Hislla S. M. Ramalho
A obra Mojubá é composta por sete capítulos sendo cada um deles contado pelo narrador personagem João Mojubá, que trilha caminhos para contar as histórias dos seus amigos, parentes e conhecidos. Além de João, os outros personagens (Jerônimo, Bárbara, Jorge, Conceição, Tião etc) possuem nomes de santos cristãos, mas são orixás o que ressalta o sincretismo presente no romance.
O enredo envolve questões atuais e faz críticas contundentes à homofobia e ao racismo quando fala do assassinato do personagem fictício, a travesti negra Talita Totonho; à derrubada de casas antigas no Centro Histórico de Salvador para construir hoteis para turistas; à poluição relacionada a contrução de indústrias estrangeiras em Santo Amaro e à mancha de óleo que se espalhou por várias praias no Brasil deixando centenas de pessoas adoentadas e prejudicando o meio ambiente; à má gestão do governo que acoberta e nega os fatos; ao caso Evaldo músico negro assassinado com 80 tiros; ao caso do personagem fictício, Sirlene, a professora negra que sofreu agressões e racismo dentro de sala e dias depois foi encontrada morta etc. As localizações citadas na obra como Cruz das Almas, a rua Gregório de Matos, rua XV de Novembro, o Forte de Santo Antônio, a igreja do Rosário, o Mercado Modelo, o terreiro Ilê Axé Opó Afonjá, o Farol da Barra, o Pelourinho, o Rio Vermelho, as Ladeiras da Preguiça, da Montanha, da Conceição da Praia, o município de Santo Amaro, La Ciudad de La Habana, La Guarida, La Bodeguita del Medio e muitas outras são reais assim com suas histórias, muitas vezes, relacionadas aos orixás.
Da mesma maneira, as referências Mestre do Katêndê, Gregório de Matos, Tiago Alaripe, Malazartes, Mestre Salustiano, Mãe Stella de Oxóssi entre muitas outras também são reais o que coloca a obra no entre lugar do fictício e do real. Será mito? Será realidade? Essa dualidade traz certa dificuldade de definição dos limites do real, porém ela é justamente toda a comunicação, mudança e movimento que o seu mensageiro e protagosnista João representa. “Sem Exu, nada acontece, nada se agita, nada se cria, nada se transcria” (p.12). O sincretismo presente não está apenas nos nomes dos personagens, em vários momentos da trama João relaciona suas comparações e dizeres aos bíblicos quando descreve a beleza de Bárbara e a compara com a de Sulamita feita por Salomão; quando João fala sobre Jesus “ Ele é o que sabe, o que multiplica pães e peixes e muda a água em vinho, Ele é o que sabe”(p.8); quando diz “Exu escreve torto em linhas certas, o senhor anote, todo acontecido tem o seu merecido, o seu necessário, até o número das nuvens está contado, ensina o livro do cristão” (p.21); e quando impede Jorge de vingar a morte de seu amigo ele diz “deixe disso, tudo tem a sua hora e o seu embora, tem a hora do peixe[...] e a hora do revide, o que estiver no pensamento de Obatalá-Orixanlá, isso acontecerá [...]. Há um tempo para cada coisa, [...], tempo de guerra e tempo de paz, ensina o livro do cristão” (p. 45).
