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NO MEIO DA RUA: POESIA COMO ARTE INSURGENTE

Por Fabiano Calixto


O medo dá origem ao mal

O homem coletivo sente a necessidade de lutar

O orgulho, a arrogância, a glória

Enche a imaginação de domínio

São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade

Viva Zapata!

Viva Sandino!

Viva Zumbi!

Antônio Conselheiro!

Todos os Panteras Negras!

Lampião, sua imagem e semelhança!

Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia


Chico Science & Nação Zumbi




Poesia como arte insurgente é uma reunião de textos sobre poesia e política do poeta e editor estadunidense Lawrence Ferlinghetti (1919-2021). Livro de combate, de carregar pela rua, no bolso e no coração. É composto por cinco textos (“Poesia como arte insurgente”, “O que é poesia?”, “Manifesto Populista #1”, “Manifesto Populista #2” e “Poesia moderna é prosa”) que foram sendo escritos e reescritos, com acréscimos e exclusões, durante décadas. Um dos textos, “O que é poesia?”, por exemplo, possui versões que datam ainda dos anos 1950. Os dois manifestos populistas (que também já foram impressos em outros livros) e “Poesia moderna é prosa” são dos anos 1970. Poesia como arte insurgente, como agora se apresenta ao leitor, foi lançado em 2007. Temos em mãos, assim, uma bela e inquietante lírica de combate, com uma insistente e melodiosa música utópica/anticapitalista de uma das vozes mais aguerridas da poesia em língua inglesa do século XX.


A insurgência desta poética responde a uma necessidade de o poeta se mover com suas armas (as palavras, o pensamento) contra o sucateamento das condições de vida no planeta promovido pela barbárie neoliberal e seu projeto de crise permanente, que espalha pobreza, miséria, humilhação e morte pelas sociedades planetárias. É um livro contra o capitalismo, o que quer dizer também: contra a dinheirolatria, a devastação ecológica, a exploração e opressão dos pobres. Contra o racismo, o machismo, a homofobia. Contra os dogmas, os poderes, os policiamentos, os fascismos. Contra a falta de imaginação, a colonização das mentes, dos desejos e das emoções. Contra a vida miserável que o sistema capitalista quer que todos nós, desolados e miseráveis, vivamos. Esta poética é, portanto, contramorte.


Arte e vida, poética e política são pilares deste trabalho e criam ambientes habitáveis para o pensamento, para a experimentação contínua, construindo pontes através de sua tecnologia verbal e abrindo campos para que outros cenários de vida comunitária possam ser vislumbrados. “Se você quer ser poeta, descubra novos modos de vida para que os mortais habitem o planeta Terra.” “Se você quer ser poeta, invente uma nova linguagem que todos possam entender.” “Comprometa-se com alguma coisa além de si mesmo, deixe de ser ególatra.” São textos onde o coletivo é insistentemente estimulado ― mundos de todos, linguagens de todos, comprometimento de todos. Os possíveis novos modos de vida podem ser construídos coletivamente através de uma sociedade socialista por vir. O socialismo pode triunfar. If you want it.


Nestes escritos, que são uma expressão firme, contínua e insistente contra todas as formas de pensamento reacionário, o papel do poeta (do artista) no tecido social é discutido o tempo todo. O poeta é o agenciador da linguagem que escreve os futuros possíveis apagados pelo capitalismo neoliberal. Assim, a poesia (a arte) pode transformar as coisas (“A poesia é a Resistência suprema”) de algum modo pela contínua excitação das ideias e da reflexão atenta (“Cultive a dissidência e o pensamento crítico”), da força imanente de sua substância intelectual (“Seja subversivo, questione constantemente a realidade e o status quo”), do cultivo atento da imaginação criativa (“Poesia pensante não precisa abrir mão do êxtase”), da defesa convicta da alegria (“Não escorregue na casca de banana do niilismo, ainda que escute o rugido do Nada”; “Crie alegria coletiva diante da melancolia coletiva”).


Há, como sabemos, imensas contradições no papel da cultura na vida política. Porém, a cultura é hoje um dos principais pontos do campo de batalha ― é através dela, por exemplo, que o neoliberalismo coloniza não só os pensamentos e desejos, mas as próprias emoções. Num prefácio à segunda edição de Marxismo e crítica literária, Terry Eagleton diz que “faz parte do materialismo cultural a afirmação de que a cultura não é, no fim das contas, aquilo em que homens e mulheres baseiam suas vidas. Mas ela também não é insignificante; toda batalha política importante é, entre outras coisas, uma batalha de ideias”. “En la lucha de clases/ todas las armas son buenas/ piedras/ noches/ poemas”, diz um dos poemas mais populares de Paulo Leminski. Cultivar a rosa do socialismo nos corações e mentes via cultura é um movimento central. Claro que as batalhas na frente cultural não são as únicas. Ela é apenas uma das frentes e há, claro, necessidade de outras. Para mudar de verdade o sistema, a situação miserável deste mundo, as estruturas de exploração e opressão, é necessário o socialismo, teoria e prática. Depois de tanto tempo de massacre capitalista, qualquer outro caminho soa inócuo. E, ainda assim, a cultura é central nessa batalha.


De todo modo, o “fermento dissidente internacional” que dá força a estes textos é também o maquinário de guerra de Ferlinghetti, seu modo de agir no mundo. E, com seu espírito jovem e revolto, foi um poeta sempre muito atento às movimentações do seu tempo. Atravessou inúmeras e importantes agitações contraculturais que surgiram no Pós-Guerra nos Estados Unidos (San Francisco Renaissance, Beat Generation, o rock’n’roll, a contracultura hippie, o punk rock, o movimento hip-hop etc.). Sintetizou de algum modo todos esses rolês em sua poética ― “Resista mais, obedeça menos”; “Diga o indizível, torne o invisível visível”. Isto é: faça as coisas acontecerem de uma vez por todas. Está todo mundo de saco cheio. “Poetas, saiam de seus armários,/ Abram suas janelas, abram suas portas,/ Vocês estiveram tempo demais escondidos/ em seus mundinhos fechados.” “Acorde, o mundo está em chamas!”


O papo é quente, camarada, e segue firme e forte, olho vivo e faro fino. Agora é adentrar as páginas deste admirável e combativo livro escrito por um poeta inquieto e inventivo, “agente provocador ― subversivo, anarquista e profético”. Boa leitura!


Verão de MMXXIII






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