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Vidas digitais, corpos analógicos

Kalil de Oliveira Rodrigues

8 de abr. de 2025

...Meses depois dessas leituras que me fizeram refletir sobre meu comportamento...

Era um dia frio, mas muito ensolarado em Buenos Aires. Eu tomava café  no bairro Belgrano, em frente à praça Castelli. Por baixo da mesa, minhas pernas subiam e desciam em ritmo descontrolado. Da mesma forma, minhas mãos tremiam. Parecia não ter razão para o agito, e, mesmo assim, me sinto dessa maneira na maior parte do tempo. É tão frequente que sequer percebia o incômodo. "É assim que sou," costumava dizer. Naquele momento, na cafeteria, eu rolava a tela do Instagram – como sempre fazia tão logo não tivesse nada para fazer – até que parei em uma publicação do jornal espanhol El País. Era uma entrevista com o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, cujo trabalho conheci na graduação. O pensador argumentava que as tecnologias digitais mudaram a nossa forma de ser e estar no mundo e que, por isso, devemos deixá-las de lado:

“La gente ahora camina con los oídos tapados. Como yo no me oriento bien espacialmente, cuando voy a algún sitio, pregunto a la gente dónde está cierta calle, pero tienen los oídos taponados por los auriculares. No pueden oír y eso significa que están desconectados del mundo, del otro, solo se oyen hablar a sí mismos, involucrados en su ego”.

 

Han considera que es un error pensar en la libertad desde el individuo. “Ya lo decía Marx, esa libertad individual es la astucia del capital. Creemos que somos libres, pero en el fondo producimos, aumentamos el capital. Es decir, el capital utiliza la libertad individual para reproducirse. Eso significa que nosotros, con nuestra libertad individual, solo somos los órganos sexuales del capital”. Y retoma una de sus ideas bandera: “Bajo la compulsión del rendimiento y la producción, no hay libertad posible. Me obligo a producir más, a rendir más, me optimizo hasta la muerte, eso no es libertad”.


Assim que terminei de ler, guardei o celular no bolso, paguei a conta, atravessei a rua e entrei na livraria da esquina, onde comprei uma edição argentina de Não coisas: Reviravoltas do mundo da vida (HAN, 2021). Devorei o livro no mesmo dia e elaborei uma hipótese de porque minhas pernas tremem debaixo da mesa – meses mais tarde, recebi diagnóstico de ansiedade. Logo avancei para Infocracia: Digitalização e a crise da democracia (HAN, 2021) e A salvação do belo (HAN, 2015). Concluí, então, que me sinto ansioso por conta do excesso de informações que recebo através do digital. Desde então, não mudei minhas práticas, mas passei a me sentir mais culpado após longas horas na tela do celular.

 

Meses depois dessas leituras que me fizeram refletir sobre meu comportamento, de volta a Florianópolis, onde vivo, eu estava na casa de um amigo. Jantávamos quando o telefone dele recebeu uma chamada de vídeo. Era um colega seu de faculdade, que estava em reabilitação para depressão. Encerrada a conversa, meu amigo me contou que os psiquiatras que atendiam o seu companheiro de universidade suspeitavam que o abuso de droga engatilhou o transtorno mental. O colega concordou, mas acrescentou que acredita que o tempo em excesso em telas também era responsável. Quando escutei isso, relacionei imediatamente com as minhas próprias frustrações. Então, percebi que o assunto é uma emergência em pessoas da minha idade, a geração Z.

 

No capítulo Um excurso sobre o jukebox, de Não coisas, Han narra a aquisição de um aparelho jukebox e a sua relação com ele.


O jukebox ilumina a escuridão com luzes coloridas e cria uma coisa mágica à qual eu me rendi.