A riqueza da obra está na história e em sua construção, a maneira em que o autor tece o tecido pois as referências, citações e casos mencionados requerem conhecimento de outras obras e também consultas em sites sobre as localizações etc. Esse é um texto resistente por fazer denúncias e dar ouvidos a quem tem uma voz silenciada e invisibilizada e por se utilizar de referências, locais e pessoas para contruir uma história, uma poética, uma crítica, uma obra baseada na realidade-ficcção. No primeiro capítulo, João conta sua história, sua origem em Cruz das Almas (Bahia), suas travesssuras com Jerônimo seu amigo, suas mudanças na vida, casamentos, descasamentos, voltas e viagens, e transformações. Narra também as historias do putanheiro do Direito, Jerônimo; da mulher tigresa das águas revoltas, Joana; da mulher amarela de águas doces, Conceição; e da menina-ventania de beleza vermelha, Bárbara sendo as duas últimas mulheres de Jorge. O protagonista põe em relevo a história do encontro de Bárbara e Jerônimo, os dois guerreiros vermelhos, e como ambos trabalharam nos protestos e arrecadações para ajudar os injustiçados e livrá-los do moleque-malvadeza, o prefeito que ansiava por demolir a Casa Vermelha e mais outras casas do Centro Histórico de Salvador a fim de construir hotéis para turistas. Nesse primeiro momento ainda, João explica ao seu ouvinte a razão de estar morando em um caixote - aguarda o retorno de seus amigos queridos Jerônimo e Bárbara que foram embora para São Paulo para evitar a fúria de Jorge, o serralheiro. No segundo capítulo, Bárbara e Jerônimo vão a São Paulo e João fica na Bahia a vender trecos, troços e coisas e aqui o narrador mostra a fúria ferrenha de Jorge por ter sido traído pelo seu mano Jerônimo e deixado por Conceição e Bárbara.
O foco é a história de Jorge e o seu descanso no sítio Alaketu, fundado por seu maninho das matas Tião, e na casa azul da mãe Janaína. Entre descansos e afazeres, Jorge e Tião tomam ciência do caso de um estrangeiro que montou indústrias em Santo Amaro e poluiu toda a cidade, porém, Tião, o agrônomo que dava palestras contra a poluição, contra os agrotóxicos e contra os ruralistas fora proibido de ir ás escolas falar o que sabia, então passou a gravar vídeos e denunciar as irregularidades no Youtube. Todavia, ao encontrar Zanha-Ossanha no fundo das matas Tião tomou uma poção esverdeada e se apaixonou loucamente por àquele deixando apenas Jorge e Janaína no sítio. Vendo isso, Jorge decide voltar a Salvador, deixando a mãe sozinha na casa azul turqueza. Janaína chora tanto em sua tristeza que se transforma em rio. O choro tranforma Janaína em muitas águas, então João diz “o que houve com seus filhos, yabá, dona-dos-dons-e-das-dunas, onde estão? [...] Eles fugiram, yabá, para os fundos do mar? Ela chorará até as lágrimas virarem conchas; [...] ela chorará até as rosas virarem a espuma branca das ondas, em seu fluir e refluir, em seu devir de água-de-águas” (p.32).
O capítulo três trata do retorno de Jorge a Salvador, agora já pacificado, das canções em iorubá que cantava no seu retorno, das cartas tiradas e lidas por Tia Maria Menina a Jorge, da sua visita ao Dr. Lazinho, alcunhado o-médico-dos-pobres, que outrora fora criado pela mãe Janaína e que depois de tantas doenças que teve decidiu aprender a curar. Esse capítulo ainda trata das andanças de Lazinho pelo mundo e de seu encontro com Jorge em Salvador. A conversa do mano-dos-ferros (Jorge) com o mano-das-palhas (Lazinho) é sobre José Izídio Dias, que Jorge considerava seu avô e que morava no Quilombo Rio dos Macacos; seu Izídio se enfurnou no quilombo para lutar pelo direito dos quilombolas e a situação foi a seguinte: a marinha brasileira construiu a Vila Naval de Aratu, nas terras dos pretos “os maldosos entraram lá como legião de bestas do inferno, com máscaras, facões e porretes: queimaram lavouras, derrubaram casas, surraram meninos e velhos, violaram negrinhas, roubaram posses dos coitados, ameaçavam de morte, na malvadez de asmodeus. "(p.44).
