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Melopeia: a música das palavras

Por Rodrigo Garcia Lopes


A poesia começa a se atrofiar quando

se afasta muito   da música.[1]

(Ezra Pound)


Cantar é apenas a maneira mais deliciosa de dizer.

(Leminski)



Na poesia de Leminski, vemos, gradualmente, sobretudo na virada dos anos 1970 para os primeiros anos da década de 1980, uma passagem da fanopeia para a melopeia. É um período de valorização do dinamismo da fala e seus ritmos, da exploração do coloquial (sobretudo das expressões idiomáticas) e do vernáculo: “a liberdade de escrever como se fala é a alma da minha poesia”, refletia Leminski. Ele próprio deixava claro, em várias ocasiões, essa mudança de ênfase em sua busca poética, para além do suporte livro: “Durante muito tempo, escrevi no espaço, no espaço branco da página, a página do livro, da revista, a página do pôster. Agora, eu poeto no tempo, na substância fugaz da voz, na música, na cadeia de sons da vida. Sobretudo, no corpo da voz, essa coisa quente que sai de dentro do corpo humano, para o beijo ou para o grito de guerra. Para isso, tive de recuperar números, cadências, embalos. Não me interessa que nome isso tenha”[2]. Este insight, como era comum no caso do poeta, deu origem a um de seus melhores poemas, “Sintonia  para pressa e presságio”:


Escrevia no espaço.

Hoje, grafo no tempo,

        na pele, na palma, na pétala,

luz do momento.

        Soo na dúvida que separa

o silêncio de quem grita

        do escândalo que cala,

no tempo, distância, praça,

        que a pausa, asa, leva

para ir do percalço ao espasmo.

 

         Eis a voz, eis o deus, eis a fala,

eis que a luz se acendeu na casa 

       e não cabe mais na sala.


Em grego, melos significa “canção”, “parte de uma canção”.  Poeia, como vimos, vem de poein, “fazer”, “compor”. Na melopeia, segundo a classificação de Pound, “as palavras estão carregadas, acima e além de seu significado comum, de alguma qualidade musical que dirige o propósito ou tendência desse significado”[3]. Embora a fanopeia esteja presente nas imagens que o poema apresenta, a tessitura sonora deste poema de La vie en close[4] é agora energizada por uma série de rimas toantes sofisticadas (pétala/separa, fala/casa, cala/praça, percalço/espasmo, etc.), de paralelismos (“Escrevia no espaço./ Hoje, grafo no tempo”), aliterações (“na pele, na palma, na pétala,” “soo na dúvida que separa”/ o silêncio de quem grita”), repetições e anáforas (“Eis a voz, eis o deus, eis a fala, eis que a luz se acendeu  na casa”).

 

Antes de entrar na canção de Leminski é importante ressaltar que a melopeia explora a musicalidade e a cadência das palavras, a trama de sons e significados. Nela, como explicou Pound, “temos uma força que tende com frequência a embalar, ou a distrair o leitor do sentido exato da linguagem. É a poesia nas fronteiras com a música”[5]. “O poeta”, explica o poeta russo Joseph Brodsky, “trabalha a partir da voz, do som. Para ele, o conteúdo não é tão importante como se acredita habitualmente. Para um poeta, quase não há diferença entre fonética e semântica”[6] . É o que começa a acontecer cada vez mais na poesia de   Leminski.

 

“Pouca gente se dá conta que falar é fazer música. A fala está cheia de valores musicais, melodias, tons, timbres, todos eles carregados de sentido”, Leminski argumentava. Eu lembraria aqui o caso de músicos como Hermeto Pascoal, capazes de transformar a fala, a voz das pessoas que ele escuta conversando, em música pura. “Um texto escrito, por isso”, prossegue Leminski, “jamais será capaz de dar conta da polimórfica riqueza da fala, da qual o texto será sempre ‘esplendor e sepultura’, diria Bilac”[7]. “A música, pra mim”, Leminski contava em entrevista de 1985, “é a maior de todas as artes. Ela é a única arte que não  precisa de justificativa para existir. Já a palavra está suja de história. Ela é uma matéria impura”[8] .

 

Leminski era fascinado pela qualidade da nossa música. Respeitava e entendia a centralidade que a MPB e seus cancionistas tinham na cultura brasileira. “Num país cronicamente analfabeto, a literatura jamais foi a arte através do qual se expressou, plenamente, a alma nacional”. Ele relativizava o sentido da palavra vanguarda, dizendo que ela podia ser encontrada nos lugares mais inusitados, fora da cultura letrada, nas canções.