O jukebox torna a audição de música uma experiência visual, acústica e tátil altamente prazerosa. No entanto, é muito trabalhoso e demanda tempo intensivamente. Como o jukebox não está em operação contínua em minha casa, ele deve primeiro ser conectado à energia elétrica. Os tubos demoram um pouco para aquecer. Depois de inserir uma moeda, aperto cuidadosamente os botões. Então todo o mecanismo começa com uma forte crepitação. Após o giro da roda do disco ser colocado em movimento, o braço do trocador de discos pega um disco e o coloca com um movimento preciso. Antes que o braço da agulha aterrisse no disco, ele passa uma pequena escova que limpa a agulha do pó. Tudo isso é como mágica, uma coisa que me surpreende a cada vez.


O jukebox produz ruídos de coisa. Ele parece querer comunicar especificamente que é uma coisa. Ele tem um corpo volumoso. Seu rugido vem do fundo da barriga, como se fosse a expressão de sua volúpia. O som digital é livre de qualquer ruído de coisa. Ele é sem corpo e liso. O som que o jukebox produz por meio de um disco e um amplificador tubular é fundamentalmente diferente do som digital. Ele é material e corpóreo. O som crepitante me toca, provoca-me arrepios. (Han, 2021, s.p.)


Assim, ele conclui, o analógico produz uma contraparte. "A digitalização elimina todas as contrapartidas, todas as oposições", escreve Han. A virtualidade, ao eliminar as oposições, desestabilizam a mente. "O Spotify aprisiona", disse-me o psiquiatra Neury Botega em uma entrevista.


Byung-Chul Han diz que as coisas produzem afeto pelo tato. Um livro ao ser folheado, um disco ao ser posto para tocar possuem resistência estabilizadora (HAN, 2022, s.p.). Portanto, "o touch screen subsume a negatividade do outro, do indisponível. Ele generaliza a coerção táctil para tornar tudo disponível. Na era do smartphone, até mesmo o sentido da visão se submete à coerção táctil e perde sua faceta mágica. Ela perde seu senso de espanto", diz. Assim, para ele, voltar às tecnologias do passado é uma forma de retornar a ter afeto com as coisas, que chama de coisas do coração.


Na minha estante de livros, o livro Transformações em metais, de Paul G. Shewmon, encontra-se ao lado de livros filosóficos. É o último livro que li enquanto estudava metalurgia, antes de decidir estudar filosofia. Guardo-o como uma lembrança. Se eu tivesse lido o livro como um e-book naquela época, eu teria uma coisa do coração a menos para pegar de vez em quando como uma lembrança. Sim, as coisas tornam o tempo tangível, enquanto os rituais o tornam transitável. (HAN, 2022, s.p)


Se alguém chama uma pessoa para um jantar romântico, por exemplo, e decide colocar um vinil para rodar ao invés do streaming, aquele objeto é marcado, ao ser tocado, como uma lembrança de um momento bonito, ao contrário do digital. No episódio do jukebox, Han (2022, s.p.) diz: "Eu me consolo com o pensamento de que minha posse salvou o jukebox de seu desaparecimento definitivo, que o liberto da servidão de ser útil, que o despojo de seu caráter de mercadoria, transformando-o em uma coisa do coração". Caetano Veloso (1997), na canção Livros, canta que “os livros são objetos transcendentes / mas podemos amá-los do amor táctil”.


Estamos em um momento da história humana marcada por um cyberindividualismo. Retornar ao analógico, recuperar coisas do coração despojando-as de seu caráter de mercadoria, é uma forma de viver mais tranquilamente no meio de uma epidemia de transtornos mentais[1].


O curta-metragem Eletrodoméstica (2005), de Kléber Mendonça Filho, acompanha a rotina de uma dona de casa e sua relação com os eletrodomésticos. Ao longo da trama, os ruídos produzidos pelos aparelhos causam perturbação no espectador, ao mesmo tempo que se integram ao corpo da protagonista. O eletrônico é um fetiche. Primeiro, a chegada de uma televisão de 29 polegadas é recebida com orgulho e satisfação. O filme termina com a centrifugação da máquina de lavar, após os minutos que a protagonista aguardava, com ansiedade, por esse momento. No clímax, a personagem se apoia no eletrodoméstico e se masturba até atingir o orgasmo, enquanto telefones, microondas e outros aparelhos produzem sons.