Seu José Izídio lutou e falou contra as autoridades defendendo a comunidade, foi morto a machadadas e o crime ficou impune na terra de Santa Cruz. Ao fim desse capítulo, Lazinho traz à tona a questão da mancha de óleo nas praias brasileiras e diz “Peixes, mariscos, moluscos, caranguejos, siris e pássaros marinhos morriam na costa, embebidos na tinta do óleo escuro, e os banhistas saíam das águas com a pele viscosa, em nesgas de breu pegajoso. O pretume-de-piche inundou as praias de Salvador, Boipeba, Canavieiras, Belmonte, Trancoso, Abrolhos, Carneiros, Corumbau, ninguém sabia de onde vinham aquelas manchas pretas[...].Pescadores e marisqueiros ficaram desesperados, ninguém queria mais comer peixes e frutos-do-mar, ficariam sem ganha-pão, os pobres-diabos, quando as jangadas voltariam ao mar?” (p.45). A crítica é contundente, atual e faz o leitor refletir sobre os sistemas e políticas de governo que o Brasil tem e o que realmente se quer para ele, Será o Brasil do negacionismo? Será o da mentira? Será o da verdade? Prosseguindo, João Mojubá começa a próxima seção contando e cantando a narrativa iorubá sobre a força e coragem de Xangô ao entrar na casa do Alafim de Oió, e o oriki (literatura, texto, canção) de Xangô “Aquele-que-luta-todas-as-pelejas e que nunca é condenado porque luta por justiça” (p.49). Seguindo suas divagações, João pede benção “Motumbá”, e volta à história de Jerônimo e Bárbara, onde moravam depois que mudaram para São Paulo e como os dois trabalhavam . Nesse capítulo (quatro), João narra como Jerônimo e Bárbara lutavam pela justiça e contra o atual governo que fez a porteira do inferno se abrir trazendo todas as coisas “medonho-lazarentas, Azabel, Abalam, Alastor, Asmodeus, Astaroth que saíram dos buracos-de-tormenta-do-capeta-de-chifre-furado das tocas-de-corno-do-grande-cão” (p.56).
Jerônimo como advogado trabalhava em um escritório defendendo o que é justo para os trabalhadores sem-terra, para os estudantes da faculdade de Direito do Largo de São Francisco etc. Bárbara como professora de dança afro no espaço cultural da Praça Roosevelt. Esse capítulo põe em relevo os trabalhos, passeios, paixões e amores do casal descrevendo a cidade de São Paulo e a forte tradição japonesa ali presente através do Festival de Estrelas, Tanabata Matsuri. É em meio a essas descrições que Jerônimo vai até um ato em homenagem a Marielle Franco, vereadora, mulher, lésbica e negra morta por milícia de facistas, e durante o ato inesperadamente surgem jovens chamados Patriotas pichando suásticas, batendo nas pessoas, causando o pandemônio. O fato /caso marcante evidenciado nessa parte foi o assassinato de Marielle Franco com todo o tipo de injustiças e atrocidades feitos e ditos por um governo alimentado pelo ódio, racismo, homofobia, misoginia e intolerância religiosa quando traficantes de Jesus entram nas casas de Candomblé e Umbanda violando, quebrando, desrespeitando, agredindo as imagens sagradas dos orixás.
O capítulo cinco é central, possui muitos orikis, muitas narrativas orais em iorubá e muitas denúncias atuais das coisas horrendas que se passam atualmente no Brasil. Se inicia com o oriki de Oxum, linda mulher-do-mistério-do-rio, e com uma narrativa oral matriarcal sobre as moças levadas pela chuva e que se transformam em estrelas, em moças-flores. O foco da história é Conceição, que retorna a Salvador depois de passar uma temporada na casa de sua Madrinha Aparecida no Rio de Janeiro. Depois que foi deixada por Jerônimo, ela que se amava mais do que outra coisa, ela-o-amor-só-dela voltou mais linda a Salvador e trabalha como secretária em um escritório de arquitetura e design. Ela vai desfilar no Carnaval, no Afoxé que “é o bloco em que se canta os cantos dos santos e se dança o ijexá, ao som de atabaques, agogôs e xerequês” (p.62).