 

No Brasil, a ponte entre a cultura letrada e a música teve em Vinícius de Moraes seu maior ícone. O nível de sofisticação e potência lírica de Noel Rosa, Wilson Batista, Lamartine Babo, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Capinan, Torquato Neto, Belchior, Aldir Blanc, Milton, Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil, sem dizer da interpretação e estilo de um João Gilberto e das ousadias de um Arrigo Barnabé e um Itamar Assumpção, marcou profundamente a visão de poesia de Leminski, que buscava outros suportes além da página e do livro. A canção, percebeu o poeta, permitiria fazer sua poesia chegar a mais pessoas, sem que necessariamente caísse num facilitário, irradiando-se pelos shows de seus parceiros e intérpretes, pela TV, pelas ondas do rádio, pelos discos – como hoje se irradia pela internet, plataformas digitais e redes sociais. Ele passou a considerar a música como um “vício” e a canção como um dos modos de sua poesia se manifestar. Principalmente, fazer canções passou a ser mais uma motivação para criar e celebrar a vida com os amigos e parceiros.

 

A ênfase crescente de Leminski dada à melopeia significou um retorno às próprias raízes da poesia ocidental. Afinal, a poesia nasce com a música. “Poesia era canção”, frisava Leminski. “O ser da poesia só se explica, geneticamente, pela sua origem como letra de música, porque ela estava ligada com a esfera musical”. Na Grécia Antiga, poesia era sinônimo de lírica: poesia  para ser acompanhada ao som da lira (um instrumento musical). Lembremos que, durante séculos, as palavras poesia e lírica foram sinônimos. No mundo da língua inglesa, lyrics ainda é o nome que se dá para a letra de música. Encontramos exemplos de melopeia na poesia lírica da Grécia antiga, de Homero (a Ilíada e Odisseia originalmente eram entoadas-cantadas), na poesia bárdica anglo-saxã (The Seafarer, Beowulf), na produção dos poetas elisabetanos ingleses (Shakespeare, Donne, Marvell, Crashaw), na poesia do doce estilo novo italiana (Guido Cavalcanti, Dante, Guinizelli), nas canções dos poetas-músicos trovadores da Idade  Média (Arnaut Daniel, Guilhem de Poitiers, Marcabru, Bernart de Ventadorn, Raimbaut d’Aurenga), nas canções galego-portuguesas e espanholas, nos lieds do polaco Chopin, até chegar no século 20 com as canções de Kurt Weill, Cole Porter, Beatles, Tom Waits e tantos outros. “O problema maior”, ele chamava a atenção em março de 1987, “é a própria questão, que é problema de toda uma geração: até que ponto uma letra de música se sustenta enquanto poesia, no papel?”[9]. A canonização da canção se deu, de forma definitiva, com o Prêmio Nobel de Literatura concedido ao músico e compositor Bob Dylan, em 2016. Leminski certamente vibraria.

 

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* Este é um fragmento do livro Foi tudo muito súbito: um ensaio sobre Paulo Leminski, lançado pela Kotter Editorial. Link: https://kotter.com.br/loja/ensaios/foi-tudo-muito-subito-um-ensaio-sobre-paulo-leminski-rodrigo-garcia-lopes/

 

* Rodrigo Garcia Lopes (1965) é poeta, romancista, compositor, tradutor e ensapista. Publicou Solarium (1994), visibilia (1996), Polivox (2002), Nômada (2004), O enigma das ondas (2020) e Poemas coligidos (1983-2020) (2023). É autor do livro de entrevistas Vozes & visões: panorama da arte e cultura norte-americanas hoje (1996) e do ensaio Roteiro literário – Paulo Leminski (2018). Como tradutor, publicou Sylvia Plath: poemas (1990) e Iluminuras: gravuras coloridas, de Arthur Rimbaud (1994), ambos em parceria com Maurício Arruda Mendonça; Mindscapes: poemas de Laura Riding e O navegante (The seafarer, do anônimo anglo-saxão, 2004); Leaves of grass / Folhas de relva: a primeira edição – 1855, de Walt Whitman (2005); Ariel, de Sylvia Plath (com Cristina Macedo, 2007); Epigramas, de Marco Valério Marcial (2017); e Zona e outros poemas, de Guillaume Apollinaire (2024) .


NOTAS


[1] ABC da literatura (Editora Cultrix, 1973), p. 22.

[2] Entrevista a Guilherme Mansur, revista Poesia livre, 1986.

[3] A arte da poesia, p. 37. Vale a pena ouvir como o próprio Pound recitava poesia, como nesta sua tradução de The seafarer [O navegante], da tradição bárdica anglo-saxã. No link: https://www.youtube.com/watch?v=xr6AYzqFK9E

[4] O título, retirado da canção “La vie en rose” (“A vida em cor de rosa”), de Edith Piaf, faz um trocadilho curioso mas amargo: vida em close mas, ao mesmo tempo, uma vida que se fecha (it closes). Remete diretamente à consciência da proximidade da morte, por parte de Leminski, nos últimos três anos de vida.

[5] A arte da poesia (Editora Cultrix, 1976), p. 39.

[6] Em Conversations with Joseph Brodsky, de Solomon Volkov (The Free Press, 1998), p. 160.

[7] Anseios crípticos, p. 56. 

[8] Para Ademir Assunção, Caderno 2, Folha de Londrina, 27/9/1985, p. 13.

[9] Nicolau, ano I, n. 1, junho de 1987, p. 16.

 


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