O curta reflete o impacto dos eletrodomésticos nos corpos, como nos integramos a essas tecnologias. Hoje, os eletrodomésticos são smart. Deixaram de ser extensões dos corpos e passaram a se tornar extensões das mentes. A grande revolução, com o lançamento do iPhone em 2007, foi a transição da biopolítica para a psicopolítica (HAN, 2022).

 

A saúde é consequência de práticas culturais. A cultura, para Edward B. Tylor (2005, p.8), é definida como "aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade". A saúde é um sistema de conhecimentos regido por saberes, fé, moral e regulamentado por lei. Há uma crise de transtornos mentais potencializados por práticas implementadas na sociedade a partir da década de 2010 (HAIDT, 2024). São doenças consequentes da cultura e, por sua vez, o enfrentamento a elas também é disputado nesse campo.


Em 6 de novembro de 2024, a filósofa Marilena Chauí, em entrevista ao programa Dando a Real com Leandro Demori, da TV Brasil, disse que a digitalização da vida subverteu nossas identidades. “Está surgindo uma nova subjetividade produzida por esse mundo digital. Primeiro, é uma subjetividade narcisista. Ou seja, existir é ser visto. (...) Como Freud dizia, o narcisismo é inseparável da depressão. Então, você tem uma subjetividade nova que é narcisista, depressiva e que depende desesperadamente do olhar alheio”, disse. Chauí, ao afirmar que o digital provoca narcisismo que degenera em depressão, vai ao encontro do que afirma Tylor. O digital, como prática cultural, impacta na saúde, desenvolvendo, assim, transtornos mentais, como a depressão.

 

De acordo com Stuart Hall (2006), este século é marcado por uma crise de identidade oriunda de um processo de mudança. Isto se dá pelo sucesso da hegemonia neoliberal que na época em que Hall escrevia A identidade cultural na pós-modernidade atingia seu ápice. No entanto, em 2007, tudo se intensificou com o lançamento do iPhone. Minhas fontes, na época, tinham entre 5 e 7 anos. Elas cresceram sob a égide dos smartphones. Yanis Varoufakis, ex-ministro de finanças grego, diz que o neoliberalismo, aos poucos, se converteu na hegemonia do tecnofeudalismo. Não só os relacionamentos se tornaram espectrais, mas também as relações de trabalho. O trabalhador de aplicativo, o uberizado, se crê empreendedor de si mesmo porque o patrão é fantasmagórico.

 

Um retorno ao consumo de analógicos – ou a busca de equilíbrio – não é só uma questão de saúde mental, mas uma forma de não aceitar o controle mental, social e de mercado que os bilionários, donos das principais redes sociais virtuais, exercem. Fazer uma fotografia, revelá-la, escrever uma carta e enviar essa imagem por correio a um amigo é uma forma de resistir à intermediação da empresa Meta em nossos relacionamentos pessoais. Segundo Brandão e Colucci (2021, p.5),


Se  já  em  meados  do  século  passado  a  crítica  da  Escola  de  Frankfurt  nos  apontou  as estratégias  de  manipulação  e  controle  social  pela  comunicação  mediada  por  tecnologias,  hoje  podemos observar, com a penetrabilidade das TICs em todos os âmbitos da vida (econômica, social, cultural, política, etc.),  uma  reconfiguração  da  indústria  cultural  na  reprodução  de  homens  de  uma  única  dimensão  e um acirramento  da  adesão  voluntária  das  pessoas  às  estratégias  de  dominação  que  se  infiltram  por  meios digitais, cada vez mais disseminados em sociedade.