Nesse momento há a descrição dos orixás e das suas cores no Afoxé em que “todo mundo é menina-e-menino, branco-e-preto, humano-e-divino, iguais-a-seus-iguais, todos-são-um-e-o-outro” (p.62); há a contação do oriki de Ogum-o-poderoso, aquele-que-tem-água-do -rio-em-casa; da sua história, da narrativa oral das matriarcas que o dito resolveu sair da cidade e ir morar na floresta, cansou de forjar nos ferros e os orixás ficaram temerosos, pois precisavam de armas fabricadas por ele para agricultura, pesca e guerra. Ogum foi inflexível e não cedeu aos pedidos dos orixás, vendo isso, Oxum Apará vai ao seu encontro para conversar, mas encanta Ogum e o faz retornar a cidade para a felicidade de todos.
Seguindo as histórias, João volta a contar o fato de Jorge não sentir mais raiva dos amantes Jerônimo e Bárbara, mas sim medo, o medo das visões do inferno. Com as várias coisas terríveis que estão ocorrendo no Brasil, Jorge soube da morte matada de Evaldo-o-sambista, Evaldo-o-músico-negro, enquanto dirigia seu carro na estrada de Camboatá em Guadalupe (no Rio de Janeiro) acompanhado da mulher e filho, quando foi confundido com um ladrão e foi alvejado com 80 tiros. “Vivemos no tempo da oh-a-insanidade-oh-minha-loucura.” (p.66). Luciano, o-catador-de-papéis que foi ajudar Evaldo acabou sendo morto também pela fuzilaria do Asmodeus. O que fazer? Após mencionar o brutal assassinato de Evaldo e Luciano, a narrativa volta para Jorge e, em meio a esse mundo de tantas atrocidades, ele decide fazer um arquivo digital com a ajuda de estudantes, professores, ativistas sociais, donas de casa e muitos outros colaboradores para pesquisar e reunir os malfeitos-brutescos-malafaias contra o povo pobre, os indígenas, o meio ambiente os negros etc. Enviando essas notícias aos órgãos de defesa dos direitos humanos, jornais internacionais para que nada ficasse escondido, esquecido. Jorge lutava para preservar a memória, a história e que ninguém esquecesse de Mariana, Brumadinho, Amazônia, Pantanal e outras tragédias.
Entre narrativas de Oxum, a história volta a Conceição que saiu do emprego explorador e foi procurar outro achando uma vaga de secretária em uma agência de notícias. O capítulo seis se inicia com a narrativa oral de Oxum que se tornou Oxum Ijimu, a velha e feia senhora da lagoa, e continua a história do encontro de Conceição e Jorge na porta do escritório na Ladeira da Barroquinha. Ele precisava de uma secretária e ao realizar a entrevista lhe contou das injustiças que viu e o que faria para lutar contra elas, as denúncias que faria com “vozes-denúncia, vozes-vermelhas, vozes-berrantes para formar um imenso vozerio” (p.75). Outra narrativa oral de Ogum é contada, ele cansado do orum veio viver no ayê para ensinar o que sabia para a humanidade. Ele, o-senhor-que-conhece-todos-os-caminhos, o senhor-dos-metais-rutilantes, o senhor-do-fogo-e-da-forja ensinou os humanos a usarem armas de ferro para caçar, plantar, pescar e guerrear. Entre narrativas sobre o Orum, o ayê, a luta de Xangô e Ogum e o amor de Ogum e Oxum, é que a história de Conceição e Jorge está situada.
Ela agora sendo a secretária, fazia Clippings das matérias mais importantes, arquivava pastas específicas do banco de dados, casos de racismo, machismo, homofobia, violência policial dentre outros; agora sentia que estava fazendo algo importante. No meio do caos “Eles-os-abominosos invadiam reservas indígenas, matavam jovens na periferia, estupravam mulheres, depredavam casas de axé, numa insanidade sem fim. Eles-os-abominosos agrediam lésbicas nos vagões do metrô, batiam nos meninos que gostavam de meninos, até desfigurarem os seus rostos. Era a loucura-só-loucura, a necrose, a lepra que se espalha na nação-horror.” (p.81).
