top of page

“As coisas”: o mundo na sensibilidade de Arnaldo Antunes

Foto do escritor: jornalbanquetejornalbanquete

Por André Dick


O poeta Arnaldo Antunes, nascido em São Paulo, em 1960, iniciou sua trajetória poética com OU E, publicado em 1983, um ano antes de participar do primeiro disco dos Titãs. Antunes sempre apresentou, desde o início, uma poesia baseada na materialidade da palavra, com influência visível da poesia concreta, mas associada a outros recursos plásticos que a tornam singular. Depois de Psia e Tudos, livros com uma sequência de poemas alternando o verbal e o plástico, com uma sonoridade refinada, Antunes publicou aquele que é possivelmente o livro que melhor define sua trajetória, As coisas, em 1992.


De maneira ampla, Arnaldo apresenta, desde sua produção inicial, uma proximidade poética da linguagem infantil, o que se apresentava não apenas em suas composições do Titãs, como “Família” (“Família, família / Cachorro gato galinha”) e “Comida” (“Bebida é água / Comida é pasto”), ou para Marisa Monte, em “Beija eu”, e se fazia presente também em seus livros iniciais de poesia, mas o ponto em que tudo convergiu, aliando propostas de todo o seu percurso, se dá exatamente nesse livro. Arnaldo já se referiu com precisão a ele em algumas de suas entrevistas, destacando sempre o aspecto lúdico dos textos. Isso se dá não apenas nos poemas que se apresentam como longas explanações, como sobre a chuva, como aqueles em que o verbo é apenas uma estranheza vinda da infância: “Dentro da boca é escuro”.


É interessante como o livro, nesse sentido, já se inicia com uma espécie de minifábula:



É exatamente isso que acontece para o poeta e para o leitor – uma entrada nas divagações proporcionadas pelo cérebro, brincando com a troca da palavra “Sésamo” por “cérebro”. É como se o leitor fosse convidado, de modo provocativo, a abrir também seu cérebro para o que vem a seguir, para os inúmeros sentidos que a poesia pode proporcionar. Além disso, os poemas são acompanhados por ilustrações de Rosa Moreau Antunes, que acentuam o trabalho lúdico e experimental do livro, com o uso da fonte em diferentes formatos, de acordo com o tamanho do texto.


A partir daí, As coisas se constrói como uma espécie de manual poético para tentar denominar inúmeras coisas: as cores, o mar, o corpo, as árvores, os óculos, as palavras, a água, o sol, os insetos, e por aí segue, enfocando o que parece óbvio, mas traz uma estranheza sempre poética, no poema “Tudos”: “Os dentes quando a gente escova ficam brancos. Cabelos quando ficam velhos ficam brancos”. É uma poesia no seu âmbito mais primitivo, digamos assim, mas como se contasse a experiência de ancestrais: “Crianças gostam de fazer perguntas sobre tudo. Nem todas as respostas cabem num adulto”.


Trata-se de um livro tão determinante na trajetória de Arnaldo que alguns de seus poemas fariam parte de seus projetos seguintes. Em Nome ele musicaria “Um campo” (“Um campo tem terra e coisas plantadas nela. A terra pode ser chamada de chão. É tudo que se vê se o campo for um campo de visão”), “Cultura” (certamente um dos poemas que melhor sintetizam esse caminho de Arnaldo: “A cegonha é a girafa do ganso. O cachorro é um lobo mais manso (...) O camelo é um cavalo sem sede. Tartaruga por dentro é parede”), “Se perde” (“Se perde se não se ganha se pede se não ganha”). Em Nome, há, igualmente. peças que poderiam aparecer também em As coisas, como a faixa-título “Nome” (“algo é o nome do homem”) e “Pouco” (“Sempre é pouco quando não é demais”), mas principalmente “Pessoa” (que parece uma parte diretamente ligada ao livro de 1992, com sua construção: “Sujeito. Água que o sol seca, que a terra bebe. Algo que morre, falece, desaparece. Cara, bicho, objeto. Nome que se esquece”). Também para a trilha do grupo Corpo ele musicaria o poema “O corpo”: “O corpo se cortado espirra um líquido vermelho. O corpo tem alguém como recheio”. Em Um som, ele gravaria “As árvores” e “Dinheiro”; em Ninguém, o poema “No fundo”. `Por sua vez, Gilberto Gil musicaria o poema que dá título ao livro, “As coisas”:


Arnaldo elabora neles com mais precisão uma poesia que já vinha se desenhando desde OU E, com seus belos poemas plásticos, em Psia – no poema com uma sequência de perguntas, por exemplo –, e Tudos – que apresenta pela primeira vez o já referido poema “Tudos”, assim como construções que mesclam a melhor tradição experimental com o evidente: “o choro vem do meio do corpo o choro não vem do olho”; “palavra lê / paisagem contempla / cinema assiste / cena vê”; “o cabelo cresce porque / cresce pelo cresce porque / cresce grama cresce porque / cresce planta cresce porque o cabelo cresce porque”. Por trás do que parece óbvio, vai se descortinando um universo muito singular – é o poeta contando para o leitor, como se passa pela oralidade, de geração para geração, a sua visão íntima sobre o estado de coisas do universo em que se insere e com o qual interage de maneira profunda.


Além disso, é possível notar num poema como “Os lugares” algo que antecipa a notável canção “Disneylândia”, que Arnaldo faria com os Titãs em Titanomaquia. Ele diz no poema: “A guiana francesa fica longe da frança. A áfrica do sul é na áfrica. O equador fica no meio do mapa. O hawai fica no meio do mar”. Por vezes, Arnaldo insere referências musicais, como a Dorival Caymmi em “O mar”: “E quando requebra na praia é bonito”. Toda essa projeção de As coisas para o caminho da poesia de Arnaldo indica o quanto o livro é importante. Nando Reis, no livro Letra, música e outras conversas, de Leoni, dizia o quanto o trabalho de Arnaldo influenciava ele e os Titãs. Um trabalho do grupo que certamente elabora músicas que lembram o trabalho de Arnaldo às vezes sem ele fazer parte direta da composição é Õ blésq blom: “As flores de plástico não morrem”, verso de “Flores”, poderia compor As coisas, por exemplo; é notável a presença da poesia de Arnaldo, sem ele ter composto diretamente. Ou a canção “O camelo e o dromedário”, com uma série de perguntas ou observações infantis para determinar diferenças entre o camelo e o dromedário. Ou “Palavras”. Em “Miséria”, possivelmente um dos pontos de convergência com As coisas, Arnaldo escreve: “Miséria é miséria em qualquer canto / Riquezas são diferentes / Todos sabem usar os dentes / Riquezas são diferentes / (...) / Cores raças castas crenças / Riquezas são diferenças”. Isso poderia estar em As coisas, facilmente, assim como “O pulso”: “O pulso ainda pulsa. O corpo ainda é pouco”. Ou “Racio Símio”, parceria de Arnaldo com Nando Reis e Toni Bellotto: “Os cavalheiros sabem jogar damas / Os prisioneiros podem jogar xadrez / Só os chatos não disfarçam / Os sonhos despedaçam / A razão é sempre do freguês”. Essa linguagem já era trabalhada principalmente desde o primeiro disco dos Titãs, numa letra como “Pule”: “A água do mar é boa / A água da torneira é boa / A água da chuva é boa / Água de colônia é boa / A água da lagoa, legal /Então pule da janela”, de Arnaldo e Paulo Miklos, ou “Pavimentação”, do segundo disco, Televisão, que dizia, com uma série de questionamentos e definições que remetem aos poemas de As coisas: “Ninguém sabe como o plástico é feito, ninguém sabe / Como o leite é feito ninguém sabe, não se sabe / A fórmula da Coca-Cola é segredo / A da Pepsi também foi feita por alguém / Plástico feito por ninguém / / Sabe como o chão é feito, do quê é feito o chão? / Pé esquerdo, pé direito, pavimentação / Eu digo pavimentação (pavimentação) / Pavimentação (pavimentação) / / Mas do quê é feito o chão? / (Pedra) pedra, (piche) piche / É feito de pedra e piche (é feito de pedra e piche) / É feito de quê? / / É feito de pedra (é feito de pedra) / É feito de piche (é feito de piche) / É feito de pedra e piche (é feito de pedra e piche) / Pavimentação / / Ninguém sabe como a gente é feita, se a gente é feita ou não / Mão esquerda, mão direita, bate palma então, quero ouvir! / / (Pá, pá, pá) pavimentação / (Pavimenta) menta / Mentalização”. Igualmente, isso ressurge em Cabeça dinossauro, em letras como “O que” e “Família”, e em Jesus não tem dentes no país dos banguelas, no qual Arnaldo é compositor de “Todo mundo quer amor”: “Todo mundo quer amor / Todo mundo quer amor de verdade / Uma pessoa boa quer amor / Uma pessoa má quer amor / Quem tem medo quer amor / Quem tem frio quer amor”, construção que caberia bem também em As coisas – embora não em sua totalidade.