Mas também é uma forma de garantir a nossa liberdade no sentido mais amplo que definiu Espinosa (2009). Isto é, que sejamos livres para fazer escolhas. O neoliberalismo smart é autoritário ao criar a sensação de que temos liberdade para tudo, principalmente, para ser (HAN, 2022). No entanto, essa sensação é ilusória. Quando cremos que o que consumimos virtualmente é uma escolha, nos enganamos. O que nos chega é produto de cálculos algorítmicos que engolem nossa subjetividade e, ao prometer liberdade, nos entrega aprisionamento. O que os jovens que cito na reportagem fazem é tentar resistir a essa lógica. Ter a liberdade de escolher um vinil em um sebo, não o aprisionamento de ser escolhido pelo Spotify. Vivemos em um capitalismo de vigilância em que somos os vigiados e colaboramos ativamente – muitas vezes, inconscientemente – com os vigilantes, que exercem controle sobre nossos corpos, retirando a agência individual das escolhas. É também resistir ao poder da hegemonia do tecnoliberalismo sobre nossas individualidades.


O desejo é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira” (E III DA1). O desejo para Espinosa, portanto, é o que nos guia através da liberdade. Com o digital, o desejo nos é terceirizado. Empresas, com a Cambridge Analytica, se valem do big data, isto é, nossos dados pessoais, para personalizar publicidades direcionadas a indivíduos. Aos poucos, a subjetividade é reformada. O desejo – de consumir, de ser – não nos é intrínseco, mas adquirido.


O big data, portanto, invade a compulsão interna de busca de satisfação, moldando o desejo. Fazendo-nos desejar o que quer vender. Fazendo-nos ser o que quer que sejamos, levando-nos à autodestruição que apontava Lacan. O cantor Jorge Drexler expressa bem esse fenômeno na canção Oh, Algoritmo:

¿Quién quiere que yo quiera lo que creo que quiero? / Dime qué debo cantar / Oh, algoritmo / Sé que lo sabes mejor / Incluso que yo mismo / Wait, what's that money that you spent? / What's that sitting on your plate? / Do you want what you've been fed? / Are you the fish or bait? / Mmm, I'm on the top of the roof and I feel like a jail / Rather not pay the bail / To dangerous people with blood on their faces / So I'm sharing a cell with the masses / The underground always strive for the main / Streaming like Grande's big-ass ring / Screaming, "I'll write you out my will" / Conscious is free, but not the will / Conscious is free, but not the will / So if you want me to want what I believe that I want / Can I choose to quit? / Dime qué debo cantar / Oh, algoritmo / Sé que lo sabes mejor / Incluso que yo mismo / Por ejemplo, esta canción / ¿Qué algoritmo la parió? / Me pregunto si fui yo / ¿La elegiste o te eligió? / Dios era la letra chica al final del papel / Ya no contamos con Él / Fin de la luna de miel / Y el libre albedrío es un cauce vacío / Un barco que no tiene río / Ni timonel / Todos aplauden, tú también / Pero no queda claro quién / Tiene del mango a la sartén / Del sacrificio / Piel o silicio / Y el precipicio / Dice "Ven, ven, ven"[2]


A canção traduz o conceito lacaniano aplicado à digitalização da vida. O algoritmo torna-se Algoritmo, isto é, divino. Mas é um Deus semelhante ao do primeiro testamento, que nos tortura ao mesmo tempo que promete glória eterna. A consciência (conscious) é livre, mas não o desejo (will). A pergunta da música, Can I choose to quit? (posso escolher desistir?), é o norte deste ensaio. Não há resposta, embora eu tenha a sensação de que, não, não é possível desistir. No entanto, buscar práticas analógicas é uma tentativa.


Ainda no campo das canções, o samba Mensagem, composto por Aldo Cabral e Cícero Nunes em 1946, narra um episódio incomum hoje: a chegada de uma carta. O eu lírico se surpreende e, em seguida, volta-se ansioso ao ser chamado pelo carteiro.