Ela ficou horrorizada quando viu a história do menino-índio-pataxó que gravou o vídeo dos missionários brancos invadindo sua tribo e obrigando o povo a se desfazer de seus deuses usando as armas e a violência para isso. A agência Ogum Alagbedê recebia cada vez mais denúncias “do hediondo, do horrendo, do horrífero”. (p. 82). Dessa vez, foi o caso (fictício) de Sirlene que namorava o filho da diretora, ambos brancos, e que sofreu racismo e agressão dentro e fora da sala de aula por parte da própria diretora. Sirlene foi demitida injustamente e um mês depois encontrada morta em um matagal com as costas vermelhas, chicoteadas. A agência e Conceição receberam comentários odiosos, cruéis, racistas. “Vivemos dias estranhos, de abismação” (p. 87). O capítulo seis também conta o caso do Seu Leocádio que se recusou a pagar propina a milícia Caveira Zero Sete e sua esposa teve sua mão queimada em óleo quente. Com todas essas crueldades no mundo, Conceição tinha medo, mas mesmo assim ia ao ensaio para desfilar o Afoxé. A última parte narra o encontro familiar do casamento de Tião e o pesadelo que se abateu no Brasil depois do dito evento. Jorge e Conceição oram exilados no exterior em Portugal porque durante o Carnaval Conceição recebeu três dedos humanos em uma caixa de presente e um recado ameaçador. O doutor Lazinho também decide sair de Salvador e ir para uma aldeia de pescador chamada de Yemanjá Malelé, ele ficaria lá até saber a hora de voltar. Já João Mojubá termina de narrar o livro falando que aguarda Jerônimo e Bárbara voltarem a Salvador para tirá-lo de sua penitência, apesar de no momento Jerônimo estar preso por defender os sem-teto que ocupavam um prédio abandonado no centro da cidade de São Paulo. A obra traz uma mistura de romance, ficção, história e realidade. Possui várias vozes-denúncia sobre os absurdos que aconteceram e estão acontecendo no Brasil. Os casos inseridos no enredo são contatos de uma maneira completa com contexto, momento, razões e pessoas/ grupos envolvidas/os, pode-se notar uma veia jornalística. Em outras palavras, apesar de falar do amor e das histórias dos orixás e trazer um aspecto fictício e mítico ao romance, a construção do texto é toda feita com elementos reais :as referências, as localizações, os casos de morte, racismo, homofobia, injustiças, negacionismo e fascismo. A crítica é evidente e não deixa dúvidas, os orixás lutam dentro de cada batalha, cada guerra contra o asmodeus e todo seu exército.
