que, num libreto tão complexo quanto o de Alice Goodman, as vozes de ambos os lados não são simplistas nem sectárias. Se por um lado o sofrimento do povo palestino é ressaltado em frases como: “A casa do meu pai foi destruída em 1948 quando os israelenses atravessaram a nossa rua”, por outro lado a posição de um dos terroristas demonstra a impossibilidade de diálogo com os judeus: “o dia que meu inimigo e eu sentarmos pacificamente [...] nesse dia nossa esperança morre”.


Do mesmo modo, Klinghoffer, que representaria todos os judeus, é o bode expiatório, ou seja, o inocente livre contra o qual se volta o ódio dos terroristas. Na verdade, é difícil definir quem é ele exatamente e por que foi tomado como alvo. Aliás, a ópera abre com a utópica noção de equilíbrio, com o coro dos palestinos exilados e, em seguida, o dos judeus exilados. Os dois coros têm exatamente a mesma duração. Os palestinos falam da perda de suas casas, das árvores que lhes devam sombra etc. Já os judeus parecem perdidos e perplexos diante de um país que ainda não se parece com a terra prometida.

Na montagem de 2014, findo o coro dos palestinos, os atores (que representam mulheres) tiram suas roupas típicas no palco, seguram-nas como se fossem casacos e passam a interpretar o povo judeu. A importância da cena está em demonstrar, parece-me, que por baixo de roupas, costumes e tradições aqueles personagens são seres humanos que possuem os mesmos direitos.


Um leitmotiv importante é a atuação de um grupo de mulheres palestinas ao longo da récita. Diante da impossibilidade de se fixarem no seu próprio território, elas simplesmente atravessam o palco, constituindo uma consciência coletiva que fala em nome dos desejos individuais e pressionam os terroristas a lutarem por um bem comum.


Saí da ópera com a sensação de que é insano viver em qualquer um dos lados desse conflito. Para o dia 15 de novembro de 2014 estava planejada a transmissão ao vivo da ópera para muitas cidades ao redor do mundo, contudo, depois dos protestos, o diretor do MET concordou em cancelar esse evento. Perdemos nós, espectadores, a oportunidade de entender esse conflito a partir da perspectiva dialógica da arte. A propósito, nessa montagem nova-iorquina, o barítono brasileiro Paulo Szot atuou brilhantemente como o capitão do Achille Lauro.

 

*Ensaísta, tradutora e professora do Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina.

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