“Lendo o envelope bonito / No subscrito eu reconheci, a mesma caligrafia, que me disse um dia: / Estou farto de ti. / Porém não tive coragem / De abrir a mensagem / Porque na incerteza, eu meditava e dizia: / Será de alegria? / Será de tristeza? / Quanta verdade tristonha / Ou mentira risonha, uma carta nos traz… / E assim pensando rasguei, tua carta / E queimei, para não sofrer mais.”


Tenho, em 2025, 23 anos e, por isso, não posso refletir sobre minha experiência com cartas. Nunca vivi isso, apesar de ter recebido alguns bilhetes que guardo em uma caixa embaixo da minha cama. De vez em quando volto a eles e sinto uma nostalgia da minha adolescência. Na música de Cabral e Nunes, a carta irrompe aflição, precedida por surpresa. Ele segura o envelope e sabe quem a enviou por conta da escrita. A forma é tão ou mais importante quanto o conteúdo, assim como o suporte. O transplante da escrita analógica para a digital provoca ruídos e distorções cognitivas.

Uma pesquisa de 2024 da Universidade de Ciência e Tecnologia da Noruega descobriu que escrever a próprio punho fortalece as conexões cerebrais. Tornou-se, inclusive, um lugar comum em oficinas de escrita criativa o incentivo ao exercício da redação a próprio punho.


O tempo das cartas é outro. Elas exigem reflexão. A leitura começa pelo tato e visão. Faz-se necessária a reflexão de seu conteúdo e, por consequência, das sensações experienciadas pelo leitor. Alegria ou tristeza? A resposta – mesmo que seja rasgar ou queimar a mensagem – passa por um processo de análise.


A comunicação orienta as dinâmicas de relacionamentos de qualquer maneira. O que muda quando o conflito de desejos migra para a arena digital? O rapper FBC é um dos artistas urbanos brasileiros que tem escrito sobre o amor através das telas dos smartphones. O álbum O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão nos Levar para Outro Planeta é uma das melhores leituras culturais sobre este momento dúbio da humanidade. Logo na primeira música, Madrugada Maldita, o músico diz que cansou de “(...) te livrar do perigo, do textão”. A carta de Cabral e Nunes se degenerou em textão.


Quando prestei vestibular para a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), um dos gêneros possíveis de serem explorados na redação foi textão. Lembro-me de ter escrito um texto agressivo e superficial, afinal, aos 18 anos, era como entendia a linguagem das redes. Fui aprovado, mas gostaria de exercitar escrever sobre o mesmo tema, mas pensando em, por exemplo, a linguagem de uma carta aberta. O quão diferente seria?


Em Dilema das Redes, FBC canta “Odeio o mundo, / Odeio tudo, / Principalmente / Odeio a sua opinião”. Os versos imprimem um sentimento comum. A digitalização da cultura é responsável por alimentar uma polarização que, antes poderia ser saudável, hoje é violenta. “Preciso te encontrar”, diz o eu lírico. “Mas na rede assim não dá”. Online, nos despojamos do equilíbrio dos desejos que formalizam conflitos éticos, tornando-nos viciados em auto-referência. Como um mantra, a música diz “Pare de falar com o espelho (apenas desisto e unfollow)”.


De volta à carta, a dor sentida pelo personagem surge a partir de uma frase de uma mensagem anterior: “Estou farto de ti”. O eu lírico de FBC é machucado por “aqueles stories”. As palavras são substituídas por conteúdos narcisistas. O (des)interesse é expressado por uma exposição genérica em redes sociais. Por consequência, a angústia não é analógica, como queimar ou rasgar o post.


“Mando outra mensagem ou / Não, melhor esperar / Duas barras dessa ideia sobem / Ela tem internet ou não? / E se tem / Por que não responde? / Mastigo zolpidem / Não tira os olhos desse telefone / Atualiza o WatchTime / Te vejo online”.


