
Patrícia Marcondes de Barros
8 de abr. de 2025
Não conto das ocorrências
dos fragmentos
do trio elétrico
dos vapores em que andei
te dou um mapa colorido da capa do caderno
o brinco de metal
o termômetro que marcava minha febre
minha febre
o laço que prendia o meu cabelo
Guilherme Mandaro (1976, p.3)
Guilherme Mandaro nasceu em 17 de dezembro de 1952, na cidade de Vassouras, no Estado do Rio de Janeiro, destacando-se como uma figura proeminente na cena da poesia marginal dos anos 1970. Embora pouco conhecido, desempenhou um papel singular no cenário literário dessa geração, sendo creditada a ele a inovadora ideia de utilizar o mimeógrafo em experimentos literários. Além de professor de História em um curso pré-vestibular no centro do Rio de Janeiro, foi envolvido na militância estudantil, conforme relatos de amigos. Charles Peixoto produziu, por meio do mimeógrafo, o livro Travessa Bertalha 11 (1971), seguido uma semana depois por Ricardo Chacal, que lançou Muito Prazer, Ricardo (1971), ambos diagramados por Mandaro. A produção desses livros envolvia recortes, grampeamento de papéis e a aplicação de diversas técnicas de editoração. Assim, o processo de produção de poesia em mimeógrafo se desenvolveu nessa geração ávida por liberdade de expressão e menos preocupada com o lucro. A distribuição de livros era realizada em shows e nas praias, passando de "mão em mão", possibilitando experiências libertárias e um afastamento do processo mercadológico tradicional do livro.
Seguindo a máxima mcluhaniana de que "o meio é a mensagem", o livro em mimeógrafo transformou tanto a mensagem quanto seu tom, adotando uma linguagem que se distanciava dos cânones literários tradicionais e preservava a liberdade de expressão. Os temas abordados eram urbanos, influenciados por elementos como rock, publicidade, modernismo oswaldiano e o carnaval de rua carioca, entre outros.
Mandaro não se considerava um poeta, mas sim um professor de História engajado nas questões políticas de seu tempo, uma perspectiva que se refletia em sua poesia.
E chegando no país onde saí
imprimi a matriz morena
de sua miséria
entre os trópicos e meridianos
década paisagem
e as paisagens estavam desertas
as ruas quase vazias
os rostos muito cansados
as vontades todas desfeitas
(MANDARO, 1976, p.57).
O poeta foi um dos participantes do coletivo poético Nuvem Cigana e escreveu dois livros: Hotel de Deus (1976) e Trem da noite (1979). Morreu ainda jovem em 1979, ao pular da janela de seu prédio. O contexto da ditadura militar gerou nesta geração setentista um clima de angústia e desesperança, demarcando na poesia o silenciamento do período e suas ausências:
Há coisas que não se pode mais dizer
há coisas que ficarão por muito tempo caladas
caladas e presentes
como um calafrio num corpo só
distante do movimento vivo
às vezes as coisas permanecem
como o fogo morto de alguma necessidade
precário o tempo do silêncio necessário
perpétuo o tempo de uma ausência imposta
(MANDARO, 1976).
O cenário urbano de Copacabana, onde Mandaro viveu e morreu, marcou sua poesia. Suas obras retratam a desigualdade social e o dinamismo da modernidade, com um olhar flâneur sobre a cidade. Ele denuncia a coisificação das pessoas, a imposição do capitalismo e a repressão da ditadura, incorporando a linguagem moderna à espontaneidade do cotidiano urbano.
[...]Copacabana tem um lado de dentro, longe do mar, com seu povo, sua construção e destruição, Copacabana é dialética. Essa gente que todos os dias se vê nas ruas, todo esse povo, esse mundaréu de gente, não é mais de suburbanos, nordestinos e favelados, mas apenas miseráveis, tristes e pobres. A miséria não tem fim em Copacabana. Não é miséria geográfica, estatística, mensurável. É miséria sem fim. É miséria econômica, e humana, miséria apressada, miséria de trabalhadores, imigrantes que não voltam, é miséria de subúrbio, despejada pelo ônibus norte-sul. Copacabana é um sinal mudo e ferido desse tempo.
Reino de gente, babel de papel, como o tigre.
É na perda diária de identidades nas superfícies encardidas, nos brilhos opacos das garrafas, gemido de motores, barulho. Quem vem do norte, quem vem do morro, quem vem de trem. Nossa Senhora de Copacabana e Nossa Senhora da Penha em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Copacabana qualquer posto. ponto final
(MANDARO, 1979, p. 49).
A temática amorosa surge em sua poesia, contudo, adquirindo nuances coletivas, onde o eu lírico se mistura “aos nós” da sociedade, ao mundo urbano, moderno, incompreensível & a vida cotidiana com suas travessias, desastres e paixões em situações-limites:
Porque as pessoas não se entendem
com suas histórias e travessias
seus desastres e suas paixões
correndo loucas
prá trás de seus próprios armários
e eu que sonhei com cada uma delas
volto pouco a pouco sozinho
prá minha espera
histórias
travessias
e paixões
(MANDARO, 1976, p.25).
É perceptível em várias produções literárias marginais a relação intrínseca com o modernismo brasileiro, na sua relação de arte e vida, texto e contexto, a linguagem espontânea, o coloquial com o uso de gírias e a adoção de versos livres, imediatos, fugazes:
10,45h
Algo como a umidade que a chuva
encharcando-me, que a roupa molhada
deixa passar para o corpo
alguma coisa como um tremor que
como um temor tomou conta de mim
e quando estou mais fraco partido
inconstante úmido
com o sextante largado na mão
sem saber o que fazer com tanta estrela
as imagens sedutoras coloridas
e rasgada como um trago mais forte
uma droga heavy
os ossos gelados
o coração gelado
a cabeça parada num ponto qualquer
e minha última e pior oportunidade
de comprar cigarros no bar aberto
(MANDARO, 1979, p.53).
A experimentação dessa geração envolvida com a produção literária denominada como marginal foi singular, ainda que esses poetas tenham alguns traços em comum como o contexto histórico vivido, a classe social, o rompimento com o estabelecido, a busca pela verdade encontrada em versos e pessoas livres, o intento era o da vivência da poesia, processo individual e intransferível.
A poética de Guilherme Mandaro ampara-se na “matriz morena de sua miséria, entre os trópicos e meridianos de cada paisagem”(MANDARO, 1979, p.57), no seu ser brasileiro, que vai além da zona sul, alcançando outros espaços e épocas. Seus versos confluem em história e poesia, em melancolia existencial de quem era jovem na ditadura militar e na alegria efêmera do desbunde, numa militância política reverberada em vivências poéticas com artimanhas, “corpo na ação”.
Na apresentação de seus livros, Mandaro (1979, p. 31) revela: “Arrisquei mais do que tinha direito. Não saí incólume, mesmo porque estou mais velho”. A instabilidade psíquica do poeta, sua internação em clínicas psiquiátricas, sua notável inteligência e postura demiúrgica coordenando “aquele carnaval triste” aproxima o leitor de um tempo, a do professor de História e poeta envolvido com as causas sociais e, sobretudo, da intensidade do jovem estudante revolucionário, que alcança através de sua poesia singular o minado terreno do século XXI.