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Vers libre e Arnold Dolmetsch

Ezra Pound. Tradução de Arthur Lungov

23 de fev. de 2025

Poesia deve ser lida como música, não como oratória.

Vers libre[1] e Arnold Dolmetsch[2]

 

A poesia é uma composição de palavras postas em música. A maior parte das outras definições que se dão a ela são indefensáveis ou metafísicas. A proporção ou a qualidade dessa música pode variar, e de fato varia; mas a poesia murcha até secar quando ela se descola demais da música, ou ao menos de uma música imaginada. Os horrores das modernas “leituras de poesia”[3] se devem à recitação oratória. Poesia deve ser lida como música, não como oratória. Com isso, não quero dizer que as palavras devem ser mescladas entre si, ou tornadas indistintas e irreconhecíveis em uma massaroca de onomatopeias. Encontrei poucas pessoas, com exceção dos músicos, que sequer prestam atenção à música de um poeta. Eles são, admito, frequentemente pouco críticos das suas excelências ou deficiências verbais, ignorantes de seu valor “literário” ou de sua pateticidade. Mas qualidade literária não é tudo em nossa arte.


Poetas que não se interessam por música são, ou se tornam, maus poetas. Poderia até dizer que os poetas não deveriam nunca ficar muito tempo sem algum contato com músicos. Poetas que não estudam música são defectivos. Eles não precisam se tornar virtuosos, ou necessariamente seguir o currículo musical de sua época. Talvez haja valor no fato de poderem ser um pouco refratários ou heréticos, pois todas as artes degeneram rumo ao clichê; e em todas as épocas os medíocres tendem a obscurecer semiconscientemente ou inconscientemente o fato de que a moda atual não é eterna ou imutável; ou ao menos tentam.


Música e poesia, melodia e versificação, todas caem no marasmo.


É tarde demais para impedir o vers libre. Mas é concebível melhorá-lo, e ao menos interromper a estúpida e estreita discussão que gira ao seu redor, baseada na ignorância musical. Ataques preconceituosos nascidos da ignorância da tradição musical, é isso que tivemos que suportar.

***

 O livro de Arnold Dolmetsch, A interpretação da música dos séculos XVII e XVIII[4], está repleto do que poderíamos chamar de “sabedoria madura” ou de “bom senso”, ou de “aquelas coisas que qualquer bom artista tentou em todas as épocas (talvez em vão) cravar a marteladas nos cérebros insensíveis”. Algumas das suas premissas naturalmente se aplicam apenas à música instrumental e à melodia, outras são suscetíveis de uma transposição em termos próprios às artes irmãs da música, e outras ainda são passíveis de serem aplicadas diretamente na poesia, ou ao menos na versificação. É destas últimas que tratarei. O estilo de Dolmetsch é tão claro, e suas citações de autores antigos tão aptas, que talvez seja melhor apenas citá-las sem maiores comentários.


Mace, Musick’s Monument (1613):

(1)

“... você deve Saber que, ainda que em nossas Primeiras Tentativas devamos aspirar ao mais Exato Hábito de Manter o Ritmo Regular que se possa atingir (e por várias boas Razões), ainda assim, quando nos tornamos Mestres, podemos dominar qualquer espécie de Ritmo ao nosso bel Prazer; nós Então tomamos a Liberdade (e muitas vezes o fazemos por Humor, ou como Ornamento em alguma Parte) de Romper o Ritmo; algumas vezes com Mais velocidade, em outras com Menos, conforme percebemos que a Natureza Daquilo Requer, o que muitas vezes acrescenta Graça e Beleza à Apresentação.”

(2)

“... o que precisa ser feito, é apenas uma espécie de Pausa, ou ficar quieto... no lugar apropriado para uma excelente graça.”


De novo, Mace, p. 130: “Se você achar os compassos uniformes ou truncados”, ele nos diz para aumentar a variedade com a alternância entre o alto e o suave etc., e “se a composição se expressar em frases curtas” isso também se aplica. E é preciso fazer pausas após longas notas que encerrem as frases.

Rousseau, 1687, em Maître de Musique et de Viole:

(1)

“... E a partir dessa palavra, “movimento”, há aqueles que imaginam que para dar movimento a algo é preciso seguir e marcar o ritmo; mas há muita diferença entre uma coisa e outra, pois é possível manter o ritmo regular sem adentrar o movimento.”

(2)

“.... Você deve evitar a profusão de divisões, o que apenas emperra a música, e obscurece sua beleza.”

(3)

“... Não acentue demais a batida.”


Ao intérprete, é sugerido imitar as irregularidades de uma bela voz.

François Couperin, 1717, L’Art de toucher le Clavecin:

(1)

“...Nós escrevemos diferente daquilo que tocamos.”

(2)

“.... Sinto que confundimos o Tempo, ou a Medida, com o que é chamado de Cadência ou Movimento. A Medida define a quantidade e a regularidade das batidas; a Cadência é o espírito, a alma que deve ser acrescentada”.