As  cartas desapareceram. A comunicação interrelacional é esta que FBC descreve. Em uma interpretação de Mensagem, Maria Bethânia declama o poema Todas as cartas de amor são, de Fernanda Pessoa. “As cartas de amor, se há amor, / Têm de ser / Ridículas. / Mas, afinal, / Só as criaturas que nunca escreveram / Cartas de amor / É que são / Ridículas.”


Estamos todos ridículos?


Minha mãe é dona de um pequeno comércio. Fica em uma espécie de parque no nosso bairro, e, por isso, algumas pessoas visitam com frequência o local. A frente, tem um condomínio fechado, onde trabalha uma babá, que sempre passeia com a criança pelo local. Minha mãe sempre tenta chamar a atenção da menina, que deve ter dois anos. Há duas semanas, quando eu fazia companhia a minha mãe, a neném estava sentada em um banquinho.


– Ei! – dizia a minha mãe, mandando beijinho. – Psiu, Gigiiii!


Anestesiada, a criança se recusou a virar a cabeça em direção à voz que a chamava. Era como se nada – nem a minha mãe, nem o parquinho, nem os coelhos que se criam soltos lá – a interessasse. Vidrava o nada por muitos minutos. Então, percebemos, ela assistia a um vídeo no celular da cuidadora.


O que acontece com a infância quando um universo de um parque é aborrecedor perto de um smartphone?


Quando falo em retornar ao analógico, me refiro ao que Byung-Chul Han diz sobre despojar as coisas do caráter de mercadoria, transformando-as em do coração. É como o poema Guardar, de Antônio Cícero.  “Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto / é, iluminá-la ou ser por ela iluminado”.  As coisas não são o acúmulo de objetos, mas a relação que construímos com a materialidade ao nosso redor – o que pode nos elevar, inclusive, espiritualmente. Manoel de Barros, em Retrato do artista quando coisa volta-se à observação da vida: da natureza. No décimo poema da coletânea, escreve que “sábio não é o homem que inventou a primeira bomba atômica. / Sábio é o menino que inventou a primeira lagartixa”. Que Gigi possa inventar lagartixas e coelhinhos, que aprenda a “gostar das coisinhas do chão”. 

 

***


[1] De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), apenas a pandemia de Covid-19 aumentou 25% na prevalência de ansiedade e depressão em todo o mundo.

[2] Em tradução livre: “Quem quer que eu queira o que eu acho que quero? / Diga-me o que devo cantar / Oh, algoritmo / Sei que você sabe melhor / Até do que eu mesmo / Espere, que dinheiro foi esse que você gastou? / O que está aí no seu prato? / Você quer o que te alimentaram? / Você é peixe ou isca? / Mmm, estou no topo do telhado e me sinto como numa prisão / Prefiro não pagar a fiança / Para pessoas perigosas com sangue no rosto / Então compartilho uma cela com as massas / O underground sempre luta para chegar ao topo / Transmitindo como o anel gigante da Grande / Gritando: "Vou te tirar do meu testamento" / A consciência é gratuita, mas não a vontade / A consciência é gratuita, mas não a vontade / Então, se você quer que eu queira o que eu acredito que quero / Posso escolher desistir? / Diga-me o que devo cantar / Oh, algoritmo / Sei que você sabe melhor / Até do que eu mesmo / Por exemplo, essa canção / Que algoritmo a pariu? / Me pergunto se fui eu / Você a escolheu ou ela te escolheu? / Deus era a letra miúda no final do papel / Não contamos mais com Ele / Fim da lua de mel / E o livre-arbítrio é um curso vazio / Um barco sem rio / Nem timoneiro / Todos aplaudem, você também / Mas não fica claro quem / Tem a frigideira pelo cabo / Do sacrifício / Pele ou silício / E o precipício / Diz: "Venha, venha, venha".


***

Ilustração: Lúcia Alday

2022 por Paola Schroeder, Claudio Daniel, Rita Coitinho e André Dick

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