Ao longo de As coisas, há a aquela reflexão que, ao misturar a infância e a vida adulta, é possível entender o mundo por meio de uma sabedoria atemporal, com a ideia e a visão de um sujeito que percebe a grandiosidade que existe nas coisas do cotidiano: “O sol vai embora de noite e volta quando a noite vai embora quando a noite volta e dá a volta durante todo o dia atrás da noite de ontem”. Ou em “Os óculos” o desfecho quase zen, da sabedoria apreendida: “A prata depois de anos preteja. Assim é a prata. A pedra quando afunda turva a água. Assim é a perda”. Nisso, existem alguns aforismos, como estes a seguir:







São como passagens aleatórias anotadas ou ouvidas no convívio com crianças. Esse elemento do universo – e do convívio – das crianças é um dos motes para se entender o trabalho de Arnaldo num escopo abrangente, como se vê, desde seus livros, passando pelas letras, até os objetos das artes plásticas. É um traço presente com muita ênfase não só em As coisas e Nome, mas em Ninguém, seu segundo disco solo, com letras como “Ninguém”, “Como é que chama o nome disso?”, “Minha meu” e “O seu olhar”, e em O silêncio, na faixa-título e em “O que swingnifica isso?”. O livro 2 ou + corpos no mesmo espaço também possui poemas com esse direcionamento infantil – como “O sol”, além de um poema que tem o formato daquele de As coisas chamado “Os sapatos”, assim como temos o conjunto de ready-mades Palavra desordem e os belíssimos Agora aqui ninguém precisa de si e Algo antigo, que trazem uma poesia com traços de denominação não tão explícitos, mas submersos em construções refinadas de versos. Está presente também numa canção como “Lavar as mãos”, que Arnaldo fez para o Castelo Rá-Tim-Bum, ou, de maneira ampla, no seu disco Saiba e no projeto Pequeno Cidadão, assim como no livro Animais, com desenhos de animais intitulados com palavras-valise no melhor estilo joyceano, assinado por Arnaldo e Zaba Moreau.


Na construção elaborada de As coisas, é interessante assinalar, ao mesmo tempo, que Arnaldo constrói poemas como se fossem textos em prosa, mas encadeia, com isso, uma inesperada sonoridade muitas vezes, assinalando o encontro da sonoridade adulta com a musicalidade vinda e aprendida da infância: “A luz lambe as folhas. A luz lambe a parte externa das coisas. (...) Os zooms fecham em close. Pessoas fazem pose” (“A luz”); “As árvores são fáceis de achar. (...) Há as que dão frutas e as que dão frutos. As de copa larga e as que habitam esquilos. As que chovem depois da chuva, as cabeludas. As mais jovens, mudas” (“As árvores”); “O horizonte é o fim da terra. Ali onde o céu encerra. Perfil é um rosto. O sol está posto” (“Perfil”), “Tromba o elefante é o único animal que tem. Língua quase todos, rabo também” (“O elefante”). Desse modo, As coisas, mesmo com sua organização de texto em prosa, acentua sua poeticidade não apenas pelas combinações de imagens, pelas analogias, como também por essa sonoridade bastante elaborada, um dos livros que melhor se aliam à tradição literária infantil brasileira, de Vinicius de Moraes, passando por Cecília Meirelles, até José Paulo Paes, entre outros de notável talento. Algo como uma espécie de correspondente lúdico das vanguardas tão presentes na poesia de Arnaldo:




______________________________________________________________________________________

André Dick é poeta, crítico literário e crítico de cinema, autor de Neste momento (Kotter Editorial, 2022), entre outros.


29 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

コメント


bottom of page