(3)

“... Ainda que esses Prelúdios sejam escritos em compassos regulares, há no entanto um estilo de costume que deve ser seguido.


... Aqueles que usarão esses Prelúdios devem tocá-los de forma simples, sem se aterem a um ritmo estrito, a não ser que essa circunstância seja expressamente marcada pela palavra mesuré.”


Não é preciso buscar mais evidências para se reconhecer o vers libre na música — e isso durante o “período clássico”.


Apontei em outra ocasião que mesmo a medida em compassos certamente NÃO é a coisa essencial, ou sequer é importante; e que músicos europeus, ao menos, não começaram a registrar o compasso até bastante tarde na história da notação musical. Couperin vê no registro em compassos uma conveniência:


“... Uma das razões pelas quais escrevi esses Prelúdios em compassos é a facilidade com que podem se ensinar ou aprender”.


Ou seja, os compassos musicais são uma espécie de muleta que pode ser jogada fora assim que não se mostre mais necessária.


O descaso com os compassos não deve ser confundido com o tempo rubato, afetando as notas dentro de um mesmo compasso.


***


A sabedoria de Dolmetsch não deve ser confinada à elucidação de uma só questão de interesse tópico a um poeta. Não tenho aqui espaço para citar dois capítulos inteiros, ou mesmo para comentar citações breves como: “Você deve amarrar perfeitamente tudo aquilo que tocar”. O escritor de versos sério não ficará contente até ir à fonte. Não quero dar a impressão equivocada de que toda a música antiga era em vers libre. Estou simplesmente apontando que o vers libre existia na música antiga. Quantzens, 1752, apenas alerta o intérprete, ao menos naquilo que é citado por Dolmetsch, a tocar as notas mais curtas de forma “desigual”. Christopher Simpson, 1655, estava muito preocupado com as condições físicas para se chegar a um ritmo regular. Essa data chama a atenção. O movimento em direção à regularidade no verso no século XVII parece condenável quando se compara Dryden a Shakespeare; mas basta ler alguma má poesia elisabetana para que a razão para isso se torne clara. Por outro lado, a sensibilidade de Couperin para a irregularidade permeando algumas formas “clássicas” pode nos dar pistas de uma irregularidade fundamental que tornaria o classicismo do século XVIII, um classicismo superficial, tolerável àqueles que sentiam essa variedade subterrânea de modo tão forte quanto os primeiros defensores da regularidade a sentiam.


         Essas são especulações históricas. Se estivesse apenas escrevendo um artigo polêmico, deveria ter parado na primeira citação de Couperin sobre vers libre. (Nunca aleguei que o vers libre era o único caminho para a salvação. Senti que ele era apropriado e que tinha seu lugar entre outros modos de se escrever versos. Parece que meu instinto não foi de todo herético, e que a oposição estava bastante mal-informada). Velhos senhores que falam de “baderna e anarquia”, “traição ao império da poesia” etc. etc. não perderiam seu tempo em “aprender a história” e escrutinar melhor os códices de suas leis.


***

 

* Arthur Lungov é poeta e editor de poesia da Lavoura, revista de literatura contemporânea. É autor do livro Luzes fortes, delírios urbanos (Patuá, 2016) e Corpos (Quelônio, 2019). Foi publicado em coletâneas e revistas literárias (mallarmargens, gueto, Raimundo, O Casulo, Poesia do poeta etc.).    


[1] Escolhemos manter em francês “verso livre” para marcar um dado cultural importante para o contexto no qual Pound escreve, uma vez que é da poesia francesa fin de siècle que ele adapta o verso livre para o inglês.  

[2] Arnold Dolmestch (1858-1940) foi um multi-instrumentista e construtor de instrumento francês, uma das figuras de proa do revivalismo da música antiga que aconteceu no século XX. Dolmestch defendia que, para serem verdadeiramente apreciadas, as peças de música antiga deveriam ser tocadas nos instrumentos para os quais as composições foram escritas, de modo que teve um importante papel não apenas na recuperação de partituras como na reconstrução de instrumentos antigos, para que essas peças fossem executadas. Para o pensamento poundiano, Dolmestch cumpre alguns papeis: o de historicizar música antiga, especialmente dos períodos que poeticamente mais interessam a Pound, como a música provençal; de dar bases para uma justificativa musical do verso livre e do pensamento musical estrutural na poesia; de mostrar como a recuperação de dados culturais do passado é importante para a criação contemporânea etc.

[3] E dos saraus contemporâneos.

[4] O livro, infelizmente, não tem tradução para o português, mas uma tradução para o castelhano foi publicada em 2021 pela Ediciones Universidad Católica de Salta, na Argentina. 

2022 por Paola Schroeder, Claudio Daniel, Rita Coitinho e André Dick

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