Aqui, é interessante pensar em como a transformação das divindades que são personagens se relacionam desempenhando suas funções no mundo real. Mojubá aproxima toda a ficção, todo o campo mítico com o que acontece no mundo real. Os orixás lutam, cantam, dançam, passeiam se relacionam. O texto traz toda a espiritualidade para a materialidade, para o concreto. Em relação ao sincretismo presente, cada personagem foi estrategicamente pensado para ter traços físicos e de personalidade semelhantes aos do orixás. João Mojubá é Exu, Jerônimo é Xango, Bárbara é Iansã, Jorge é Ogum, Conceição é Oxum, Mãe Janaína é Yemanjá, a vó Nanã é uma orixá ancestral guardiã do saber, Tião é Oxóssi, Lazinho é Obaluaê/Omulu, Zanha- -Ossanha é um orixá das folhas e ervas medicinais. Percebe-se essa mistura nos capítulos quatro, cinco e seis em que entre cada história de Jorge, de Conceição, de Bárbara e de Jerônimo são intercaladas narrativas orais iorubá, com orikis (...) e canções sobre a força, a coragem, a beleza e os domínios de cada orixá. O título Mojubá já traz a potência da obra porque é uma comunicação de Exu com os homens e os orixás, mas também é a comunicação (voz- denuncia) que a própria obra carrega, leva e traz. Segundo o site juntosnocamdonblé a palavra Mojubá é “uma saudação para Exu Orixá, mas também um termo utilizado para todos os Orixás (da cultura nagô), onde o significado é bem amplo [...] Eshu é o mensageiro, o que comunica aos homens a vontade dos Orixás e, a estes, leva o pedido dos homens”.2 Dessa maneira, o livro vem, para além de uma representação literária e crítica, como um resultado de comunicação de Exu com os homens e mulheres, como uma maneira de saudar, respeitar e reconhecer a grandeza e magnitude da entidade EXU. Ao tecer esse tecido, Cláudio Daniel lançou mão de vários recursos poéticos, rítmicos e sonoros espetacularmente encaixados como: a criação de neologismos (nomes-atributos, e xingamentos) com a utilização do hífen; a maneira de narrar ao fazer uma contação de histórias; o ritmo marcado pelas repetições, aliterações e cadências; a inversão dos provérbios (que trazem à tona as travessuras de Exu); e a relação entre passado, presente, e a constante mutabilidade das coisas, da vida. No desenvolver da trama, a utilização de neologismos com hífen como em “noite-de-não-me-lembro” (p.18); “menina-que-dança- -com-o-vento”(p.17); “aquele-que-quando-dorme-fecha-um-olho-só”; “amada-de-rabo-escamoso” (p. 26) dentre outros (já citados aqui e presentes na obra) faz com que o texto tenha um ritmo por vezes parecido com um fluxo de consciência, uma vez que flui sem pausas no momento dessa criação adjetivação-descrição das situações e dos próprios personagens.
A narração das histórias, apesar de escrita, ressalta a oralidade quando coloca em evidência a forma de falar (expressões e ditados) dos locais mencionados como em “Se me dão corda, falo mais do que a mulher da cobra” (p.6); “Inês é morta? Que vá em paz para o lugar onde o porco mia, ele que não iria pensar na morte da bezerra”. (p.9); “que tire o cavalo da chuva e vá se queixar com o arcebispo, lá onde Judas perdeu trinta moedas.” (p.10). Além disso, a narração traz o ritmo de diálogo com alguém que escuta a mensagem de João, infere-se esse fato pelas perguntas feitas: “..se tiver tempo, posso contar. Quer ouvir...?” (p.5); “ o senhor acredita?” (p. 73);“ Onde estava mesmo? O senhor me desculpe. Sempre me perco...” (p.6) etc. Nota-se que alguém o ouve e apenas entra na narrativa para guiar a trilha lógica do discurso de João, para o fazer voltar para os pontos cruciais do enredo. O ritmo da obra é marcado por repetições, aliterações e cadências. No início do texto João, fala de sua situação de rua e faz sua crítica “ Ninguém vai tirar o que tenho, esses poucos trapos, esses tristes trastes, nem bandido, nem a polícia militar”. A explosão da aliteração em /t/ (tirar, tenho, trapos, tristes, trastes) cresce gradualmente até alcançar um apogeu e ser ralentado pela repetição da palavra “nem”.Outro trecho em que o autor costura esse tecido com ritmo e sentido é quando fala como João foi parar na rua. Ele diz “ ...Vendia