Por Regina Boratto
A definição de livros como “mágica singularmente portátil”, de Stephen King, nunca se materializou tanto quanto na leitura de La visite de petite mort, da escritora e ilustradora belga Kitty Crowther. A vencedora do ALMA 2010 consegue, com a mais absoluta leveza, trabalhar o tema sensível da morte. E da morte de uma criança. Sem qualquer dramaticidade, a autora constrói a narrativa mesclando doçura e espontaneidade, num texto lúdico e tão delicado quanto seus personagens.
A protagonista – a morte – é apresentada na figura de uma criança dócil, tímida e sensível. Em seu trabalho diário de encaminhar pessoas ao reino dos mortos, sente-se triste e só por não ser bem recebida, até que um dia encontra e encanta-se com Elsewise, uma garota doente, que recebe sua visita com entusiasmo. A morte, acostumada a perceber repulsa naqueles de quem se aproxima, surpreende-se com a reação inesperada da menina. O encontro torna-se tão próspero que até mesmo a passagem do tempo é interrompida enquanto as duas interagem e se divertem. Na companhia uma da outra, tornam-se plenas.
No entanto, a morte precisa cumprir seu trabalho... Após levar Elsewise, cai em solidão e melancolia até que, um dia, acaba por reencontrar a menina, desta vez transformada em anjo. E as duas, unidas novamente, partem para a missão de buscar pessoas à beira da morte e dar-lhes novas vidas. Enquanto nesse percurso descobrem que, “na presença do anjo, o medo de morrer se dissolve”, a autora ajuda tambéma dissolver os pesos que circundam o fim da vida.
Toda a magia do livro acontece não só pela forma suave (e profundamente tocante) com que a autora trata o tema, como também pela exata mistura de elementos que reúne para desenvolvê-lo. Ao apresentar a morte como uma criança doce, sensível e solidária, Crowther desconstrói todo o contexto negativo que usualmente caracteriza o processo.
“[...] (A menina morte) bate docemente à porta e, timidamente, se aproxima das pessoas que estão perto de partir. [ ] Ela os leva embora. Ninguém nunca fala com ela... [ ] Ela suspira: ‘é sempre assim’”.
A ilustração, criada pela própria autora, segue a mesma linha da simplicidade caprichosa do texto. A capa já nos revela parte da história, com as duas crianças – a enferma e a morte – de mãos dadas, caminhando diante de um parque com árvores escuras. Apesar dos elementos escuros, os rostos das personagens e o caminho que percorrem se mostram iluminados. Elsewise se apresenta de branco, descalça e sorridente. A capa se divide horizontalmente entre claro e escuro, apresentando contrastes que nos remetem a conceitos opostos como morte e vida, alegria e tristeza, início e fim.
Os símbolos tradicionalmente ligados à morte – vestes negras e foice – estão presentes na caracterização da protagonista. A autora, ao trazer a imagem do ceifador para a obra, nos remete às origens dessa figura mitológica – o deus da morte Thanatos, representante da morte leve e necessária, transportando ao texto esse mesmo conceito. E ao transformar Elsewise em anjo, com suas vestes brancas e imponentes asas, evoca igualmente os princípios da tradição judaico-cristã dos mensageiros de Deus. Apesar das caracterizações seguirem a linha tradicional, as atuações dos personagens passam por caminhos inesperados, surpreendendo o leitor.
Na maioria das páginas, a autora insere uma fonte de luz (lua, lâmpada, abajour, luminária, lustre, fogueira acesa), também relacionada a significados de vida, salvação e felicidade em nossa cultura. Nos momentos mais alegres da narrativa, as páginas do livro se tornam claras, enquanto nos trechos mais sombrios, os tons escuros predominam. Os contrastes entre luz e sombra se alternam à medida que se modificam também os contextos.
Os detalhes da ilustração enriquecem o texto de sentidos. Nos contextos em que a morte se sente feliz, a foice ganha as asas negras do deus Thanatos, destacando o momento de leveza proposto na mitologia.
Além de personagens dóceis, a narrativa é igualmente afetuosa:
“Os mortos são tratados com cuidado”.
“Amorte olha para a menina, fascinada por seu belo sorriso”.
“Elsewise a ensina a brincar. Ela mostra à morte tudo o que sabe fazer”.
E quando a felicidade domina cena, no momento em que a morte aprende a brincar, a autora reveste a protagonista com o manto inusitado do humor inteligente:
“A Morte ri em voz alta. Ela nunca se sentiu tão viva!”.
Toda a obra é apresentada sob o véu da suavidade, mesmo em passagens em que se mencionam medo, frio e inferno. Em todas as circunstâncias, a morte se mostra um ser acolhedor e afável, destituindo do processo de finitude todo o seu rigor.
“Para aliviá-los do frio, a pequena faz uma fogueira. Mas ela percebe que é muito para eles suportarem. Eles pensam que estão no inferno”.
Peculiar o olhar da autora sobre a fragilidade da morte, retratada pelo sofrimento da protagonista por se apartar da amiga e pelo esforço para aplacar o frio e o medo dos que choram ao serem levados. Enquanto transfere Elsewise ao reino dos mortos, espanta-se por não perceber tais sentimentos na menina. Ao chegarem ao reino, elas conversam como em uma visita informal, até a morte perceber a mudança na garota. Implicitamente a autora diz ao leitor sobre o caráter libertador da morte, conferindo à obra expressivo potencial terapêutico:
“Repentinamente ela não se sente mal. Ela está bem”
.
Significativo também o recurso usado por Crowther ao descrever que a protagonista precisa cumprir sua missão de levar a menina do reino dos mortos até a “outra vida”, abrindo espaço para novas reflexões.
“Mas Elsewise não deve permanecer no Reino dos Mortos. Ela deve ir para outra vida”.
Os elementos humanos que Crowther confere à morte e a forma peculiar e sutilmente divertida com que trata o tema tornam La visite de petite mort próxima do leitor, oferecendo meios para que possa elaborar melhor o processo do luto, a compreender os opostos que marcam toda existência ea reverter a ideia de aversão em relação à morte. Transformar a forma de pensar a finitude e os temores que a acompanham – encontra-se aí a grande magia da obra.
(Nota: posso afirmar, por experiência própria, que o potencial terapêutico é expressivo a ponto de funcionar também para adultos).
O livro, publicado pela L’école des loisirs, tem sua primeira edição em novembro de 2005 e é parte da coleção Lutin Poche. O material é impresso na França por Mame à Tour e não tem edição no Brasil.
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Regina Boratto é formada em publicidade e jornalismo É revisora e preparadora de textos, autora dos seguintes livros: A maratona dos bichos (Editora Caminho), A menina reclamona (Editora Tagarela) e Dona Girafa quer conversar (Páginas Editora). Vencedora do concurso Literatura infantil Matilde Rosa Araújo, em Portugal, 2016, com A maratona dos bichos.
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