vestidos, lenços, leques, cangas, miçangas, caixinhas 2 < http://www.juntosnocandomble.com.br/2017/02/o-que-significa-laroie-e-mojuba-saudacao-de-exu.html?m=1> Acessado em: 10 de novembro de 2021. de madeira, gamelas de madeira, máscaras de madeira, tantos trecos e troços, até viver na rua , até ser homem de rua, do povo da rua...” (p.7). Aqui o ritmo acompanha o diminuir de suas posses; o início com a aliteração da fricativa /v/ com as palavras “vendia, vestidos” e depois com a lateral /l/ com “lenços e leques”, que mostra as muitas coisas que tinha, é invertido para rimar o final das palavras “cangas e miçangas” (que apesar de estarem no plural são de menos valor que os itens citados anteriormente). Trazendo o movimento e a mutabilidade, o ritmo decresce pela repetição do complemento “de madeira” e cresce pela aliteração em /t/ “tantos, trecos e troços”, e cai quando, apesar de adicionar elementos a frase repete a palavra “rua”. O tecido é melódico, para ser cantado e contado e vice versa. A potência de quem conta, como conta, para quem conta é posta em relevo porque a todo momento todos os caminhos rítmicos, sonoros e semânticos voltam para a essência, Mojubá. No exemplo a seguir pode-se perceber como a anáfora, a gradação, a aliteração e o clímax fluem, crescem e retornam ao ponto de onde sairam – “ Cada um tem o seu odu, escondido no oco de um búzio. Há o destino da formiga, há o destino da coruja e há o destino do macaco, há o destino do carteiro, há o destino do coveiro, há o destino do soldado, há o destino da nuvem, há o destino do assassino e há o destino do riacho. Por isso é preciso saber qual é a sua trilha, o santo que te guarda e te guia, para escapar dos tigres e encontrar as maravilhas” (p. 7).
No momento em que fala “Não reclamo, não senhor, porque não sou de queixumes e sempre tenho uma carta na manga, rei de ouros, rei de paus, rei de copas, rei de espadas, quatro ases ou coringa, e sei que tudo é do jeito do camaleão: tudo muda o tempo todo, menos o olho da lua, o olho do leopardo e o olho do cu.” João Mojubá mostra a instabilidade, o que pode ou não estar posto; nada está garantido. A construção desse trecho como muitos outros dentro do enredo possui um ritmo que além de cantar para quem lê, mostra também a essência de seu protagonista. João mantém uma linha ao citar as cartas, mas faz uma ruptura ao falar do camaleão e do que possivelmente não muda. O inesperado e a surpresa fazem parte dele, não o pegam desprevinido. Ao causar uma ruptura na convenção se utiliza de inversões e paradoxos como: “...em terra de caolho, quem tem um cego é rei...” (p.5); “...não engulo sapo, nem angu de caroço...” (p. 6); e “...O senhor saiba, eu não procuro pelo em ovo, chifre em cabeça de formiga, não beijo focinho de anta, nem dou nó em pingo d’água...” (p.7). Aqui há uma mudança de lógica, atitude, discurso que não é apenas semântica, mas poética e rítmica. Entre indas e vindas, o jogo ondeante do texto tecido põe em relevo o leva e traz de um mensageiro do presente ao passado e vice versa, João fala do que aguarda e diz “...alo daquilo que me lembro, e me lembro cada vez menos, até ficar desmemoriado. Quando perder de vez a memória, não haverá mais história...” (p.5). A comunicação, a narração, o traçar da origem dos caminhos até o hoje é Mojubá, é cantar e contar a relação entre a memória, a história e o presente. Assim, Mojubá é comunicação, é voz-denúncia; traz à tona aquela narrativa oral “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”.
Ela é estabelecida contando e cantando a história que forma uma negligenciada e importantíssima parte da identidade negra no Brasil, fala do passado, das tradições, assim como fala do presente, do atual, do horrífero, dos absurdos que o povo brasileiro com todas as suas minorias enfrentam todos os dias com um louco matando e levando todos para o “o buraco..”. Ela também dá perspectivas para o futuro; continuar denunciando, trabalhando e aguardando os guerreiros Iansã e Xangô voltarem para que o povo destrua o capitão malvadeza e tudo que lhe representa. Axé!
*Artigo publicado originalmente na revista Qorpus.
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